Reporteando

A dúvida é a humanidade da reportagem

Évelin Argenta
22 de março de 2017

A ideia fixa é a morte do jornalismo. Dar o passo e comprovar uma tese é o pior caminho para a reportagem. O exercício da dúvida, o permitir-se titubear é o que ainda nos mantém no rumo certo. É o exercício mais complexo a ser feito em momentos de ideias confortáveis. A dúvida é a humanidade da reportagem.

Depois de alguns anos contando histórias, encontrei uma que não queria contar. pelo menos não do jeito tradicional, desse jeito de rádio que aprendi a fazer quase automaticamente. Sei reconhecer a melhor sonora em poucos minutos. edito, falo no improviso, sei o ponto certo de engatar outra. Assim, em um minuto e meio, resumo o mundo.

Mas essa história não merecia uma sonora. Merecia horas do nosso mundo

Era o juri de um caso complexo, mas sem polêmicas. Não havia polêmica alguma, discordância alguma nas imagens que mostravam três policiais militares assassinando a tiros um homem rendido, sentado no chão, em uma área nobre de São Paulo. O homem era um jovem de 18 anos e tinha roubado uma moto minutos antes. Provavelmente nem estaria naquele bairro cheio de condomínios fechados se não fosse a circunstância. Foi perseguido, entregou-se e morreu. Assim, às duas da tarde de um feriado de independência. O caso veio à tona dias depois, quando as imagens das câmeras de segurança de uma dessas ilhas de sossego chegaram à imprensa. Nem o noticiário sangrento e gritado dos fins de tarde apedrejou “os bandidos” e, quase dois anos depois, veio o dia do veredicto.

O julgamento

No tribunal, os três Policiais em nada lembravam aqueles das imagens. Em suas fardas, tinham passos certos, quase ensaiados e um desfecho pronto. Em frente ao júri eram a imagem do achaque. “Sim senhor.” “Não senhor”. “Não fiz isso, não, senhor”. Eram jovens também. O mais velho não passava dos 30. Nossos olhares nunca se cruzaram. Eu olhava pra eles e eles olhavam pro chão.

Enquanto defesa e acusação se enfrentavam numa espécie de festival de atuação, eu olhava para eles e buscava a humanidade que eu não queria encontrar. Eu queria que fossem condenados. Que pagassem pelo crime que cometeram. Eles não deveriam despertar em mim qualquer traço de piedade. “Mataram um homem sem chance de defesa” era o que dizia o promotor. “A sonora perfeita”, meu espírito de rádio. Mas eles precisavam ser julgados. Precisavam ter a chance da defesa.

Os advogados

Ao lado deles, cinco dos melhores advogados de São Paulo. Um deles, conhecido por defender Policiais Militares e conseguir bons resultados. Uma das únicas derrotas foi o caso Carandiru, que teve o julgamento anulado recentemente. Não teve nenhuma grande derrota, então.

O júri

Os jurados, cinco homens e duas mulheres, olhavam atentamente para os gestos daquele homem que esvoaçava a toga preta aberta. Parecia um corvo, curvo. Gritava o mantra dos tempos obscuros. A cada “bandido bom é bandido morto”, me contorcia na cadeira, sempre sob o olhar de um policial militar que fazia a segurança do fórum. Levantei duas vezes durante as oito horas de debate para passar informações à redação. Do outro lado da linha, pouco importava o embate. Queriam a sentença. Aceitei a minha.

Não atendi a alguns telefonemas que mostravam no visor “Estúdio do Ar”. Se era a sentença o interesse, não podia resumir o mundo todo naqueles “você tem quarenta segundos, flor!”. Como não podia usar o celular no tribunal, me dediquei como a uma aula de história. Maldita tecnologia que me tirou a mania de andar com cadernos e canetas marca texto!

O processo

Sem o peso da ansiedade das sonoras, resolvi ouvir com atenção a todos os argumentos dos advogados, que alegavam legítima defesa dos policiais. Sim, eles estavam se defendendo de um homem rendido, sentado no chão e sem camisa. E se estivessem? Me permiti fazer essa pergunta em silêncio. E se aqueles homens, que ganham pouco e não têm preparo algum para a rua tivessem, realmente, se assustado com um movimento brusco do suspeito (como dizia o advogado) e tivessem atirado por reflexo? Então talvez o réu devesse ser outro. Quem deveria responder pela morte do jovem?

O promotor também prendeu minha atenção quando perguntou o que diferenciava aqueles homens “da lei” dos homens “fora da lei”, que matam “por susto” em latrocínios? O que transformava os últimos em bandidos bons e mortos e os primeiros em heróis condecorados? Por que a vida de uns vale menos que uma moto?

A sentença

Foram mais de duas horas de sala secreta, quando os jurados se reúnem para determinar a sentença. Na sala de imprensa a opinião era quase unânime: “Vão ser absolvidos”. O que nos levava a tal conclusão era um vídeo exibido pela defesa nos 10 minutos finais, com imagens de policiais sendo rendidos e mortos por “bandidos maus e vivos”. Cada imagem era narrada aos gritos pelo advogado. Ex-policial, engasgou o pedido de absolvição num início de choro.

Na leitura da sentença, todos os textos prontos, com alguns espaços para trocar as palavras “absolvidos” por “condenados”. Lacunas vazias esperando os anos de pena, caso a segunda alternativa se comprovasse.

A juíza, terceira mulher no meio de tantos homens julgadores, decidiu que a diferença entre os policiais e o ladrão de moto é tudo o que separa os dois mundos. Os homens da lei não tinham aquele passo ensaiado por acaso. Ele era ensaiado, de fato. Sabiam usar as permissões da lei a seu favor. O ladrão de moto não tinha nada por si.

Homicídio simples para um dos PMs. Doze anos e cinco meses. Bem menos que os 26 que a acusação queria, com todos os agravantes. Absolvição para os outros dois.

Vitoria da defesa. Satisfação da promotoria.