Igor Natusch

O “voto consciente” perdeu espaço para o protesto. E a culpa é do próprio sistema

Igor Natusch
22 de fevereiro de 2017
Rio de Janeiro - Manifestantes e policiais militares entram em confronto durante protesto no centro da cidade ( Fernando Frazão/Agência Brasil)

Que vivemos tempos de crescente descrença nas instituições e de revoltas quase periódicas nas ruas (e nas redes) de todo o Brasil, é algo que qualquer um pode constatar por si só. Se gostamos ou não do grito de guerra ou da vidraça quebrada presente (ou ausente) na ocasião, a conclusão continua a mesma: muita gente, de diferentes esferas sociais e políticas, resolveu reclamar do que julga incorreto no país. Em resposta, é muito comum que se faça uma defesa do voto como elemento democrático de mudança, quase como se fosse ele o caminho disponível e, mais ainda, o único correto para a manifestação política. Uma fala do ministro do STF Marco Aurélio Mello, dita em entrevista à Veja em 2014, ainda é uma das mais ilustrativas que conheço a esse respeito:

“O local de protesto por excelência é a urna. (…) Não é mediante a apatia nem o protesto extremado que chegaremos no Brasil a dias melhores. Chegaremos com a participação de todos, escolhendo os melhores candidatos. Mais importante do que o “vem para a rua”, que virou moda, é o “vem para a urna”. O protesto eficiente não se faz queimando lixeiras, mas participando da vida pública.”

Considero a fala do ministro equivocada em diferentes níveis. E um tanto simplista em termos de leitura, também.

Fiquemos na prática, sem teorizar muito. “Votar bem”, no Brasil (no mundo?) é cada vez mais difícil, quase impossível em várias situações. E nem tanto pelos candidatos em si: é porque os eleitos, sejam quais forem, têm uma margem de atuação cada vez mais estreita e engessada. Quem nos governa não é (ou é cada vez menos) o presidente, governador, prefeito, deputados ou vereadores: é uma estrutura consolidada de troca de favores, baseada na necessidade de amplas alianças políticas e financiada de forma no mínimo antiética por grandes grupos econômicos e empresariais – que são, no fundo, quem determinam as políticas públicas de médio e longo prazo, obviamente dentro dos próprios campos de interesse.

É um sistema de manutenção de poder e de privilégios, no qual o eleito (use ele uma estrela no peito ou um tucano em sua sigla) tem margem limitada de atuação e quase nenhum espaço para atuar fora dos eixos previamente estabelecidos, por mais que eventualmente deseje. É um problema muito mais sistêmico do que fruto da desonestidade ou incompetência dos eleitos – embora nada disso, é claro, inocente o político corrupto e/ou incompetente de seus fracassos. Meu ponto, aqui, é que o voto individual colide contra um enorme muro que protege os círculos mais altos do poder econômico – o que nos aproxima muito mais de uma plutocracia legitimada pelo voto do que de regimes democráticos de fato. Aqui no Brasil, e em praticamente todo o mundo.

E por que tanta gente protesta – entendendo protesto como algo muito mais comum e numeroso que as manifestações de rua de 2013 ou 2015/16? Porque encontrou no protesto uma forma desesperada talvez, mas muito mais direta e eficiente de atuação política. Coloco fogo em alguns pneus e a companhia elétrica finalmente aparece para consertar a luz na minha rua. Pressiono deputados na Assembleia e eles, de vez em quando, recuam em algumas decisões polêmicas. Eu protesto nas ruas e, às vezes, até reverto o aumento de passagem nos ônibus. Protesto não conquista tudo (e o visível aumento na repressão violenta aos protestos indica claramente a disposição de anular esse modelo de reivindicação), mas é onde as pessoas se sentem capazes de uma atuação política de resultados visíveis. Elas simplesmente detectaram, ao natural, o que a reflexão pode nos mostrar de forma talvez mais elaborada: que o nosso sistema político funciona cada vez menos.

Não é que votar não preste para nada. No mínimo, é algo que deve ser feito com grande responsabilidade, pois ainda é o mecanismo para definir quem, individualmente, estará em nossas casas representativas. E é bem melhor ter um Congresso pavoroso, mas eleito no voto, do que um definido autocraticamente por um tirano de ocasião. Ainda assim, a lógica do excelentíssimo ministro me parece distorcida. Votar, cada vez mais, para o bem e para o mal, é um gesto acessório; o que marca nosso atual momento é a ação política direta, seja elaborada ou ingênua, seja fechando ruas ou gritando contra um determinado partido nas redes sociais. E a culpa, se é que podemos falar em culpa, não é de quem incendeia a lixeira ou de quem quer o fantoche reacionário como Presidente da República: é do nosso sistema engessado, contaminado pelo poder financeiro, que se afunda mais e mais em descrédito para que indivíduos possam salvar a própria pele. A política representativa, no Brasil (no mundo?) precisa mudar muito, mas muito mesmo para reverter esse jogo. E não é falando em “votar bem” que vamos conseguir evitar qualquer desdobramento negativo. Por um simples motivo: antes de pedir um “voto consciente”, é preciso criar um cenário onde ele possa, de fato, ter eficiência.