Voos Literários

Bacurau, Vidas Secas e Os Sertões

Flávia Cunha
8 de outubro de 2019

ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS DO FILME BACURAU!

Bacurau tem dado o que falar. Premiado em festivais internacionais e com um público expressivo para uma produção brasileira, o longa-metragem distópico também virou sucesso na Internet, com muitos memes e menções ao filme nas redes sociais.

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Mesmo assim, enfrenta críticas de parte de seus espectadores, que não embarcaram no enredo que mistura gêneros, possibilita alegorias políticas e não tem um protagonista definido, apesar da atuação marcante de uma atriz do porte de Sônia Braga. Eu não sou crítica de cinema e nem pretendo me aventurar aqui nessa seara, mas farei algumas comparações da história com a literatura, defendendo a ideia de que o grande protagonista dessa história é o povo nordestino e, por isso, a falta de protagonismos se justifica. 

Acredito que existam na trama destaques para figurantes, como o menino que responde que quem nasce em Bacurau “é gente” ou à senhorinha que reage com um impagável “Que roupa é essa, menino?” ao deparar com o retorno à cidade do anti-herói queer Lunga e suas vestimentas chamativas. Os moradores de Bacurau são orgulhosos de sua origem, mas percebem o preconceito de forasteiros. Esses personagens inclusive tentam se mostrar superiores, em diálogos marcados por xenofobia com os atiradores norte-americanos. 

Dentro desse contexto de análise da figura dos residentes do sertão nordestino no universo ficcional literário, recorro primeiramente à Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Esse talvez seja o arquétipo que justificaria a escolha de Bacurau para o safári humano promovido pelos americanos. Imaginando que encontrariam homens fracos e conformados com seu destino, como o Fabiano do clássico de Graciliano:

Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas. as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: — “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.” Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza.”

Mas acredito que os moradores de Bacurau estejam mais para os nordestinos descritos por Euclides da Cunha, em Os Sertões, na famosa citação: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”O autor não deixa, porém, de demonstrar seu preconceito, ao fazer comentários depreciativos: 

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente.”

Ao avançar na narrativa, Euclides da Cunha revela sua percepção de que, em situações de conflito como a que está narrando, a Guerra de Canudos, o nordestino demonstra uma força extraordinária:

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”

É esse despertar de forças criado pela resistência e união dos habitantes da cidade diante dos inimigos estrangeiros que considero o grande mérito de Bacurau. E, apesar de um de seus diretores, Mendonça Filho, declarar que não existe uma mensagem por trás do filme, fica difícil não vibrar com a mobilização perante uma situação de crise. Os moradores da pequena cidade resistem bravamente, assim como os poucos sobreviventes da Guerra de Canudos  (uma criança, um velho e dois adultos). No filme, ainda sobra a catarse perante a classe política brasileira, na vingança contra o patético prefeito Tony Jr., desdenhado pelos moradores desde o começo do enredo. 

 

Definitivamente, o sertanejo é um forte em Bacurau. 

 

 

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Doutrinador

Pedro Henrique Gomes
10 de novembro de 2018

A corrupção penetrou, como doença autoimune, todos os departamentos da política nacional. Sua estrutura organizacional está profundamente corrompida, e dela é preciso desconfiar sempre. Saúde e segurança funcionam apenas como estratégias de campanha e retórica política. Os grandes políticos manipulam o sistema, jogam sujo sem pestanejar, como mafiosos. Diante de tal cenário, manifestações eclodem e a sensação de apatia infesta o ambiente, as ruas e as consciências. O sistema político precisa ser corrigido, e ele está por um fio de romper.

Após uma tragédia familiar, o policial Miguel (Kiko Pissolato) decide ser o poder de reação a esse sistema. Ele identifica o descalabro ao ver o governador do Estado, notório corrupto, escapar e, somando isso a dor e o ódio que lhe consomem violentamente, veste a roupagem do justiceiro solitário. Compreendemos seus motivos: uma bala perdida encontrou o peito de sua filha quando eles iam a um jogo de futebol. No hospital, imensas filas e corredores lotados. A criança morre antes de ser atendida. Miguel faz a conexão entre as coisas e percebe que não há outra forma de lutar contra o sistema. A corrupção é a causadora dos problemas sociais.

Esse impulso inicial, que engatilha os desdobramentos do filme dirigido por Gustavo Bonafé, se mostra aos atropelos. É apressada inclusive sua cena mais dramática (a morte da filha), esvaziada diante do esqueleto do roteiro que se faz ver a todo o momento, marcando, grosso modo, todos os pontos de virada do filme. Com essa “construção” do jogo ficcional e fantasioso (Bonafé quer claramente distanciar seu filme do “real”; prefere narrar metaforicamente) é um tanto difícil aderir ao torpor raivoso de Miguel, comprar a sua indignação ao ponto de julgá-la legítima. É respeitável o esforço da produção em buscar “limpar” as motivações ideológicas de seu personagem. Mas não há pureza possível: assassinar políticos (e apenas políticos) para aplicar um corretivo no sistema que eles gerenciam é uma opção determinada por condições materiais e ideológicas, de entendimento da resolução de conflitos que extrapola as motivações individuais do anti-herói.

A cena da morte da filha de Miguel, aliás, depõe contra o filme. Na pressa com que sua ação transcorre, está claro que foi filmada apenas para ser um elemento detonador da história, para garantir as razões do que sucederá e trazer o espectador para o lado do protagonista. Esse é o momento em que o filme de Bonafé assume, mesmo a contragosto, o seu direcionamento reacionário: esvaziar tal tragédia para cumprir uma função narrativa sem dar a ela o seu devido peso é algo para o qual não há desculpa.

São robustas as evidências de que O Doutrinador não desenvolve esforço de compreensão das tensões e dos conflitos no qual meteu os pés. A areia movediça do cinema político quase sempre puxa sem piedade o pensamento que não duvida de si mesmo, que não manifesta suas próprias contradições, bem como do “assunto” que aborda. É inviável fugir com o argumento de que não estamos diante de um filme político, mas de uma aventura brasileira no cinema de ação vertiginoso de inspiração hollywoodiana; ficção despreocupada, metafórica. O Doutrinador pretende oferecer uma representação da cena política brasileira, mas abrevia sua força com a criação de caricaturas. Isto não é trivial.

A decodificação minuciosa dos labirintos da política prescinde que se fale inclusive de “política”. É possível se recusar a preencher os requisitos normativos do cinema e assumir uma consciência criativa operando dentro do “sistema”. Preservadas as devidas proporções, o cinema clássico americano, em especial aquele cultivado pelos cineastas que vieram da Europa e na América fizeram carreira (Fritz Lang, Otto Preminger, Ernst Lubitsch, Alfred Hitchcock etc) é a evidência mais cristalina e bem-sucedida.

Há uma explicação, no entanto. Concebido como filme e como série a partir de obra dos quadrinhos, uma HQ, o filme de Bonafé é engolido pela narrativa seriada, fragmentária e refém, muitas vezes, da estrutura blocada de seus desdobramentos – essa estrutura costura a trama sempre para dar as respostas e nunca para provocar a dúvida, já que esta dura apenas até o próximo episódio. É compreensível que assim seja, todavia haveria espaço, diante de assunto tão candente, para explorar sua narrativa episódica e consequencialista, cujo ponto de virada, isto é, o momento que desperta à vida o anti-herói da história, é bastante grosseiro.

O Doutrinador, de Gustavo Bonafé (Brasil, 2018). Com Kiko Pissolato, Samuel de Assis, Tainá Medina, Marília Gabriela, Eduardo Moscovis, Helena Ranaldi, Natalia Lage, Natallia Rodrigues.