Geórgia Santos

Não aprendemos a valorizar trabalho

Geórgia Santos
1 de maio de 2018

Fiz essa foto aí de cima em Cartagena, na Colômbia. São dezenas das famosas bolsas multicoloridas conhecidas trançadas pelo povo Wayuu, grupo da península de La Guajira. Impossível não ficar hipnotizada com algo tão vivo, tão bonito. Comprei uma amarela de tom profundo, que não aparece na imagem. Não tenho certeza absoluta de quanto paguei, mas se não me falha a memória, entre R$ 20 e R$ 50 – ainda aposto no menor valor.  De porte de minha bolsa nova, fiz algumas fotografias e segui andando.

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Mas o que a imagem de capa não mostra é a cena retratada abaixo

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Eu, tão encantada com as bolsas, não fui capaz de trocar duas palavras com essa senhora. Ela fazia um trabalho manual impecável e, segundo minha memória, com agilidade impressionante. Era natural, ela fazia com facilidade algo que seria extremamente difícil pra mim – isso se eu conseguisse fazer. E eu não só não troquei duas palavras com ela como ainda pechinchei para comprar uma bolsa extremamente barata, possivelmente com uma margem de lucro mínima. Pechinchei para comprar um produto que em sites de compra brasileiros chega a custar R$400.

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Esse é só um exemplo do nosso descaso com o trabalho e a proporcional obsessão por bens

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O desespero por consumo, de fato, já fez um senhor estrago na sociedade brasileira. Nós não aprendemos a valorizar o trabalho, mas o produto. Aceitamos pagar milhões por um apartamento, mas choramos quando um pintor decente cobra quaisquer cem reais.  Gastamos uma fortuna em aparelhos eletrônicos mas não admitimos “pagar bem” a um eletricista. A situação é tão absurda que, no Brasil, metade dos trabalhadores recebe MENOS que o salário mínimo, pouco mais de R$700.

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Se considerados os 5% brasileiros com menores salários, a renda média cai para apenas R$ 73 mensais

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Lamento, senhores, mas isso não é o reflexo de um país que valoriza o trabalho. E olha que sequer mencionei os mais de 12 milhões de desempregados. Em meio a reflexões como essas, lembro dos muitos amigos que foram para o exterior à procura de emprego. Eu ficava impressionada com o fato de que pessoas com ensino superior – às vezes com pós-graduação – viajavam para a Europa ou Estados Unidos para trabalharem em ofícios que sequer seriam cogitados no Brasil. Até que um deles me disse: “Porque o salário é bom, e o salário é bom não apenas por ser um país desenvolvido, mas porque eles valorizam o trabalho. Todo trabalho.”

Uau, aquilo me atingiu como um soco no estômago. Sem perceber, eu estava reproduzindo uma lógica de alienação, atribuindo menor valor a trabalhos não intelectuais. Eu era parte do sistema e sequer havia me dado conta.

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Marx e o trabalho

É difícil falar do trabalho sob o ponto de vista sociológico sem citar Karl Marx – mesmo para mim, uma reformista. O filósofo entendia o trabalho como a atividade fundamental e central da humanidade. E como ele considerava o homem um ser social, estabeleceu que a divisão do trabalho determina as relações dos indivíduos entre si.

A partir do conceito de alienação, ele desenha uma teoria em que o trabalhador, pela lógica capitalista, se tornaria estranho ao produto de sua atividade e, como consequência,  o produto se consolidaria como uma espécie de poder independente. O conceito de alienação do trabalho de Marx é bastante complexo, assim como todo O Capital, mas é um ponto de partida interessante para repensarmos a nossa relação com o trabalho.

Marxista ou não, é difícil negar que há uma supervalorização do produto em detrimento da mão-da-obra. Ou vamos esquecer das constantes denúncias de exploração e trabalho análogo ao escravo? Vamos esquecer que 90% da população brasileira recebe menos de R$3mil?  Que 22% da população vive abaixo da linha da pobreza?

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Vamos fingir que não há famílias inteiras que tem uma renda inferior ao preço da nossa calça jeans?

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Sem contar que, no Brasil, só consideramos trabalhador aquele esta no chão de fábrica, como se isso fosse menor ou menos importante. Perdemos inclusive a noção de pertencimento em uma sociedade em que a elite é formada por pessoas que não percebem que não pertencem à elite, mas são exploradas por ela. Que esse Dia do Trabalhador não nos deixe esquecer. 

Voos Literários

Especial Dia do Trabalho – Saramago, Kafka e Caio F.

Flávia Cunha
1 de maio de 2018

Escritores são, em geral, seres inconformados com a realidade. Então, não foi difícil selecionar 3 livros para refletirmos neste Dia do Trabalho, livros que abordam, de alguma forma, o universo do trabalho e suas injustiças e incoerências. Os autores escolhidos são reconhecidos pela forma perspicaz de trazer para a ficção idiossincrasias do mundo real. Vamos aos trechos de obras de José Saramago, Franz Kafka e Caio Fernando Abreu.

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“A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca.”

José Saramago – Todos os Nomes, o trecho selecionado fala do funcionamento de um grande cartório, chamado na história de Conservatória Geral do Registo Civil. O conservador citado no texto é o grande chefe, que não trabalha ‘quase nunca’.  

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“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.

(….)

Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis.”

Franz Kafka – A Metamorfose. Nesse clássico da Literatura Mundial, o protagonista, mesmo passando por uma incrível transformação corpórea, tem na ausência forçada ao trabalho sua principal angústia. Irônico, no mínimo.

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“Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se ? um emprego.

(…)

Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos.”

Caio Fernando Abreu – Por Onde Andará Dulce Veiga. Caio F. usa de todo seu sarcasmo para descrever a sensação do protagonista desse romance ao conseguir um emprego. O trabalho de repórter vai resolver, ainda que de forma precária, a difícil situação financeira enfrentada pelo personagem. A crítica do escritor é embasada na realidade. Caio Fernando Abreu trabalhou durante muito tempo para sobreviver como jornalista.