Voos Literários

Moro e uma fake news da fake news

Flávia Cunha
20 de abril de 2022

Moro, um dos pré-candidatos à presidência da enfraquecida terceira via, teve seu nome envolvido em uma fake news literária nesta semana. Na última segunda-feira, Dia Nacional do Livro Infantil, o ex-juiz postou em suas redes sociais a obra que encantou sua infância.

A citação ao livro Dendeleão foi o que bastou para acusarem Sérgio Moro de mentiroso contumaz. Afinal, de acordo com os “especialistas” da Internet, a obra, escrita pelo norte-americano Don Freeman, teria sido publicada no Brasil, em língua portuguesa, pela editora Ediouro, apenas em 1995, quando ele já teria mais de 20 anos de idade.

Mas qual foi a fonte para essa informação replicada à exaustão no Twitter?

Conforme as pesquisas que fiz nas redes sociais e no oráculo Google, a referência principal para esta data da década de 1990 foi o site Estante Virtual, de venda de livros usados. Portanto, não era uma fonte acadêmica ou editorial confiável sobre o lançamento da obra.

Reunião de pauta  

No início da noite desta terça-feira (dia 19), acionei meus colegas do Vós, antes da gravação do podcast Bendita Sois Vós. Parecia um assunto interessante de ser mencionado no episódio desta semana, já que sempre fazemos referência à política, mas levando em conta aspectos mais aprofundados das notícias. Até o momento da gravação, na noite do dia 19, tínhamos suspeitas que o livro teria sido lançado na década de 1970, porém não tínhamos uma confirmação oficial. Alguns indícios nos levavam a esse caminho, após pesquisas realizadas em grupo. A Geórgia Santos descobriu, por exemplo, que na época a Ediouro se chamava Edições de Ouro e a tradutora de Dendeleão, a escritora Stella Leonardos, havia lançado livros infantis por esta editora. Posteriormente, a Edições de Ouro uniu-se à empresa Tecnoprint, criando a Ediouro, ainda em atuação. Sendo assim, seria possível que a indicação de edições do livro fosse modificada, a partir desta mudança.  

Além disso, outros sites confiáveis, como da Academia Carioca de Letras, apontavam que o trabalho mais frequente de Stella como tradutora foi entre os anos 1960 e 1970.  Portanto, as edições da obra em questão poderiam ter simplesmente utilizado a mesma tradução, prática comum no mercado editorial. Diante de tais dúvidas, após um período de debates internos, optamos por não incluir o assunto no podcast. Afinal, se a nossa crítica era justamente a reprodução de uma informação incorreta, precisávamos ter responsabilidade.

Assim, fiquei com a missão de, no dia seguinte, acionar a assessoria de imprensa da Ediouro e aguardar esta resposta que seria destinada ao conteúdo desta coluna. Sem ter a ânsia pelo “furo” jornalístico, já que até aquele momento nenhum veículo de comunicação havia falado sobre a possibilidade de fake news envolvendo o assunto.

Fake news confirmada

Na manhã desta quarta-feira, o site Boatos.org divulgou que era falsa a informação de que Sérgio Moro teria citado um livro lançado em 1995 como se tivesse marcado a sua infância. No entanto, o site não tinha informações da parte da editora, que foi a confirmação que o Vós optou por fazer.

A confirmação da Ediouro

Segue a resposta da assessoria de imprensa da Editora Ediouro, enviada especialmente para a coluna Voos Literários:

A Ediouro contratou a obra Dendeleão, assim como a sua tradução, na década de 1970, o que nos leva a crer que a primeira edição da obra foi lançada nessa época. Em 1995, contratamos ilustrações para uma nova edição e a obra voltou a circular nesse momento. Não encontramos registros de data da primeira edição em nossos sistemas, pois trata-se de informação bem antiga.

Aproveito para deixar registrado que o autor do livro é o Don Freedman. A Stella Leonardos é a tradutora.”

Mais debates e análises conjuntas

Ao receber a resposta da Ediouro, entrei em contato, mais uma vez, com meus colegas do Vós. Ao comentar que a declaração da editora não havia sido categórica, o Igor Natusch conseguiu uma informação interessante, que ajudou na confirmação mais exata de que o assunto que circulava nas redes sociais era uma fake news. Em um arquivo da Procempa (Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre), havia referências à listagem de obras literárias de uma biblioteca local. Neste documento, a obra Dendeleão estava na quinta edição em 1995, o que já comprova que o livro não havia sido lançado naquele ano. 

Anúncio de 1973

Por fim, mas não menos importante como fonte de confirmação, está o tweet do usuário Jobson Camargo.

Ele resgatou um anúncio da Ediouro, publicado no jornal Folha de São Paulo, em dezembro de 1973 (imagem ao lado.)

A publicidade da editora incluiu Dendeleão como uma das obras sugeridas para a leitura de férias e Natal de crianças, há quase 49 anos.

 

No detalhe da imagem original, editada pelo Igor Natusch, é possível ver o nome da obra em questão, dentre outras lançadas pelo Pingos de Ouro, um selo editorial já extinto, da Ediouro.

Moro disse a verdade (ao menos dessa vez)

Sendo assim, percebemos que é perfeitamente possível que essa leitura tenha marcado a infância de Sérgio Moro, nascido em 1972. Por isso, fiz questão de citar todo o percurso sobre checagem de notícias. Pois assim, procurei salientar como pode ser irresponsável e perigoso o atropelo das redes sociais em citar como mentiroso um pré-candidato à presidência da República.

Fake news “do bem”?

Claro que seria delicioso apontar uma inverdade tão descarada em uma figura que já demonstrou não ter afinidade com a Literatura, como no episódio da entrevista com Pedro Bial, em abril de 2019.

Porém, precisamos ter o cuidado de confirmar as informações antes de sair espalhando-as por aí. Sempre é bom lembrar: não existe fake news “do bem”. Pois quando atinge o nosso lado da trincheira, nós bradamos contra as tias do zap-zap. Então, não podemos cometer os mesmos erros. 

E para quem acha que envolver um livro infantil em uma notícia falsa é algo superficial ou bobo, não nos esqueçamos da menção à obra para crianças Aparelho Sexual e Cia como parte do fantasioso kit gay. Ao não ser questionado, em rede nacional, porque estava inventando que um livro infantil era pornográfico, o então candidato Jair Bolsonaro abriu um precedente perigoso. 

* Após a publicação deste texto, recebi a informação de que a primeira edição do livro em questão foi registrada junto à Biblioteca Nacional, em 1973, pela editora Tecnoprint. A confirmação foi feita através do depósito legal (envio obrigatório de exemplar de livros publicados no Brasil) e consta no catálogo da Biblioteca Nacional.

Foto: Facebook/Reprodução

 

 

 

 

 



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BSV Especial Coronavírus #84 O homem que abana para carros


Geórgia Santos
1 de dezembro de 2021

Nesta semana, Jair Bolsonaro, o homem que abana para carros enquanto tem menos de 20% de aprovação e, mesmo assim, não aguenta ser xingado.

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Na última sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro passou mais de uma hora acenando para motoristas à beira da estrada na rodovia Régis Bittencourt, que conecta São Paulo a Curitiba, cortando o Vale do Ribeira. Muito ocupado, ele estava acompanhado do filho Eduardo Bolsonaro, do irmão Renato e do ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. A iniciativa de Bolsonaro causou um congestionamento de aproximadamente 5km na estrada.

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O problema, pra ele, é que nem todo mundo ficou feliz com a miragem nada auspiciosa.

Tanto que ele foi xingado

Como todo bom líder democrático, ele não aguentou a provocação. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) abordou o carro onde ela estava e encaminhou o caso a agentes da Polícia Federal (PF). Ela foi levada para a delegacia da PF de Volta Redonda (RJ), onde foi feito registro de um termo circunstanciado pelo crime de injúria. 

Bolsonaro esqueceu que ele não é mais o queridinho que já foi. Pesquisa Atlas mostra que a aprovação do governo caiu para 19%, nível mais baixo desde que Jair chegou ao Palácio do Planalto. A aprovação de Bolsonaro, especificamente, da figura do presidente, também chegou ao índice mais baixo: 29,3%. Embora eu ainda ache alta. 

As maiores preocupações da população são corrupção, inflação e desemprego, segundo a pesquisa. Pudera, o rendimento real do trabalhador brasileiro é o menor em nove anos.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #84 O homem que abana para carros

Foto: Clauber Cleber Caetano/PR

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BSV Especial Coronavírus #48 Lula lá?

Geórgia Santos
10 de março de 2021

Lula tinha certeza que esse dia chegaria

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O dia a que Luiz Inácio Lula da Silva se refere é o dia em que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu anular as condenações do ex-presidente petista na Operação Lava Jato. Como se não bastasse, o ministro Gilmar Mendes resolveu retomar a discussão sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro. No dia seguinte.

Depois de anos, Lula convocou uma coletiva para falar justamente sobre a anulação das condenações. Mas ao contrário do que muitos esperavam, o tom não foi de raiva, ódio ou ressentimentoNo pronunciamento desta quarta-feira (10), Lula mostrou uma face humana, conciliadora, que dialoga com os mais pobres, que se solidariza com os parentes dos mortos pelo coronavírus. O discurso do petista se opõe frontalmente ao de Jair Bolsonaro. Na forma e no conteúdo. Contrasta com a posição raivosa que, infelizmente, estamos habituados a ouvir. Eleva o nível do debate político e deixa de lado grosserias, ameaças, termos chulos. Mas nao se exime de críticas, pelo contrário. Acerta Bolsonaro na jugular e defende a vacina.

Lula não fala em 2022, não diz se será ou não candidato, afinal, essa decisão faz com que ele possa disputar as eleições, mas a disputa está lançada e parece que Bolsonaro entendeu o recado.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

 

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #48 Lula lá?
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BSV Especial Coronavírus #11 Enfim, o vídeo de Bolsonaro

Geórgia Santos
22 de maio de 2020

E como já é de praxe, estamos sextando! De novo por culpa de Jair Bolsonaro. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, derrubou o sigilo do vídeo da famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril. Segundo Sérgio Moro, foi nesta reunião em que o presidente ameaçou interferir na Polícia Federal.

O vídeo é bastante claro com relação a tentativa de interferência e confirma a denúncia de Moro. Mostra que Bolsonaro incorreu em crime de responsabilidade. Mas o vídeo mostra mais que isso.

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Mostra que somos governados por pessoas ignorantes, grosseiras, ineptas e cruéis
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O ministro da educação, Abraham Weintraub, pede a prisão de ministros do STF e destila podridão. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, quer aproveitar que a mídia só fala em Covid para afrouxar regulação ambiental. O ministro da Economia, Paulo Guedes, garante que o Brasil surpreendera o mundo. Já está surpreendendo. Estamos perto de ser o país com o maior número de mortes por dia em função do coronavírus.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natuch e Tércio Saccol.Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #10 Enfim, o vídeo de Bolsonaro
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BSV Especial Coronavírus #6 E Sérgio Moro caiu – ou saiu

Geórgia Santos
24 de abril de 2020

Como tem sido nos últimos episódios, pouco vamos falar de coronavírus porque, senhoras a senhores, Sérgio Moro está fora do governo Bolsonaro.

O ex-juiz federal e agora ex-ministro da Justiça pediu demissão na manhã desta sexta-feira, 24 de abril, após troca no comando da Polícia Federal (PF).  Sérgio Moro foi enfático ao dizer que há interferência política de Jair Bolsonaro na instituição e citou inquéritos no STF. Ele ainda surpreendeu ao reconhecer que nem no auge da LaVa-Jato, durante o governo do PT, havia esse tipo de interferência na PF.

Jair Bolsonaro, obviamente, não gostou e fez um pronunciamento absolutamente confuso, mentiroso e grosseiro no final da tarde. Disse que Moro estava mentindo e sugeriu chantagem. Segundo Bolsonaro, Moro queria ser indicado a uma cadeira no Supremo Tribunal Federal.

Agora, a Procuradoria-Geral da República (PGR) vai investigar quem está falando a verdade. E nós vamos discutir o que esse dia de maluco representa. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flavia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #6 E Sérgio Moro caiu – ou saiu
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OUÇA Bendita Sois Vós #48 O elemento político das polícias

Geórgia Santos
2 de março de 2020

No episódio desta semana, as repercussões políticas e sociais da crise da segurança pública no Brasil. E quando se fala em crise da segurança, há dezenas de caminhos e abordagens. Neste caso, usamos o episódio do motim dos policiais militares do Estado do Ceará como ponto de partida para entender o papel das polícias na política.

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Os policiais encapuzados foram confrontados pelo Senador Cid Gomes, do PDT, que em uma ação bizarra no município de Sobral, pra dizer o mínimo, avançou com uma retroescavadeira sobre o grupo amotinado. Como resposta, levou dois tiros
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O caso foi chocante e desencadeou um debate sobre a legitimidade da ação dos policiais e das polícias em geral. Por isso, os jornalistas do Vós discutem a possibilidade de a polícia militar se tornar mais que um barco armado do Estado e passar a ter relevância no jogo político.

Participam Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

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OUÇA Bendita Sois Vós #44 Liberdade de imprensa a perigo – de novo

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2020

Neste episódio, os jornalistas do Vós falam sobre liberdade de imprensa no Brasil.Ou melhor, sobre mais uma tentativa de cercear a liberdade de imprensa no Brasil.

Todos estamos familiarizados com os constantes ataques do presidente da República aos jornalistas e da recusa de Jair Bolsonaro em conceder entrevista ao que ele chama de grande mídia. Agora, no entanto, foi a vez do Ministério Público Federal. O jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, foi denunciado pelo MPF em função da produção das reportagens que ficaram conhecidas como Vazajato, que revelaram a comunicação ilegal entre procuradores do Ministério Público e o então juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato. Glenn e outras seis pessoas foram denunciadas por associação criminosa para invasão de equipamentos de comunicação e interceptação ilegal de comunicações.

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Glenn Greenwald não foi investigado, Não foi indiciado, não cometeu qualquer irregularidade

Ele está sendo punido por fazer jornalismo

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Os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol conversam com Marcelo Träsel, presidente da Abraji e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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OUÇA Bendita Sois Vós #41 O que acontece quando não estamos olhando

Geórgia Santos
16 de dezembro de 2019

O Bendita Sois Vós desta semana trata das coisas que acontecem quando não estamos olhando – e quando estamos olhando também. Com este governo, não podemos piscar.

Porque enquanto Jair Bolsonaro chama Greta de Pirralha, indígenas estão sendo assassinados em suas terras. Enquanto a gente presta atenção ao presidente, o Congresso aprova o pacote anticrime, que de anticrime não tem nada. Enquanto se discute a liberdade de expressão no humor, o prefeito do Rio de Janeiro veta jornalistas da Globo de participarem de coletiva. E um homem veste uma suástica enquanto se distrai em um bar com naturalidade

Com Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

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OUÇA Bendita Sois Vós #33 Agatha Félix, 8 anos

Geórgia Santos
30 de setembro de 2019

Nesta semana, o fato que dilacerou o coração de todo o país. Agatha Félix, de oito anos, foi assassinada com um tiro de fuzil. Ela estava dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

A família garante que ela foi assassinada pelo Estado. Assim como outras testemunhas que afirmam que não houve tiroteio. A versão oficial é outra. Segundo a Polícia Civil, o projétil que matou Ágatha é de fuzil, sim, mas não poderá ser comparado a armas de PMs. Não é possível dizer o calibre da bala achada no corpo da menina. Surpresa.

Mas se não é possível determinar o calibre da bala, é bastante claro que a Agatha foi morta como consequência da política de segurança de Wilson Witzel, o governador do Rio de Janeiro. Para compreender melhor essa realidade, conversamos com a jornalista e ativista Marcela Lisboa, moradora da Penha.

O governador ficou em silêncio em princípio. Quando falou, responsabilizou o usuário de maconha. O ministro da Justiça, Sérgio Moro, apressou-se em descolar o assassinato da menina do excludente de ilicitude. Já o presidente Jair Bolsonaro ficou em silêncio sobre o caso da Agatha, não disse absolutamente nada. Adoraríamos que ele tivesse ficado em silêncio também na ONU.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. A edição é da jornalista Evelin Argenta. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Reportagens Especiais

“Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias [da Vazajato] saindo desse arquivo”

Geórgia Santos
17 de junho de 2019

Igor Natusch e Geórgia Santos

A frase é do editor adjunto do The Intercept Brasil, Alexandre de Santi. Ele se refere ao arquivo que deu origem ao que agora conhecemos por Vazajato, uma série de reportagens que abalou profundamente a imagem da Lava Jato e, principalmente, dos protagonistas da operação. As matérias publicadas em nove de junho mostram, entre outras coisas, a colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF), entre eles Deltan Dallagnol,  e o então juiz Sérgio Moro.

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O escândalo do Vazajato mostrou que a operação de combate à corrupção também estava corrompida

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As reportagens foram produzidas a partir de um arquivo que continha conversas privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo os procuradores e o hoje ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Segundo os editores, o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo. Mas a explicação não impediu que inúmeras pessoas questionassem a legalidade da publicação, considerada uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo e de forma antiética. Essa tem sido, inclusive, a tônica da defesa dos envolvidos: foco na forma, e não no conteúdo.

Em entrevista ao Vós, o jornalista Alexandre de Santi esclareceu esse e outros pontos a respeito da apuração dos fatos, tratamento do material e próximas publicações. Ele assinou uma das três matérias publicadas inicialmente e entende que a vastidão do material pode exigir um trabalho de anos.

Vós – Como está sendo o processo de apuração em cima desse montante de informações  que vocês receberam? Estabeleceram uma força-tarefa na equipe, dividiram tarefas? Quanta gente está envolvida no processo?

Alexandre de Santi – Não dá pra chamar de força-tarefa porque a nossa equipe é pequena, então não tem um monte de gente trabalhando nisso. O que a gente fez foi destacar algumas pessoas para trabalhar mais de perto nisso. Mas não estamos conseguindo gastar muita energia nisso porque houve umas baixas em função de doenças, algumas pessoas de férias e coisas assim. Então, agora, tem umas três ou quatro pessoas trabalhando full time nessa operação editorial.  Mas toda a equipe está trabalhando de alguma forma no bastidor, seja em redes sociais ou ajudando nesse período mais intenso com assessoria de imprensa, para organizar entrevistas, esse tipo de coisa. Então por enquanto é isso. Fora o Glenn [Greenwald], que é uma operação à parte, digamos assim, já que não está dentro da nossa hierarquia direta.

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Vós – E que critérios vocês estão seguindo para selecionar o que é importante no material?

Alexandre de Santi – Com relação aos critérios, a gente procura coisas que tenham interesse público, obviamente, que tenha a ver com eventos republicanos, digamos assim. Coisas referentes a assuntos estritamente pessoais ou de procedimentos internos do pessoal da Lava Jato, a gente não publica. Eventualmente, podemos dar uma olhada “mais de lupa”  para ver se tem coisas interessantes, mas não é prioridade agora. A prioridade é encontrar coisas que tenham a ver com os casos que mudaram a política do país, encontrar coisas que tenham interesse público forte e que ajudem a revelar como funcionou o processo de decisão dessa operação e deixar isso pro público julgar. Julgar se essa operação, que tem tanta fama, operou dentro da normalidade e se os méritos estão dentro de um espírito republicano. E é essa a nossa missão. 

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Vós – E quanto às questões legais? Tanto na parte da obtenção dos dados quanto, por exemplo, na decisão de publicar originalmente sem contraponto.

Alexandre de Santi – Desde que isso começou, semanas atrás, até agora, eu me envolvi mais tempo em questões jurídicas do que em questões jornalísticas. Tanto com reunião com advogados quanto discussões internas, mesmo sem presença de advogados, para tentar avaliar tanto os nossos riscos quanto as repercussões jurídicas intrínsecas ao material. É um tema muito importante, muito delicado.

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Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não.

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A nossa preocupação primeira era entender até que ponto a gente podia publicar isso. Tanto por se tratar de conversas privadas quanto por terem sido, talvez – é uma hipótese, a gente não sabe -, “roubadas”, digamos assim. A gente não sabe de onde elas vieram exatamente, então a gente não tem nem como avaliar mais profundamente. Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não. Em nenhum momento isso se confirmou.Mas a gente tinha essa preocupação no nível da hipótese. “E se for uma informação que foi roubada de algum lugar, isso importa pra nós?” “Juridicamente, como é que fica se for esse o caso?” Então trabalhamos com essa e com outras hipóteses para entender qual era o nosso risco. Primeiro nossos advogados disseram que, independente da origem, esse não era um problema nosso, que nós tínhamos direito de publicar, que jornalismo é isso. Desde que a gente não estimulasse a fonte a cometer um crime, e a gente não fez isso em nenhum momento. Depois que isso ficou bem claro, não tivemos preocupações em receber os arquivos.

Encerrada essa questão, do custo jurídico de entender a origem do material, teve a discussão sobre como a gente faria para falar com os envolvidos antes da publicação, porque esse é o nosso padrão jornalístico. Obviamente é a melhor prática possível, falar com todos os envolvidos antes, mas a gente começou a discutir com os advogados se nós estaríamos correndo algum risco de sofrer censura prévia. Porque dava tempo de eles se organizarem. São personagens com muitas conexões no mundo jurídico, então tememos que essas conexões fariam com que uma causa de censura prévia tivesse muita simpatia dentro do judiciário, apesar de não ser a regra. Apesar de no Brasil, em tese, não existir censura prévia, a gente viu um caso recente, que foi o caso d´O Globo, que teve uma matéria que tratava do caso da Marielle censurada previamente pela Justiça. Então tinha um precedente recente. E a gente está na mesma cidade que o Globo, ou seja, podia haver um entendimento jurídico local que poderia favorecer a tese que de o material merecia censura prévia. Então a gente avaliou que o interesse público era maior e  decidiu, pela primeira vez, não falar com as fontes. 

A gente podia ouvir os envolvidos, também, para entender se o conteúdo era verdadeiro, mas a gente já tinha feito essa avaliação interna de várias formas possíveis. Checando fatos, datas e os arquivos. Fizemos também uma análise técnica no material pra saber se tinha sinais de adulteração. Enfim, fizemos todo o trabalho possível antes pra saber se era falso.

No momento que a gente concluiu que era um conteúdo verdadeiro, a gente concluiu que já era a versão deles. É a versão dos bastidores, mas é a voz deles. Mesmo sabendo que é uma decisão difícil, inédita, não usual e que a gente não pretende seguir para sempre, sentimos que, nesse caso, o público merecia saber e não podia correr o risco da censura prévia. Então fizemos essa aposta editorialmente arriscada. Mas a versão deles foi ouvida pelo público, por outros canais, e agora cabe ao público julgar isso. 

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Vós – Muita gente acaba, por conveniência política ou torcida mesmo, criando uma enorme expectativa em torno de futuras matérias, esperando algum tipo de resultado delas. Isso abre caminho pra que o trabalho jornalístico do The Intercept Brasil acabe visto como uma espécie de evento ou espetáculo, que vocês sejam vistos como antagonistas de Sérgio Moro.

Alexandre de Santi – A gente não é antagonista do Sérgio Moro. Eu acho que, nessa situação, o antagonista do Sérgio Moro é o próprio Sérgio Moro, o próprio Deltan Dallagnol, dentro de uma ótica de que há ali deslizes muito graves. Isso não é criação do Intercept, o deslize é criação deles. A gente simplesmente teve acesso a esses deslizes, e o nosso papel é só esse, informar. Colocar os pingos nos is. Não só jogar a informação crua para as pessoas tentarem entender.

Vós – Como vocês estão lidando com isso? Qual é a tua visão, a visão de vocês, sobre o papel do veículo e sobre essas publicações? Para que elas servem, enfim?

Alexandre de Santi – A gente acha que esse material serve pra elucidar o público sobre como transcorreu essa operação muito influente, tanto jurídica quanto politicamente, e em que termos éticos, em que bases jurídicas. Isso transformou o Brasil. É bem forte o argumento de que sem Lava Jato a gente teria outro espectro politico na presidência, no comando politico do país. As matérias servem para mostrar para o público se houve deslizes éticos nesse processo. Nós acreditamos que o papel do jornalismo é ser o fiscal do poder, então estamos fiscalizando se houve alguma transgressão.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo. Nós estamos fazendo isso porque o público tem direito de julgar e conhecer  e poder entender se sua própria expectativa, ou raiva, ou amor pela Lava jato é justificado. Se transcorreu do jeito certo, como tinha que correr, como manda a lei. O nosso papel é esse, o jornalismo serve para isso, para expor coisas que, às vezes, as pessoas não querem que sejam expostas.

O TIB é um veículo que procura ter impacto no que faz, então quando tem que dizer que alguma coisa precisa ser mudada ou que a aquela pessoa cometeu o que é, objetivamente, um deslize, a gente avisa o leitor. A gente não fica em cima do muro para dizer “aqui estão os fatos e o leitor que se vire para entender se são legais ou não”. A gente tenta já cumprir esse caminho, já mostrar se tem alguma situação “esquisita”. Eu sei que isso causa grande expectativa, principalmente na esquerda, que acha que pode “se vingar” agora da Lava jato, que sem ela não haveria governo Jair Bolsonaro. Mas essa expectativa não é criada pela gente. É a gente no sentido de que a gente publicou algo que gerou essa expectativa, mas a gente não esperava criar expectativa em ninguém, só estávamos fazendo nosso trabalho do jeito mais responsável possível. E foi isso que a gente fez.

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Vós – Um veículo de jornalismo diário estaria sob uma enorme pressão para publicar tudo o mais rápido possível, talvez não tivesse o mesmo tempo que vocês tiveram para avaliar, bater informações etc. Mas o The Intercept Brasil é tudo, menos jornalismo diário, e desde o início tem se proposto a atuar fora dessa lógica. 

Alexandre de Santi – A coisa que eu mais gostava de trabalhar no Intercept, até agora, era justamente o fato de a gente operar no ritmo de uma revista. A gente opera num ritmo muito mais lento e pode demorar semanas ou meses pra publicar uma matéria, porque a gente vai trabalhando até ficar o que a gente considera como pronta. Esse é o meu ritmo pessoal, por exemplo, não gosto de fazer hard news, nunca gostei, já fiz bastante mas nunca foi a minha praia de verdade, a minha vocação. Então uma das coisas que eu gostava no TIB era poder trabalhar com esse tempo, que era muito importante para fazer as coisas bem feitas, tanto do ponto de vista de qualidade da informação, de realmente fazer jornalismo investigativo e ir atrás das coisas até o final, quanto em termos de preparar a matéria para que ela tenha impacto. “Empacotar” de um jeito que a gente consiga mostrar para as pessoas que vale a pena dar atenção para aquela história. Então foi sempre muito bom ter esse tempo pra poder pensar ilustração, diagramação, design, pensar em qualidade de texto. Tudo isso e outros gatilhos internos dos textos que a gente acredita que dá mais leitura, compartilhamento e furar as bolhas para ir mais longe. Agora a gente não tem esse tempo mais. Existe uma expectativa grande de produção.

A gente também sentia que o material era sensível a ponto de ser arriscado ficar com ele por muito tempo na mão sem publicar nada. Digamos que, em vez de a gente levar semanas, a gente levasse meses para terminar. E que durante esses meses, vazasse a informação de que a gente estava trabalhando nesse arquivo.  Isso permitira o nascimento de trocentas teorias da conspiração, todas falsas obviamente. Além disso, a gente sentia que [um eventual vazamento] nos expunha a um risco de a Polícia Federal bater no escritório, na nossa casa, atrás desse material para tentar confiscar. Então era importante andar rápido, numa velocidade que a gente não está acostumado. A gente inclusive fez uma coisa que a gente nunca faz, que é publicar três matérias grandes ao mesmo tempo. Então foi bastante pesado esse período em termos de preparação do material.

Nós temos uma política de fazer checagem de informações em todas as matérias grandes, então não tem matéria do Intercept publicada sem um processo de checagem da informação. Evidentemente o repórter faz checagem, os editores fazem, mas depois passa por um processo de fact checking mesmo. E a gente fez isso em todas as matérias. Teve revisão, um monte de gente leu, os advogados leram várias vezes, sabe, então foi um período bem pesado de preparação. E agora, para manter esse nível, é estrategicamente interessante que a gente aproveite a atenção das pessoas para seguir publicando, mas não é muito nosso ritmo, mesmo. A gente não tem uma equipe muito grande para conseguir andar rápido, mas a gente precisa andar rápido para acompanhar o interesse do público.

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Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo.

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Eu não posso falar sobre estratégia pratica de publicação, mas posso dizer que a gente está sob uma pressão nossa, mesmo, de tentar aproveitar a atenção que as pessoas estão dando a esse assunto. Não vamos deixar isso para depois, vamos aproveitar. Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo. Pra vocês terem uma ideia, o Intercept americano publicou uma matéria nova sobre o arquivo Snowden na semana passada [as primeiras reportagens foram publicadas em 2013]. São arquivos totalmente diferentes, mas são arquivos muito grandes, com muita coisa lá dentro, que precisa muito tato e muito cuidado e muita responsabilidade e muita checagem de informações e muita compreensão de contexto para entender o que significa determinada conversa, determinado trecho, foto, documento. Então, nesse sentido, é um trabalho muito lento. Agora eu gostaria que a gente tivesse uma redação com recursos de jornalismo diário, com número de editores e de repórteres e toda uma estrutura preparada para conseguir atender a essa demanda agora. mas a gente não tem, então a gente vai seguir produzindo no ritmo que a gente consegue, até porque a gente jamais correria com a publicação para correr riscos jurídicos e até de qualidade do material, então tem que equilibrar essas duas coisas a partir de agora. 

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Vós – O quanto esse ritmo, de certa forma, pode favorecer vocês na hora de lidar com um furo de reportagem dessa dimensão?

Alexandre de Santi – Eu acho que a gente criou uma cultura interna, e pelo menos desde que eu cheguei como editor adjunto, acho que foi minha grande missão, de trabalhar arte, fazer bons textos, checar, fazer revisão, passar pelos advogados, de cavar mais, de entender melhor, tentar fazer a melhor manchete. Um trabalho completo. E parte do impacto que as três primeiras matérias fizeram é devido a isso. A gente fez o nosso dever de casa para que as matérias fossem apresentadas como algo que merecia atenção da sociedade. Então esse sentido, nos favoreceu ter essa cultura de um jornalismo mais lento e mais pensado. A gente chegou agora, na hora H, com o que para muitos era um bomba na mão, e a gente soube preparar essa bomba para ela explodir direitinho. Isso é muito em função do trabalho feito no último ano para que a gente não desperdice matérias assim.

Não adianta fazer uma boa matéria, ter um furo de reportagem ou alguma coisa exclusiva e publicar na hora errada, com a chamada de redes errada, com design que não é atrativo, que não responde bem a leitura no celular, por exemplo – porque 80% das pessoas estão lendo no celular. Então a gente vem trabalhando bastante para cuidar dessas coisas.  Para que as matérias tenham chamadas que funcionem bem nas redes sociais, tenham apuração que sustente os títulos que estão nas redes sociais, para que não sejam títulos apelativos a troco de nada, e que elas tenham artes, design, ilustração bem pensados pra que chame atenção. Então isso tudo foi usado na hora de preparar as primeiras matérias.  Não diria ao máximo porque ainda teve um componente de pressa, pelos motivos que eu falei antes, mas tinha uma intenção, pelo menos, de a gente usar todo nosso arsenal disponível. Então sim, de certa forma nos beneficiou, mas agora eu gostaria de ter um navio de guerra um pouquinho maior na minha mão. 

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Foto: The Intercept Brasil