Reportagens Especiais

“Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias [da Vazajato] saindo desse arquivo”

Geórgia Santos
17 de junho de 2019

Igor Natusch e Geórgia Santos

A frase é do editor adjunto do The Intercept Brasil, Alexandre de Santi. Ele se refere ao arquivo que deu origem ao que agora conhecemos por Vazajato, uma série de reportagens que abalou profundamente a imagem da Lava Jato e, principalmente, dos protagonistas da operação. As matérias publicadas em nove de junho mostram, entre outras coisas, a colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF), entre eles Deltan Dallagnol,  e o então juiz Sérgio Moro.

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O escândalo do Vazajato mostrou que a operação de combate à corrupção também estava corrompida

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As reportagens foram produzidas a partir de um arquivo que continha conversas privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo os procuradores e o hoje ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Segundo os editores, o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo. Mas a explicação não impediu que inúmeras pessoas questionassem a legalidade da publicação, considerada uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo e de forma antiética. Essa tem sido, inclusive, a tônica da defesa dos envolvidos: foco na forma, e não no conteúdo.

Em entrevista ao Vós, o jornalista Alexandre de Santi esclareceu esse e outros pontos a respeito da apuração dos fatos, tratamento do material e próximas publicações. Ele assinou uma das três matérias publicadas inicialmente e entende que a vastidão do material pode exigir um trabalho de anos.

Vós – Como está sendo o processo de apuração em cima desse montante de informações  que vocês receberam? Estabeleceram uma força-tarefa na equipe, dividiram tarefas? Quanta gente está envolvida no processo?

Alexandre de Santi – Não dá pra chamar de força-tarefa porque a nossa equipe é pequena, então não tem um monte de gente trabalhando nisso. O que a gente fez foi destacar algumas pessoas para trabalhar mais de perto nisso. Mas não estamos conseguindo gastar muita energia nisso porque houve umas baixas em função de doenças, algumas pessoas de férias e coisas assim. Então, agora, tem umas três ou quatro pessoas trabalhando full time nessa operação editorial.  Mas toda a equipe está trabalhando de alguma forma no bastidor, seja em redes sociais ou ajudando nesse período mais intenso com assessoria de imprensa, para organizar entrevistas, esse tipo de coisa. Então por enquanto é isso. Fora o Glenn [Greenwald], que é uma operação à parte, digamos assim, já que não está dentro da nossa hierarquia direta.

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Vós – E que critérios vocês estão seguindo para selecionar o que é importante no material?

Alexandre de Santi – Com relação aos critérios, a gente procura coisas que tenham interesse público, obviamente, que tenha a ver com eventos republicanos, digamos assim. Coisas referentes a assuntos estritamente pessoais ou de procedimentos internos do pessoal da Lava Jato, a gente não publica. Eventualmente, podemos dar uma olhada “mais de lupa”  para ver se tem coisas interessantes, mas não é prioridade agora. A prioridade é encontrar coisas que tenham a ver com os casos que mudaram a política do país, encontrar coisas que tenham interesse público forte e que ajudem a revelar como funcionou o processo de decisão dessa operação e deixar isso pro público julgar. Julgar se essa operação, que tem tanta fama, operou dentro da normalidade e se os méritos estão dentro de um espírito republicano. E é essa a nossa missão. 

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Vós – E quanto às questões legais? Tanto na parte da obtenção dos dados quanto, por exemplo, na decisão de publicar originalmente sem contraponto.

Alexandre de Santi – Desde que isso começou, semanas atrás, até agora, eu me envolvi mais tempo em questões jurídicas do que em questões jornalísticas. Tanto com reunião com advogados quanto discussões internas, mesmo sem presença de advogados, para tentar avaliar tanto os nossos riscos quanto as repercussões jurídicas intrínsecas ao material. É um tema muito importante, muito delicado.

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Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não.

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A nossa preocupação primeira era entender até que ponto a gente podia publicar isso. Tanto por se tratar de conversas privadas quanto por terem sido, talvez – é uma hipótese, a gente não sabe -, “roubadas”, digamos assim. A gente não sabe de onde elas vieram exatamente, então a gente não tem nem como avaliar mais profundamente. Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não. Em nenhum momento isso se confirmou.Mas a gente tinha essa preocupação no nível da hipótese. “E se for uma informação que foi roubada de algum lugar, isso importa pra nós?” “Juridicamente, como é que fica se for esse o caso?” Então trabalhamos com essa e com outras hipóteses para entender qual era o nosso risco. Primeiro nossos advogados disseram que, independente da origem, esse não era um problema nosso, que nós tínhamos direito de publicar, que jornalismo é isso. Desde que a gente não estimulasse a fonte a cometer um crime, e a gente não fez isso em nenhum momento. Depois que isso ficou bem claro, não tivemos preocupações em receber os arquivos.

Encerrada essa questão, do custo jurídico de entender a origem do material, teve a discussão sobre como a gente faria para falar com os envolvidos antes da publicação, porque esse é o nosso padrão jornalístico. Obviamente é a melhor prática possível, falar com todos os envolvidos antes, mas a gente começou a discutir com os advogados se nós estaríamos correndo algum risco de sofrer censura prévia. Porque dava tempo de eles se organizarem. São personagens com muitas conexões no mundo jurídico, então tememos que essas conexões fariam com que uma causa de censura prévia tivesse muita simpatia dentro do judiciário, apesar de não ser a regra. Apesar de no Brasil, em tese, não existir censura prévia, a gente viu um caso recente, que foi o caso d´O Globo, que teve uma matéria que tratava do caso da Marielle censurada previamente pela Justiça. Então tinha um precedente recente. E a gente está na mesma cidade que o Globo, ou seja, podia haver um entendimento jurídico local que poderia favorecer a tese que de o material merecia censura prévia. Então a gente avaliou que o interesse público era maior e  decidiu, pela primeira vez, não falar com as fontes. 

A gente podia ouvir os envolvidos, também, para entender se o conteúdo era verdadeiro, mas a gente já tinha feito essa avaliação interna de várias formas possíveis. Checando fatos, datas e os arquivos. Fizemos também uma análise técnica no material pra saber se tinha sinais de adulteração. Enfim, fizemos todo o trabalho possível antes pra saber se era falso.

No momento que a gente concluiu que era um conteúdo verdadeiro, a gente concluiu que já era a versão deles. É a versão dos bastidores, mas é a voz deles. Mesmo sabendo que é uma decisão difícil, inédita, não usual e que a gente não pretende seguir para sempre, sentimos que, nesse caso, o público merecia saber e não podia correr o risco da censura prévia. Então fizemos essa aposta editorialmente arriscada. Mas a versão deles foi ouvida pelo público, por outros canais, e agora cabe ao público julgar isso. 

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Vós – Muita gente acaba, por conveniência política ou torcida mesmo, criando uma enorme expectativa em torno de futuras matérias, esperando algum tipo de resultado delas. Isso abre caminho pra que o trabalho jornalístico do The Intercept Brasil acabe visto como uma espécie de evento ou espetáculo, que vocês sejam vistos como antagonistas de Sérgio Moro.

Alexandre de Santi – A gente não é antagonista do Sérgio Moro. Eu acho que, nessa situação, o antagonista do Sérgio Moro é o próprio Sérgio Moro, o próprio Deltan Dallagnol, dentro de uma ótica de que há ali deslizes muito graves. Isso não é criação do Intercept, o deslize é criação deles. A gente simplesmente teve acesso a esses deslizes, e o nosso papel é só esse, informar. Colocar os pingos nos is. Não só jogar a informação crua para as pessoas tentarem entender.

Vós – Como vocês estão lidando com isso? Qual é a tua visão, a visão de vocês, sobre o papel do veículo e sobre essas publicações? Para que elas servem, enfim?

Alexandre de Santi – A gente acha que esse material serve pra elucidar o público sobre como transcorreu essa operação muito influente, tanto jurídica quanto politicamente, e em que termos éticos, em que bases jurídicas. Isso transformou o Brasil. É bem forte o argumento de que sem Lava Jato a gente teria outro espectro politico na presidência, no comando politico do país. As matérias servem para mostrar para o público se houve deslizes éticos nesse processo. Nós acreditamos que o papel do jornalismo é ser o fiscal do poder, então estamos fiscalizando se houve alguma transgressão.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo. Nós estamos fazendo isso porque o público tem direito de julgar e conhecer  e poder entender se sua própria expectativa, ou raiva, ou amor pela Lava jato é justificado. Se transcorreu do jeito certo, como tinha que correr, como manda a lei. O nosso papel é esse, o jornalismo serve para isso, para expor coisas que, às vezes, as pessoas não querem que sejam expostas.

O TIB é um veículo que procura ter impacto no que faz, então quando tem que dizer que alguma coisa precisa ser mudada ou que a aquela pessoa cometeu o que é, objetivamente, um deslize, a gente avisa o leitor. A gente não fica em cima do muro para dizer “aqui estão os fatos e o leitor que se vire para entender se são legais ou não”. A gente tenta já cumprir esse caminho, já mostrar se tem alguma situação “esquisita”. Eu sei que isso causa grande expectativa, principalmente na esquerda, que acha que pode “se vingar” agora da Lava jato, que sem ela não haveria governo Jair Bolsonaro. Mas essa expectativa não é criada pela gente. É a gente no sentido de que a gente publicou algo que gerou essa expectativa, mas a gente não esperava criar expectativa em ninguém, só estávamos fazendo nosso trabalho do jeito mais responsável possível. E foi isso que a gente fez.

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Vós – Um veículo de jornalismo diário estaria sob uma enorme pressão para publicar tudo o mais rápido possível, talvez não tivesse o mesmo tempo que vocês tiveram para avaliar, bater informações etc. Mas o The Intercept Brasil é tudo, menos jornalismo diário, e desde o início tem se proposto a atuar fora dessa lógica. 

Alexandre de Santi – A coisa que eu mais gostava de trabalhar no Intercept, até agora, era justamente o fato de a gente operar no ritmo de uma revista. A gente opera num ritmo muito mais lento e pode demorar semanas ou meses pra publicar uma matéria, porque a gente vai trabalhando até ficar o que a gente considera como pronta. Esse é o meu ritmo pessoal, por exemplo, não gosto de fazer hard news, nunca gostei, já fiz bastante mas nunca foi a minha praia de verdade, a minha vocação. Então uma das coisas que eu gostava no TIB era poder trabalhar com esse tempo, que era muito importante para fazer as coisas bem feitas, tanto do ponto de vista de qualidade da informação, de realmente fazer jornalismo investigativo e ir atrás das coisas até o final, quanto em termos de preparar a matéria para que ela tenha impacto. “Empacotar” de um jeito que a gente consiga mostrar para as pessoas que vale a pena dar atenção para aquela história. Então foi sempre muito bom ter esse tempo pra poder pensar ilustração, diagramação, design, pensar em qualidade de texto. Tudo isso e outros gatilhos internos dos textos que a gente acredita que dá mais leitura, compartilhamento e furar as bolhas para ir mais longe. Agora a gente não tem esse tempo mais. Existe uma expectativa grande de produção.

A gente também sentia que o material era sensível a ponto de ser arriscado ficar com ele por muito tempo na mão sem publicar nada. Digamos que, em vez de a gente levar semanas, a gente levasse meses para terminar. E que durante esses meses, vazasse a informação de que a gente estava trabalhando nesse arquivo.  Isso permitira o nascimento de trocentas teorias da conspiração, todas falsas obviamente. Além disso, a gente sentia que [um eventual vazamento] nos expunha a um risco de a Polícia Federal bater no escritório, na nossa casa, atrás desse material para tentar confiscar. Então era importante andar rápido, numa velocidade que a gente não está acostumado. A gente inclusive fez uma coisa que a gente nunca faz, que é publicar três matérias grandes ao mesmo tempo. Então foi bastante pesado esse período em termos de preparação do material.

Nós temos uma política de fazer checagem de informações em todas as matérias grandes, então não tem matéria do Intercept publicada sem um processo de checagem da informação. Evidentemente o repórter faz checagem, os editores fazem, mas depois passa por um processo de fact checking mesmo. E a gente fez isso em todas as matérias. Teve revisão, um monte de gente leu, os advogados leram várias vezes, sabe, então foi um período bem pesado de preparação. E agora, para manter esse nível, é estrategicamente interessante que a gente aproveite a atenção das pessoas para seguir publicando, mas não é muito nosso ritmo, mesmo. A gente não tem uma equipe muito grande para conseguir andar rápido, mas a gente precisa andar rápido para acompanhar o interesse do público.

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Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo.

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Eu não posso falar sobre estratégia pratica de publicação, mas posso dizer que a gente está sob uma pressão nossa, mesmo, de tentar aproveitar a atenção que as pessoas estão dando a esse assunto. Não vamos deixar isso para depois, vamos aproveitar. Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo. Pra vocês terem uma ideia, o Intercept americano publicou uma matéria nova sobre o arquivo Snowden na semana passada [as primeiras reportagens foram publicadas em 2013]. São arquivos totalmente diferentes, mas são arquivos muito grandes, com muita coisa lá dentro, que precisa muito tato e muito cuidado e muita responsabilidade e muita checagem de informações e muita compreensão de contexto para entender o que significa determinada conversa, determinado trecho, foto, documento. Então, nesse sentido, é um trabalho muito lento. Agora eu gostaria que a gente tivesse uma redação com recursos de jornalismo diário, com número de editores e de repórteres e toda uma estrutura preparada para conseguir atender a essa demanda agora. mas a gente não tem, então a gente vai seguir produzindo no ritmo que a gente consegue, até porque a gente jamais correria com a publicação para correr riscos jurídicos e até de qualidade do material, então tem que equilibrar essas duas coisas a partir de agora. 

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Vós – O quanto esse ritmo, de certa forma, pode favorecer vocês na hora de lidar com um furo de reportagem dessa dimensão?

Alexandre de Santi – Eu acho que a gente criou uma cultura interna, e pelo menos desde que eu cheguei como editor adjunto, acho que foi minha grande missão, de trabalhar arte, fazer bons textos, checar, fazer revisão, passar pelos advogados, de cavar mais, de entender melhor, tentar fazer a melhor manchete. Um trabalho completo. E parte do impacto que as três primeiras matérias fizeram é devido a isso. A gente fez o nosso dever de casa para que as matérias fossem apresentadas como algo que merecia atenção da sociedade. Então esse sentido, nos favoreceu ter essa cultura de um jornalismo mais lento e mais pensado. A gente chegou agora, na hora H, com o que para muitos era um bomba na mão, e a gente soube preparar essa bomba para ela explodir direitinho. Isso é muito em função do trabalho feito no último ano para que a gente não desperdice matérias assim.

Não adianta fazer uma boa matéria, ter um furo de reportagem ou alguma coisa exclusiva e publicar na hora errada, com a chamada de redes errada, com design que não é atrativo, que não responde bem a leitura no celular, por exemplo – porque 80% das pessoas estão lendo no celular. Então a gente vem trabalhando bastante para cuidar dessas coisas.  Para que as matérias tenham chamadas que funcionem bem nas redes sociais, tenham apuração que sustente os títulos que estão nas redes sociais, para que não sejam títulos apelativos a troco de nada, e que elas tenham artes, design, ilustração bem pensados pra que chame atenção. Então isso tudo foi usado na hora de preparar as primeiras matérias.  Não diria ao máximo porque ainda teve um componente de pressa, pelos motivos que eu falei antes, mas tinha uma intenção, pelo menos, de a gente usar todo nosso arsenal disponível. Então sim, de certa forma nos beneficiou, mas agora eu gostaria de ter um navio de guerra um pouquinho maior na minha mão. 

Clique aqui para ouvir o primeiro episódio da segunda temporada do podcast Bendita Sois Vós sobre a Vazajato.

Foto: The Intercept Brasil

Geórgia Santos

Sobre #VazaJato e o que cabe ao jornalista

Geórgia Santos
12 de junho de 2019

No último final de semana, o Brasil foi surpreendido com o #Vazajato. O The Intercept Brasil publicou uma série de reportagens que desnudam a Operação Lava Jato e mostram uma colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e o então juiz Sérgio Moro. A operação baseada na Mãos Limpas se mostrou suja, imunda. Mas de repente, o escândalo que mostra que a operação contra a corrupção também corrompeu o sistema virou um debate sobre práticas jornalísticas. Tá bom, vamos embarcar nessa então.

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Nunca fui fã de câmeras escondidas. Em debates com amigos jornalistas, porém, alguns colegas argumentaram que certas coisas jamais seriam descobertas de outra forma. Quantos políticos corruptos já foram desmascarados assim, afinal de contas. Eu discordei de alguns exemplos, concordei com outros e cheguei à conclusão de que é um recurso necessário, mesmo que de exceção. Ou seja, não pode ser a regra, mas precisa existir para os casos extremos, na minha opinião.

Mas a questão é que as câmeras escondidas nunca incomodaram o público, de maneira geral. Pelo contrário, as pessoas parecem gostar de ver um figurão caindo porque alguém gravou algo à espreita. Aquela imagem de qualidade não muito boa com um deputado contando maços de dinheiro dá aquela sensação inigualável de flagrante a quem assiste. Provoca uma reação natural e emocional de justiça. É visceral. Tira da garganta aquele “Toma!”

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Qual não foi minha surpresa, então, ao ver tantas pessoas – jornalistas ou não – questionando a retidão ética do The Intercept Brasil ao publicar conversas privadas que escancaram as relações da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro

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O The Intercept Brasil publicou reportagens que mostram, entre outras coisas, que os procuradores do Ministério Público Federal responsáveis pela Operação Lava Jato falavam abertamente sobre impedir a vitória do PT nas eleições passadas e, mais do que isso, tomaram atitudes para auxiliar nessa questão. As reportagens também mostram que o juiz Sergio Moro colaborou de forma secreta  com os procuradores para ajudar a montar a acusação contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva – apesar das dúvidas internas sobre as provas que fundamentaram as acusações e da ilegalidade da coisa toda.

Segundo os editores, as reportagens foram produzidas a partir de arquivos, enviados por uma fonte anônima, que continham mensagens privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo procuradores da Lava Jato e o hoje ministro da Justiça. Os jornalistas garantem que o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo e que eles foram contatados semanas antes da notícia de invasão do celular de Sérgio Moro – o próprio ministro garantiu que não houve “captação” de conteúdo.”

Mesmo assim, inúmeras pessoas se incomodaram com a publicação que consideraram uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo – e de forma antiética -, atitude que impediu, inclusive, que o público pudesse avaliar a validade das acusações de que as figuras de acusador e julgador estavam misturadas. Lembrando que, no Brasil, a coordenação entre juízes e promotores não é permitida.

Na mesma linha, Sérgio Moro se defendeu questionando a legalidade do processo. Na sequência da publicação das reportagens,  publicou nota em que não nega o teor das conversas, mas sugeriu os meios ilegais pelos quais os arquivos foram obtidos. “Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, disse. 

Sobre a indicação de fonte, o sigilo é algo garantido aos jornalistas pela Constituição Brasileira. Sobre ser uma “invasão criminosa” nos celulares, também não há evidências de que seja o caso. Inclusive, o aplicativo de mensagens Telegram divulgou nota em que se afirma não haver indícios de hacker. “É mais provável que tenha sido malware [um tipo de vírus] ou alguém que não esteja usando uma senha de verificação em duas etapas”, diz a nota. Sem contar a possibilidade de vazamento interno. Sobre entrar em contato antes da publicação, foi uma escolha que o TIB se permitiu para garantir que nenhum dispositivo legal pudesse censurar a divulgação das reportagens, como aconteceu com a revista Crusoé no início em abril deste ano. Mas a defesa de Moro colou.

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Os limites éticos do jornalismo

As primeiras críticas vieram de pessoas preocupadas com o que consideram ser um comportamento “imoral” por parte do The Intercept.  Esse grupo entende que os jornalistas não deveriam utilizar dados obtidos de forma supostamente ilegal – mesmo que não tenha ficado claro. Mas chamou atenção que vários jornalistas que já utilizaram câmeras escondidas tenham endossado essa preocupação.

Se essa divulgação tivesse sido, de fato, equivocada, por que seria mais grave que o uso rotineiro de uma câmera escondida? Por que seria pior fazer imagens de alguém sem que essa pessoa saiba que está sendo gravada? Por que seria pior que gravar o áudio de uma conversa sem autorização? Eu acho que não seria.

Não consigo compreender no que essa divulgação é diferente, por exemplo, do caso Watergate, em que diversas fontes anônimas revelaram segredos da administração de Richard Nixon que provavam, entre outras coisas, abuso de poder. Entre 1972 e 1974, alguém questionou, além dos aliados de Nixon,  a ética do The Washington Post por publicar reportagens a partir da indicação de fontes anônimas?  Durante todo o processo que culminou com a renúncia do presidente dos Estados Unidos e ao indiciamento de dezenas de agentes públicos, os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein trabalhavam majoritariamente com fontes anônimas. A identidade da mais famosa dessas fontes, o Garganta Profunda, só foi revelada 33 anos depois, em 2005.

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No jornalismo investigativo, as fontes sigilosas, conhecidas como whistleblowers, são amplamente utilizadas para revelar ilegalidades e crimes e o caso Watergate é prova da eficiência do método

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Eu acho que debater o limite ético do jornalismo nunca é demais. Mesmo. Mas talvez estejamos fazendo esse debate no nível micro enquanto deveria ser feito no macro. Ou seja, devemos discutir os limites da investigação jornalística – se há – no que se pode chamar de sociedade da informação, em que o fluxo de dados não é unidirecional e atinge uma intensidade, velocidade e volume inéditos.

De todo modo, o limite ético da divulgação das conversas privadas de Dallagnol e Moro levou a uma segunda questão: a comparação entre o #Vazajato e o vazamento da conversas de Lula e Dilma há três anos.

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O grampo de Dilma

Em março de 2016, o então juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de interceptações telefônicas do ex-presidente Lula. As conversas gravadas pela Polícia Federal incluíam um diálogo do petista com a então presidente Dilma Rousseff – que tinha foro privilegiado. Um dos diálogos todos conhecemos, é a conversa que Dilma manda “o “Bessias” junto com o papel” e Lula despede-se com o hoje infame “Tchau, querida”. À época, depois do estrago feito, Moro pediu desculpas pelo equívoco.

Estranhamente, o episódio está sendo usado como comparativo por todos os lados. Alguns veem ironia no fato de Moro questionar a legalidade de vazamentos uma vez que ele mesmo já lançou mão desse artifício. Outros, acham interessante que as pessoas que criticavam o então juiz agora se regozijem com o vazamento do TIB. O tuíte do humorista Antônio Tabet resume o sentimento:

Mas voltemos ao jornalismo. O que Tabet e outros críticos esquecem é que um jornalista e um juiz não tem a mesma função. Um juiz tem o dever de proteger um áudio que não tenha conexão com o processo. Um jornalista tem o dever de divulgar uma informação que seja relevante ao interesse público.

De novo, nunca é demais discutir a ética dos procedimentos e rotinas jornalísticas, mas não é o que se tem feito ao longo desse caso. Questionar a apuração do The Intercept Brasil tem servido somente para diminuir a gravidade de um problema que é de interesse público, que precisa ser de conhecimento do público porque traz à tona um sistema corrompido. As reportagens não mostram que Lula é inocente ou culpado, mas mostram que ele sempre esteve condenado, desde o início. Mostram que eram verdadeiros os alertas de que a Operação estava sendo instrumentalizada para servir a uma força política.

E esse tipo de reportagem precisa ser exaltado, não perseguido. Porque é por esse tipo de história que a liberdade de imprensa é fundamental em uma democracia e é por esse tipo de matéria que ela precisa ser preservada, para que as pessoas possam saber o que as autoridades dizem e fazem quando ninguém está olhando.

Para se ter uma ideia, um “influencer” que não merece menção porque eu não sou escadinha disse que o The Intercept Brasil tem que ser fechado, os “responsáveis” presos e Glen Greenwald tem que ter seu visto brasileiro cassado. O conteúdo foi retuitado por deputados federais do PSL e outros partidos da aliança que sustenta o governo federal. Sem contar as hashtags pedindo para que Greenwald – que já ganhou o Prêmio Pulitzer, considerado o mais importante do jornalismo – seja deportado e as histórias falsas que afirmam que ele e o marido são acusados de espionagem no Reino Unido e, por isso, ele teria encomendado que os hackers invadissem os celulares dos procuradores. Chega de passar pano.

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Ofereço um tuíte do próprio procurador Deltan Dallagnol, de 20 de março de 2016. “Para Dotti [jurista René Dotti que, na ocasião, estava defendendo Sérgio Moro] no conflito entre direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha interesse público.” 

 

Reporteando

Silêncio também é furo jornalístico

Renata Colombo
18 de maio de 2017
(Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Alan Santos/PR

Vocês estão assistindo, meus caros, de camarote no cenário político brasileiro, a um exemplo do que chamamos de preservar o sigilo da fonte. Durante cerca de um mês, pelo menos cinco  instituições diferentes compartilharam das mesmas informações enquanto uma ação da Polícia Federal – nunca antes vista – estava em curso. NINGUÉM vazou sequer uma frase sem sentido. NADA veio a público até o momento certo.

Procuradoria-geral da República (Ministério Público Federal), Supremo Tribunal Federal, delatores da JBS, advogados da JBS, o jornalista Lauro Jardim. O que eles têm em comum? Guardaram um grande segredo durante o tempo necessário para que a operação Lava Jato chegasse ao presidente Michel Temer, ao senador Aécio Neves e a outros políticos do alto clero do governo federal.

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O segredo garantiu que a PF tivesse tempo para colocar carimbos em notas para pagamento de propina e chip rastreador nas malas, para que a corrupção transcorresse da forma mais tranquila possível para os envolvidos – sim, é isso mesmo

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Isso é muito raro, muito. Na maioria das vezes nós, repórteres, somos ansiosos, queremos garantir o furo jornalístico, não admitimos perder. Infernizamos a vida de advogados e assessores para conseguir vazar uma mísera informaçãozinha e eles fazem o mesmo conosco. Porém, segurar a ansiedade também nos permite contar histórias como esta e escrever uma nova versão do Brasil. Porque este livro está um pouco empoeirado, precisando de uma limpeza.

Foto: Alan Santos/PR