Voos Literários

Mafalda, ícone feminista

Flávia Cunha
3 de outubro de 2020

Questionadora, crítica e interessada por política. Assim é a pequena Mafalda, criação do genial cartunista argentino Quino. Certamente, ela pode ser considerada uma personagem com comportamento feminista, ao subverter o papel tipicamente atribuído ao sexo feminino. Um exemplo disso é o fato dela pouco se interessa por distrações tradicionalmente associadas a meninas, como brincar de boneca. Também não pensa em no futuro casar ou ser dona de casa.  Ela é o oposto de Susanita, a amiga da mesma idade que tem uma postura mais conservadora e fútil.

FEMINISMO NOS ANOS 1960/70

Se observarmos apenas a temática de questionamento do papel da mulher na sociedade, a criação de Quino já chama a atenção. O mérito é ainda maior por todas essas discussões terem começado em 1964, em tirinhas publicadas em jornais argentinos. Em 1966, um golpe de Estado deu início a uma ditadura militar na Argentina, que durou até 1973, mesmo ano em que Quino decide encerrar as publicações de histórias inéditas. Sendo assim, é bastante corajoso que o cartunista tenha abordado, por meio da menina feminista, temas como democracia, liberdade e desigualdade social em pleno período de ditadura. Talvez para abrandar eventuais censuras, o autor fazia uso do humor e trazia à tona outros assuntos, como o amor de parte dos personagens pelos Beatles e o ódio mortal de Mafalda por sopa.


MAFALDA E OS DIREITOS HUMANOS

Mesmo sendo raros os materiais inéditos da personagem após 1973, ela permanece um sucesso mundial, com as obras já tendo sido traduzidas para mais de 30 idiomas. Um raro exemplo de conteúdo produzido depois disso são desenhos que acompanharam uma campanha da ONU de divulgação da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1976. O material é bastante difícil de ser encontrado na íntegra e localizei apenas algumas imagens esparsas em pesquisas na Internet., como essa.

NOVO LIVRO COM ABORDAGEM FEMINISTA

Ao longo dos anos, diversas coletâneas foram lançadas, inclusive no Brasil, onde os livros da personagem foram publicados pela primeira vez em 1982. Em breve, será lançada por aqui uma obra contendo somente tirinhas com conteúdo feminista. Em espanhol, a publicação dessa obra ocorreu no ano passado. O livro Mafalda: Feminino Singular, será lançado em dezembro de 2020, pela editora Martins e Fontes. Sem dúvida, uma boa notícia para os fãs de Quino e de sua criação mais famosa.

Esse texto é uma singela homenagem ao cartunista Quino, falecido nessa semana. Em 2017, a coluna Voos Literários também mencionou outros aspectos a respeito da personagem Mafalda.

Imagem: Contracapa livro Mafalda: Femenino Singular/Editora Lúmen

Voos Literários

Serão os cartunistas visionários?

Flávia Cunha
7 de fevereiro de 2017

Uma das minhas tirinhas favoritas é a da personagem Mafalda, criada pelo argentino Quino e publicada originalmente entre os anos de 1964 e 1973. A fanpage da personagem no Facebook conta com quase 7 milhões de curtidas, um número respeitável em se tratando de um conteúdo altamente reflexivo. Mafalda, a menina com uma visão de mundo questionadora, que odeia sopa e ama os Beatles, encanta principalmente a leitores da América Latina e Europa.

Lá por 2015, ganhou uma exposição em São Paulo que teve milhares de visitantes. E qual será a razão da continuidade de seu sucesso durante tanto tempo? Arrisco dizer que seja o fato de Mafalda dar voz a angústias infelizmente ainda presentes nos dias atuais, apesar de suas histórias passarem-se na década de 1960. Para mim, uma das frases mais marcantes da personagem é “Essa é a borracha de apagar ideologias”, ao referir-se ao cassetete de um policial. Provavelmente, é o que ainda pensam muitos dos jovens que foram às ruas em protestos e sofreram repressão da polícia, em diferentes estados brasileiros.

Outros integrantes do universo criado por Quino que me chamam especialmente a atenção é a tartaruguinha Burocracia, um símbolo do que há de pior no poder público e suas lentas engrenagens, e a pequena Liberdade, bem menor que o restante dos personagens.

No contexto brasileiro, segue muito atual a tirinha As Cobras, de Luis Fernando Verissimo, apesar do escritor ter parado com a sua produção no já distante ano de 1997, após sua criação na época da ditadura militar no Brasil. Além da dupla de cobrinhas do título, impagáveis em suas reflexões marcadas pela fina ironia de Verissimo contra o poder estabelecido, o personagem Queromeu, o corrupião corrupto, é  a prova de que a corrupção brasileira está longe de ser uma novidade.

Para quem ficou nostálgico, em 2010 foi lançado pela editora Objetiva o livro As Cobras – A Antologia Definitiva, ainda disponível em formato digital nos sites das principais livrarias. A versão impressa dá para conseguir nos sebos online.

(Dedico esse texto ao meu saudoso pai, que me ensinou a ler nas entrelinhas e levar a sério – sem perder o senso de humor – o conteúdo de HQs e cartuns. E agradeço a consultoria do jornalista e amigo geek Eduardo da Camino.)

Para ir além:

Mafalda – Todas as Tiras (edição comemorativa dos 50 anos da personagem) – Martins Editora