Igor Natusch

Faltava a caserna se assanhar. Agora, não falta mais nada

Igor Natusch
4 de abril de 2018
Brasília - O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Entre os muitos legados negativos do governo de Michel Temer, a recondução dos militares para o centro do debate político certamente estará entre os mais danosos. À intervenção no Rio de Janeiro, sem estratégia ou linha de ação, seguiram-se ridículas relativizações do caráter ditatorial do regime militar brasileiro, ainda mais servis e deploráveis vindas de quem fez carreira como constitucionalista. A fala insensata e afrontosa do general Villas Boas, que nem vou citar aqui porque já ganhou bem mais citações do que merece, já recebeu a primeira resposta do governo: um afago do ministro Carlos Marun, elogiando o “democrata” que apenas “demonstrou preocupação”.  O Planalto já garantiu que vai ficar quietinho.

Enquanto se revezam, os homens do governo, em bajular o general e jogar panos quentes sobre sua verborreia, atiçam-se os reacionários saudosos da ditadura, enquanto as casernas ficam mais e mais inclinadas a achar que a solução da crise política passa por eles, que políticos não são e nem devem ser.

O que cometeu o general Villas Boas é algo intolerável em qualquer democracia. O Anexo I do Regime Disciplinar do Exército, que trata das transgressões, explicita, entre os artigos 56 e 59, as vedações para manifestação política por parte de militares da ativa – incluindo, no item 59, “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”. Atuar pela estabilidade dos Três Poderes também é uma de suas obrigações. Se o leitor ou leitora acha que a fala cheia de insinuações do general não provocou discussão política nem prejudicou a estabilidade do Judiciário, bem, aí eu não posso fazer mais nada.

A diatribe do general deveria ser imediatamente repudiada por todos os setores democráticos. Nada disso: o Judiciário em geral finge que não ouviu, o TRF-4 chega a dar like no tweet onde a transgressão foi cometida. A Presidência da República, é claro, nada dirá, pois Michel Temer faz um dos governos mais minúsculos já vistos por essa nação, completamente submetido à inglória tarefa de salvar o próprio couro. Com sorte, vai para a história apenas como frouxo e vendilhão, e não como traidor que rifou o Brasil e a democracia para escapar de acusações das quais parece incapaz de se defender.

O Jornal Nacional, ao invés de questionar a conveniência de uma declaração dessas em momento de enorme tensão, encerra sua edição lendo a fala de Villas Boas na íntegra – apenas isso, lendo e dando boa noite, sem nenhum comentário adicional. Folha de S. Paulo e Estadão, para mencionar apenas dois, prestam-se alegremente ao papel de megafone para militares da reserva que bravateiam o retorno do arbítrio. Publicam com destaque anúncios pagos chamando para protestos de verde e amarelo, onde bonecos representando ministros do STF são queimados ao som de Black Sabbath.

Em um cenário desses, tudo tornou-se possível, até mesmo os mais lúbricos delírios dos generais de pijama. Mesmo porque, agora, eles não deliram sozinhos: têm a companhia de generais da ativa que mandam recados públicos ao Judiciário, além do braço forte de muitos jovens soldados com fotos de Jair Bolsonaro na cabeceira, saudosos de um passado glorioso que só existe em suas imaginações.

Os que sentem saudades do pau de arara acham espaço na mídia como se articulistas fossem, como se suas opiniões tivessem espaço na própria democracia que detestam. Para os grupos que vão às ruas nesses últimos dias, nunca houve problema com a corrupção: há, isso sim, um ódio primal e irracional a Lula, ao PT e às imagens difusas de esquerdismo que ambos evocam. Ou seja, nessa saudade doentia de um passado trágico, não nos faltam sequer os fantasmas comunistas de ocasião.

Que a democracia brasileira vive um período de convulsão, isso ninguém com o mínimo de bom senso discute. O núcleo do governo Temer é formado de homens atolados em denúncias de corrupção, enquanto o próprio presidente agarra-se ao foro privilegiado com unhas e dentes, gastando fortunas em emendas parlamentares para convencer um Congresso recheado de gente questionável a votar em seu favor. Ministros do STF dão entrevistas sobre casos que podem julgar como se falassem do futebol do fim de semana, enquanto membros do Ministério Público tratam a si mesmos como protótipos de Messias e fazem jejum para combater a impunidade.

A cadela que pariu o cão bastardo está sempre entrando no cio, e o que não falta no Brasil é ração para alimentar essa ninhada abjeta.

Ainda assim, o conceito de democracia – essa coisa que muitas vezes é miragem, outras tantas utopia, e que boa parte dos que a exigem estão dispostos a rasgar em pedaços na primeira oportunidade – merece ser preservado. É uma boa luta. E não é repetindo como farsa um salvacionismo trágico que só colocou o Brasil na lama que estaremos fazendo algo nessa direção. Ao general, cabe conter sua incontinência verbal e fazer a guarda das instituições em silêncio, ao invés de jogar querosene no fogo que pode consumir tudo que é seu dever proteger.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Igor Natusch

Intervenção federal: mais um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
21 de fevereiro de 2018

Vamos falar sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro? OK, vamos.

 

Era uma vez um iceberg. Vamos imaginar, em nome de facilitar o nosso contar de história, que o nome do iceberg é “violência urbana“. Ele é um iceberg bem grande, mas vem se tornando mais problemático a cada ano, na medida em que não para de derreter e molhar as pessoas. Sendo feito de gelo, o iceberg sempre derreteu, pois derreter é de sua natureza, e sempre foi necessário enxugá-lo de alguma forma. O problema é que o iceberg está muito perto de uma fonte desgraçada de calor, daquelas que deixa tudo quente para caramba – e que ninguém sequer cogita desligar, porque muitos acham conveniente que essa calefação siga ligada, mesmo que só alguns poucos de fato esquentem os pés a partir dela. Segue o calor perto do iceberg, segue o iceberg derretendo mais do que o normal, e segue o problema permanente de enxugar esse gelo todo.

São as pessoas mais pobres da comunidade em torno do iceberg as que moram mais próximas dele, e que portanto se molham mais com a água que não para de derreter. Mas o pessoal um pouco mais distante, que também se incomoda mesmo não vivendo tão perto do iceberg, é quem grita mais alto contra a situação. Precisamos enxugar esse iceberg mais rápido, dizem elas. O derretimento do iceberg está completamente fora de controle.

Estando um pouco distantes como estão, não conseguem enxergar o perrengue pelo qual estão passando os enxugadores de iceberg: as toalhas de péssima qualidade e em quantidade menor que o necessário, a falta de treinamento dos enxugadores mais novos, a inexistência de uma estratégia para que a enxugada seja um pouco mais eficiente. Alguns enxugadores desviam toalhas para o mercado negro, outros jogam as toalhas encharcadas em cima das comunidades mais próximas, molhando aquelas pessoas ainda mais do que já estão. Uma bagunça, enfim.

.

Mas o pessoal que está um pouco mais longe do iceberg, mesmo que tenha a melhor intenção e a mais justa das preocupações, não consegue enxergar direito essas coisas todas. Tudo que veem é a água do iceberg invadindo o pátio, entrando por baixo da porta de casa.

.

E então erguem a voz para falar com o andar de cima, que coordena as tropas de enxugadores e, ao mesmo tempo, é quem fabrica e vende as toalhas para a operação. Isso tudo dá a eles muito dinheiro, fazendo com que possam pagar pelas confortáveis peças do andar de cima. Alem disso, estão com os pés bem quentes pelo uso contínuo da calefação e, uma vez morando acima de tudo que está acontecendo, há pouco ou nenhum risco real de se molharem em meio à bagunça lá de baixo. Erguem então a voz, os que moram no andar de baixo, e gritam aos de cima: precisamos de mais toalhas. Façam alguma coisa.

Gritam assim uma, duas, inúmeras vezes.

Com o tempo, porém, começam a se dar conta de algo. Começam a perceber que são os do andar de cima que fabricam as toalhas, ganham dinheiro a partir delas e que, quem sabe, não estão realmente dispostos a resolver o problema do iceberg. Começam a notar que eles descem a escada, dizem “OK, está tudo sob controle”, fazem um discurso motivador e ufanista para os enxugadores, sobem de novo aos seus aposentos e o problema segue mais ou menos igual. Percebem que, à menor menção de que desligar a calefação seria uma boa ideia, os donos das coberturas ficam muito irritados, gritam bonitos palavrões, mudam quase imediatamente de assunto. E mais importante: os que estão um pouco mais longe, mas não distantes o suficiente para que a água gelada do iceberg não os alcance, percebem que lá, no confortável andar de cima, os seus líderes nunca irão se molhar. E, é claro, se chateiam com essas coisas todas.

.

Desçam aqui embaixo, gritam os que estão no meio do caminho entre a cobertura e o iceberg. Vocês não prestam para nada! Venham se molhar junto com a gente! Chegam, vejam só, a ameaçar subir as escadas e expulsar os atuais proprietários do andar de cima, insistem que vão arranjar outras pessoas para comandar as tropas de enxugadores de gelo.

Isso, é claro, deixa os donos do andar de cima um pouco preocupados.

.

Diante dos protestos crescentes, acabam inventando uma solução. Convocam os protetores da fronteira, que impedem os povos de outros vilarejos de eventualmente invadirem aquela área, ainda um pouco mais seca, fugindo de seus próprios icebergs insolúveis. Eles não são bons em manusear toalhas: na verdade, já foram chamados algumas vezes, em situações de suposta emergência, e não houve qualquer melhora visível no derretimento do gelo. Mas são muito respeitados pelo pessoal do andar de baixo, que enxergam neles os homens mais fortes de toda aquela comunidade. E é isso, acima de tudo, que os do andar de cima têm em mente.

.

Convocam os protetores de fronteira e dizem: agora vocês serão a elite dos enxugadores de gelo.

.

Dão a eles as toalhas mais sofisticadas que conseguem tecer – mas não muitas, claro, pois se houver abundância periga até conseguirem manter o iceberg seco por algum tempo. Entregam a eles também uns esfregões, que não são de muita utilidade para enxugar a água que está no chão, mas causam um belo impacto visual. Anunciam sua chegada com banda de música, câmeras, pompa e circunstância. E dizem: vão lá, campeões de nosso povo. Deem o seu melhor. Enxuguem esse iceberg por alguns meses e temos certeza que, depois disso, ele não derreterá nunca mais. Confiamos em vocês!

Os protetores de fronteira sentem uma ponta de orgulho pela consideração recebida, mas parecem um pouco confusos. Seguram os toalhões de forma desajeitada, usam os esfregões sem nenhuma perícia, molhando bastante e até machucando os que estão bem pertinho do iceberg. Mas o pessoal que mora um pouco mais longe está em êxtase. Era exatamente disso que precisávamos, vibram. Enfim o andar de cima tomou um gesto corajoso. Chega de gente fraca enxugando gelo. Chega do iceberg lá, debochando da gente sem que ninguém fizesse nada. Viva o andar de cima!

Alguns tentam criticar a decisão dos coordenadores, dizem que os protetores de fronteira não deveriam enxugar gelo, que isso não vai dar certo. Mas a satisfação da maioria sufoca esses protestos. Quem não enxuga que não atrapalhe! Iceberg bom é iceberg seco! Que venha a elite!

Sorridentes e aliviados, os moradores da cobertura voltam a repousar em seus confortáveis divãs, voltam a esquentar os pés no calorzinho gostoso da calefação. E lá vai a elite dos enxugadores, sob aplausos, marchando de forma ritmada e firme, atacar o iceberg que não para de derreter.

O que as pessoas que moram ao lado do iceberg pensam disso tudo, ninguém sabe. Mas enfim, não dá para levar em conta o lado de todo mundo em um conto de fadas como esse.

Foto: Andrew Malone