O que vocês pensam sobre o futuro do jornalismo e da comunicação? Já pararam para pensar que a forma como produzimos conteúdo está em profunda transformação e ainda vai mudar muito, mas muito mais, nos próximos anos? Eu já, e decidi compartilhar esse incômodo.
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Fui buscar um curso para abrir a caixola
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Pois bem, quase saí correndo, confesso, já na primeira aula. Meu professor e alguns colegas trataram com a maior naturalidade do mundo a ideia de viver em uma realidade virtual, ter uma casa em que os aparelhos se comunicam e tomam decisões, andar em carros voadores, comer comida impressa e transplantar uma cabeça inteira. Mas não saí correndo. Sou muito curiosa pra isso. Em vez disso, passei a pensar mais nesta tal de disrupção, que parece mais difícil de enxergar na comunicação do que na tecnologia, já que estamos falando de um produto subjetivo.
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Disruptar é ousar, dar um salto em vez de seguir a linha reta da evolução natural das coisas. Mas como inovar ainda mais na forma de se comunicar?
Uma coisa é certa: ouvintes, leitores, internautas e telespectadores, querem muito mais de nós
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Eles não querem simplesmente ser informados. Isso eles têm em segundos, num simples acesso ao Facebook, Twitter ou site de notícias. Precisamos dar aos nosso público o diferencial, o além da informação, algo que pode estar na opinião, na personalização, na análise.
E aí me pergunto: até quando vai durar esta forma de fazer jornalismo, respondendo aquelas seis perguntinhas básicas do lead e pronto? Até quando teremos que nos isentar da análise ou da opinião ou do comentário porque foi assim que aprendemos e é assim que as redações fazem?
Quem está do lado de fora da nossa bolha pode não querer exatamente o que estamos oferecendo. Até que ponto estamos ouvindo nosso consumidor de informação? Espero que vocês compartilhem do mesmo incômodo.
(Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Alan Santos/PR
Vocês estão assistindo, meus caros, de camarote no cenário político brasileiro, a um exemplo do que chamamos de preservar o sigilo da fonte. Durante cerca de um mês, pelo menos cinco instituições diferentes compartilharam das mesmas informações enquanto uma ação da Polícia Federal – nunca antes vista – estava em curso. NINGUÉM vazou sequer uma frase sem sentido. NADA veio a público até o momento certo.
Procuradoria-geral da República (Ministério Público Federal), Supremo Tribunal Federal, delatores da JBS, advogados da JBS, o jornalista Lauro Jardim. O que eles têm em comum? Guardaram um grande segredo durante o tempo necessário para que a operação Lava Jato chegasse ao presidente Michel Temer, ao senador Aécio Neves e a outros políticos do alto clero do governo federal.
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O segredo garantiu que a PF tivesse tempo para colocar carimbos em notas para pagamento de propina e chip rastreador nas malas, para que a corrupção transcorresse da forma mais tranquila possível para os envolvidos – sim, é isso mesmo
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Isso é muito raro, muito. Na maioria das vezes nós, repórteres, somos ansiosos, queremos garantir o furo jornalístico, não admitimos perder. Infernizamos a vida de advogados e assessores para conseguir vazar uma mísera informaçãozinha e eles fazem o mesmo conosco. Porém, segurar a ansiedade também nos permite contar histórias como esta e escrever uma nova versão do Brasil. Porque este livro está um pouco empoeirado, precisando de uma limpeza.
Marcos Santos/USP Imagens Tecnologia da informação
Jornalistas, repórteres e editores são seres humanos normais, e não robôs dotados de informação programada, caso ainda haja alguma dúvida. Aquele combinado de informações que chega até as pessoas foi escrito e apurado (guarde estas palavras: apuração e checagem) por uma pessoa como eu, como você, que erra, se confunde e, ao mesmo tempo, também tem ideias brilhantes.
Por que digo isto? Porque a apuração é o princípio mais básico dos básicos para um jornalista
Conheci, ao longo da carreira, muito repórter que divulgava informações que não havia apurado – que fazia uma reportagem com base em outros veículos, sem perguntar nada para fonte alguma. Conheci editor e produtor mais preocupado com o imediatismo da notícia do que com a divulgação correta da história. Conheci plantonista que matou o cara errado porque não checou duas vezes o que estava escrevendo.
O problema é que, às vezes, o errado vira norma e a gente se vê no meio do turbilhão de equívocos
Em uma dessas situações, preocupada em não divulgar o que não havia apurado, me neguei a ler certa informação no ar – era uma notícia dada por outro veículo e da qual eu não tinha nenhuma confirmação com minhas fontes. Comprei uma briga por causa disso, mas dormi tranquila e aliviada. Horas depois da desavença, veio a publicação de uma errata a respeito da nota que não li. A informação estava equivocada.
O colega que errou era um repórter como eu, não era um robô com um big data no cérebro. Não sei se faltou checagem ou houve outro problema, essas coisas acontecem. Mas sei que se eu não me preocupasse com apuração, duas pessoas teriam errado
Me arrependo da briga? Lógico que não. Comprarei outras como esta? Óbvio que sim. Para o ouvinte, leitor ou telespectador, o que vale é o que chega até ele. A errata não tem garantia. Para ele fica a imagem de um jornalista confiável ou não. E não quero ser a segunda opção, já tem muitos por aí.
A ideia fixa é a morte do jornalismo. Dar o passo e comprovar uma tese é o pior caminho para a reportagem. O exercício da dúvida, o permitir-se titubear é o que ainda nos mantém no rumo certo. É o exercício mais complexo a ser feito em momentos de ideias confortáveis. A dúvida é a humanidade da reportagem.
Depois de alguns anos contando histórias, encontrei uma que não queria contar. pelo menos não do jeito tradicional, desse jeito de rádio que aprendi a fazer quase automaticamente. Sei reconhecer a melhor sonora em poucos minutos. edito, falo no improviso, sei o ponto certo de engatar outra. Assim, em um minuto e meio, resumo o mundo.
Mas essa história não merecia uma sonora. Merecia horas do nosso mundo
Era o juri de um caso complexo, mas sem polêmicas. Não havia polêmica alguma, discordância alguma nas imagens que mostravam três policiais militares assassinando a tiros um homem rendido, sentado no chão, em uma área nobre de São Paulo. O homem era um jovem de 18 anos e tinha roubado uma moto minutos antes. Provavelmente nem estaria naquele bairro cheio de condomínios fechados se não fosse a circunstância. Foi perseguido, entregou-se e morreu. Assim, às duas da tarde de um feriado de independência. O caso veio à tona dias depois, quando as imagens das câmeras de segurança de uma dessas ilhas de sossego chegaram à imprensa. Nem o noticiário sangrento e gritado dos fins de tarde apedrejou “os bandidos” e, quase dois anos depois, veio o dia do veredicto.
O julgamento
No tribunal, os três Policiais em nada lembravam aqueles das imagens. Em suas fardas, tinham passos certos, quase ensaiados e um desfecho pronto. Em frente ao júri eram a imagem do achaque. “Sim senhor.” “Não senhor”. “Não fiz isso, não, senhor”. Eram jovens também. O mais velho não passava dos 30. Nossos olhares nunca se cruzaram. Eu olhava pra eles e eles olhavam pro chão.
Enquanto defesa e acusação se enfrentavam numa espécie de festival de atuação, eu olhava para eles e buscava a humanidade que eu não queria encontrar. Eu queria que fossem condenados. Que pagassem pelo crime que cometeram. Eles não deveriam despertar em mim qualquer traço de piedade. “Mataram um homem sem chance de defesa” era o que dizia o promotor. “A sonora perfeita”, meu espírito de rádio. Mas eles precisavam ser julgados. Precisavam ter a chance da defesa.
Os advogados
Ao lado deles, cinco dos melhores advogados de São Paulo. Um deles, conhecido por defender Policiais Militares e conseguir bons resultados. Uma das únicas derrotas foi o caso Carandiru, que teve o julgamento anulado recentemente. Não teve nenhuma grande derrota, então.
O júri
Os jurados, cinco homens e duas mulheres, olhavam atentamente para os gestos daquele homem que esvoaçava a toga preta aberta. Parecia um corvo, curvo. Gritava o mantra dos tempos obscuros. A cada “bandido bom é bandido morto”, me contorcia na cadeira, sempre sob o olhar de um policial militar que fazia a segurança do fórum. Levantei duas vezes durante as oito horas de debate para passar informações à redação. Do outro lado da linha, pouco importava o embate. Queriam a sentença. Aceitei a minha.
Não atendi a alguns telefonemas que mostravam no visor “Estúdio do Ar”. Se era a sentença o interesse, não podia resumir o mundo todo naqueles “você tem quarenta segundos, flor!”. Como não podia usar o celular no tribunal, me dediquei como a uma aula de história. Maldita tecnologia que me tirou a mania de andar com cadernos e canetas marca texto!
O processo
Sem o peso da ansiedade das sonoras, resolvi ouvir com atenção a todos os argumentos dos advogados, que alegavam legítima defesa dos policiais. Sim, eles estavam se defendendo de um homem rendido, sentado no chão e sem camisa. E se estivessem? Me permiti fazer essa pergunta em silêncio. E se aqueles homens, que ganham pouco e não têm preparo algum para a rua tivessem, realmente, se assustado com um movimento brusco do suspeito (como dizia o advogado) e tivessem atirado por reflexo? Então talvez o réu devesse ser outro. Quem deveria responder pela morte do jovem?
O promotor também prendeu minha atenção quando perguntou o que diferenciava aqueles homens “da lei” dos homens “fora da lei”, que matam “por susto” em latrocínios? O que transformava os últimos em bandidos bons e mortos e os primeiros em heróis condecorados? Por que a vida de uns vale menos que uma moto?
A sentença
Foram mais de duas horas de sala secreta, quando os jurados se reúnem para determinar a sentença. Na sala de imprensa a opinião era quase unânime: “Vão ser absolvidos”. O que nos levava a tal conclusão era um vídeo exibido pela defesa nos 10 minutos finais, com imagens de policiais sendo rendidos e mortos por “bandidos maus e vivos”. Cada imagem era narrada aos gritos pelo advogado. Ex-policial, engasgou o pedido de absolvição num início de choro.
Na leitura da sentença, todos os textos prontos, com alguns espaços para trocar as palavras “absolvidos” por “condenados”. Lacunas vazias esperando os anos de pena, caso a segunda alternativa se comprovasse.
A juíza, terceira mulher no meio de tantos homens julgadores, decidiu que a diferença entre os policiais e o ladrão de moto é tudo o que separa os dois mundos. Os homens da lei não tinham aquele passo ensaiado por acaso. Ele era ensaiado, de fato. Sabiam usar as permissões da lei a seu favor. O ladrão de moto não tinha nada por si.
Homicídio simples para um dos PMs. Doze anos e cinco meses. Bem menos que os 26 que a acusação queria, com todos os agravantes. Absolvição para os outros dois.
Ao longo da carreira, jornalistas passam por maus bocados e situações que preferem não lembrar. Somos agredidos, ameaçados, chantageados. Nós, mulheres, frequentemente assediadas. Há algo em nosso trabalho que faz com que as pessoas pensem que somos propriedade delas, ou algo do tipo. Coisas de poder. Sem contar na pressão para divulgarmos nossas fontes. Parecem esquecer que a fonte deve ser preservada. E não sou eu que estou dizendo, é a Constituição Federal.
Mas em meio a tanta coisa desagradável, temos nossos momentos de diversão. E, sim, rimos muito também.
Eu era uma repórter iniciante, uma “foca”, como chamamos no linguajar jornalístico. Era meados de 2009 e eu produzia uma reportagem dessas de prestação de serviços na área da saúde. Não lembro se era sobre gripe, vacinação ou falta de leitos em hospitais – algo bastante comum em Porto Alegre, infelizmente. Mas lembro que era para ser uma matéria trivial, cotidiana da cidade. Como já trabalhava em rádio há um tempo, tinha muitas fontes em hospitais e de profissionais da área e não era difícil o acesso às pessoas, na maioria das vezes. Então liguei para um médico “bam-bam-bam” pedindo uma entrevista para aquela tarde mesmo. Tinha que fechar a reportagem até o fim do dia.
“Dei início a entrevista e tudo corria tudo muito bem até que o telefone captou um ruído estranho vindo de dentro do consultório silencioso do médico”
Estávamos preparados, o operador na mesa de áudio e eu, que já estava no estúdio. Tudo estava certo. Até a hora de a gravação começar. Dei início a entrevista e tudo corria tudo muito bem até que o telefone captou um ruído estranho vindo de dentro do consultório silencioso do médico. O operador e eu fechamos todos os microfones e tivemos ataques de risos. Daqueles fiasquentos, mesmo, de encher o olho de lágrimas e coisa e tal. Foi difícil finalizar. A conclusão a que chegamos é de que também era para ser silencioso o pum que o doutor deixou escapar.
Sim, ele soltou um peido, mesmo. No meio da gravação. E tão alto que conseguimos ouvir.
Guardo a gravação até hoje, mas é claro que, como sempre no jornalismo, não revelo a fonte nem sob tortura. É muito importante preservar as fontes.
Eu sou fã do jornalismo. A essa altura, penso que é alto que já ficou bastante claro. Acho uma das profissões mais fantásticas e necessárias. E não somente porque é a minha, mas porque penso que cumpre um papel importante na vida em sociedade. Quando coloco algo aqui mais negativo ou reflexivo não é porque sou algum tipo de mensageira do apocalipse ou uma pessimista compulsiva. Aliás, que fique claro, se tem algo que eu não faço é reclamar. Mas algumas curiosidades nesta vida reporteira chamam atenção. E às vezes não é algo positivo.
“Já vi jornalista vendendo marmita, brigadeiro, suco, salada de fruta, roupas, obras de arte, e por aí vai”
Que o glamour do jornalismo é totalmente ilusório não se tem dúvidas, afinal, o colega homenageado ou premiado é o mesmo que pisou no barro, no cocô e voltou fedendo a fumaça. Mas uma coisa que tem crescido nas redações e vai além das agruras naturais da profissão é o famoso “bico”. Já vi jornalista vendendo marmita, brigadeiro, suco, salada de fruta, roupas, obras de arte, e por aí vai. Tudo para engordar o porquinho no final do mês, já que nosso salário não acompanha a inflação há muitos anos.
Nem sei dizer se é simplesmente um direito do jornalista ganhar salários melhores de maneira geral, porque, afinal, precisamos nos sustentar como qualquer outra classe trabalhadora, ou se passa um merecimento por tanta dedicação e sacrifício a que somos submetidos diariamente, por ser da natureza da profissão. Afinal, não existe jornalista mais ou menos, este não se cria. Nessa profissão o mergulho é de cabeça.
E precisamos é garantir o plano de saúde em caso de afogamento.
Quando digo a mim mesma que não seria outra coisa na vida que não jornalista, o frio na barriga é um dos motivos. Nem tudo na profissão são flores, quase nada na verdade. A gente ganha mal na maioria das vezes, sofre boicotes, se frustra, ouve mais nãos do que sins. Mas tem sensações que compensam e nos levam à realização pessoal e profissional tão grandes, de desafiar a si mesmo, de provocar uma mudança real no mundo, que a balança equilibra. O que é ruim já não é mais tão péssimo. O que é bom fica ainda mais ótimo. E não, isso não é um texto de autoajuda. É o relato de alguém que virou a vida de cabeça para baixo pra descer de novo a montanha russa e faria de novo e de novo.
Quando falo em desafio, falo em risco, em ter coragem, em ir até o fim, em não sossegar até conseguir, em provar, contestar, não se contentar, não se acomodar, se orgulhar. Isso não se aplica somente no dia-a-dia ou em uma apuração. Este comportamento vale para a vida, afinal vida de repórter passa da porta da redação, é na verdade do lado de fora dela. Quando falo que vale para a vida é porque a profissão e a vida neste caso se misturam. O jornalismo anda ao lado, a notícia assopra num ouvido, a desconfiança sussurra no outro. Mas ele anda descuidado. Os reporteiros andam apressados, ansiosos, preguiçosos, desovam tudo antes de sentir aquele frio na barriga que falei lá em cima. Sabe quando parece que borboletas dançam lindamente no estômago? É isso. Poucas coisas na vida da gente fazem sentir isso. Temos que cuidar disso. Estamos aqui pra falar e cuidar disso.