Homenagem pessoal a uma figura que representa o tempo e o samba
Airan Albino
21 de novembro de 2019
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“Veja bem, nosso amor é perfeito.” Já ouvi tantas vezes essa frase, esse verso, em muitas vozes e momentos diferentes. Principalmente na voz do meu pai. Mesmo sendo dos casos mais raros, por estar junto dele nos rolês, entre seus amigos e amigas, passei a chamar meu pai pelo nome, Adão, o Adãozinho.
Acho que por essas e outras respeito demais um mais velho. Admiro essa figura que carrega em si o tempo. Esse mesmo Adão, me criou cantando suas reais letras, seus nobres versos. Todos os dias, todas as semanas, me conduzia ao espaço, ao universo do samba quando eu ainda era só uma esponja.
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A foto é de 10 de agosto de 2019, sábado, véspera de Dia dos Pais
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Aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro. Crédito: Airan Albino
Eis que lhe vejo, seu Reinaldo, saindo de um dos portões de desembarque. Parecia mentira. Não ia perder essa chance de falar com o senhor. Apesar de achar que não teria coragem, fui. Mesmo de fone, o senhor parou e me escutou. Agradeceu pelo carinho e falou que teria mais shows pela frente. Aquilo pra mim foi tudo. Lhe desejei um feliz dia.
Nesse mesmo 2019, ano em que não haveria motivos pra gente falar dessa gente de bem que só tem mal pra dar, falamos. Falamos até de linha sucessória de famílias brasileiras. Bom, na minha família, o Adão me disse desde guri, que eu era um príncipe. Ele me carregava pra cima e pra baixo, e cantava, cantava muito as músicas do senhor. Que o senhor descanse em paz.
Que os outros tantos e tantas que o senhor inspirou sigam carregando o aprendizado de suas letras e compartilhando com o tempo. Eu prometo fazer isso. Obrigado por me mostrar a realeza, Príncipe. Essa é a minha oração pedindo pro senhor Oyá.
Eu entrei para o mundo das séries no ano passado. Demorei porque acreditava que não teria tempo para assistir temporadas e mais temporadas. Comecei com uma série que todo mundo falava bem: Breaking Bad. Vi as cinco temporadas e gostei, mas não achei tudo isso não. Tudo bem que não vi na época em que muitos reservaram certo período do dia para ver a série. Entretanto, só uma das temporadas me chamou a atenção, a quarta, que contém o personagem Gus Fring (Giancarlo Esposito). Beleza, eu obviamente iria me interessar na trama no momento que veria um semelhante.
Depois da série do Heisenberg, fui para a da Piper, Orange Is The New Black. Novamente por indicações do tipo “você tem que ver essa!”. Adivinha o que aconteceu? Repeti a obviedade e amei as personagens negras, como a Suzanne “Crazy Eyes” Warren (Uzo Aduba), a Tasha “Taystee” Jefferson (Danielle Brooks), a Poussey Washington (Samira Wiley) e a Cindy “Black Cindy” Hayes (Adrienne C. Moore).
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Eu sabia o porquê do meu interesse, era simples: eu me via representado e me enxergava em diversas situações interpretadas por elas
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Mas então, eu era o cara chato que só gostava das séries que tinham negros? Sim, porque isso realmente acontecia; e não, porque eu não estava fazendo nada de diferente dos meus amigos brancos. Assim como toda pessoa branca se identifica com personagens brancos, eu, negro, me identificava com os personagens negros. O grande problema dessa comparação é como nos é apresentada essa identificação: o branco é o padrão, e o negro é o segmento.
É pesado e triste perceber isso. Uma grande produção branca é tida como abrangente, todos os públicos são obrigados a ver, La La Land é um bom exemplo. Enquanto Moonlight, a grande produção negra é específica, direcionada apenas para negros. Essa é a parte triste.Na música Moonlight, Jay-Z resume o episódio do Oscar no refrão.
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We stuck in La La Land/ Even when we win we gon’ lose
(Nós estamos presos à La La Land, mesmo quando nós ganhamos, nós perdemos)
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Ainda sobre o Oscar, a parte pesada é ver comentários das pessoas que “são mais compreensíveis”. Casey Affleck e Denzel Washington estavam concorrendo na categoria de melhor ator. Eu li num post de um amigo que: o Casey sabia sentir dor e transparecia isso em seus silêncios, já o Denzel gritava demais. O personagem que tinha o comportamento padrão ganhou. Isso é pesado por que? Porque o papel interpretado por Denzel (Troy Maxson) é praticamente o retrato da figura paterna negra. Eu me senti muito ofendido por esse comentário.
Atualmente, muitas séries estão em destaque em redes sociais, mas o padrão e o segmento continuam. Pela HBO, Game Of Thrones é o padrão e Insecure o segmento. Pela Netflix, Stranger Things é o sucesso (e tem até um negro) enquanto She Gotta Have It atingiu apenas o público negro. Não é errado afirmar que a produção multimídia negra está no seu melhor momento e, mesmo assim, não é valorizada. Além das já citadas temos 13th, Greenleaf, Black-Ish, Queen Sugar, How to Get Away with Murder, Empire, Atlanta, Luke Cage, OJ: Made In America, Scandal, Dear White People e The Get Down (que foi cancelada) como séries de excelência. Não é errado uma pessoa branca gostar de filmes e séries que a representa. O problema é tratar o interesse de uma parcela como o interesse do todo.
Dia 20 de novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra. A data foi escolhida em homenagem à morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), principal referência negra na história do Brasil. Todos nós sabemos disso, do porquê ser feriado em algumas cidades. Entretanto, uma coisa não pode passar batido nessas orações: referência.
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Zumbi é, sim, o primeiro nome em que pensamos quando falamos de negritude no país, mas ele não é um bastião, o único
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Temos muitas referências negras na nossa história e, propositalmente, não sabemos de sua existência. Em conversas com amigos – negros e brancos de diferentes classes sociais – fiquei assustado ao saber do desconhecimento de nomes como Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994). Esses dois foram líderes contemporâneos que tiveram impacto na cultura e política negra brasileira no último século, mas por que não os conhecemos? Ou pior: por que não vamos atrás de suas histórias?
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Porque o racismo age de muitas formas e invisibilizar o negro é uma delas
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Sou de Porto Alegre, nascido e criado, e só em 2015 passei a conhecer eventos de identidade e resistência do povo negro da cidade. Porto Alegre é uma cidade com uma segregação absurda. Todos nós, moradores da Capital, sabemos disso. No momento em que falamos os nomes dos bairros Moinhos de Vento e Restinga, conseguimos enxergar a cor dos moradores. Conseguimos fazer as associações de branco e negro; rico e pobre; central e periférico; bom e ruim; organizado e bagunçado; limpo e sujo. E fazemos isso sem esforço nenhum, “é natural.”
O Dia Nacional da Consciência Negra é um dia para que se reflita em cima de questões como essa, a da invisibilidade. Ele serve para que o debate do racismo seja levado ao maior número de pessoas possível, brancas e/ou negras. Ele serve para pensarmos em formas de mudar essas associações de bom e ruim, no momento em que falamos sobre pessoas brancas e pessoas negras. Ele serve para que as referências negras não sejam esquecidas, mas, sim, estudadas e respeitadas.
E esse momento de reflexão sobre a invisibilidade pode começar em Porto Alegre, uma das cidades mais ricas em cultura e história negra do Brasil. Na cidade que abrigou uma das maiores referências negras do país: Oliveira Silveira (1941-2009). Na cidade em que se iniciou o movimento e o projeto para que o 20 de novembro fosse escolhido como o dia da nossa consciência negra.
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*Na foto, Oliveira Silveira, poeta, militante do Movimento Negro e um dos líderes da campanha pelo reconhecimento do Dia Nacional da Consciência Negra (Divulgação)