Voos Literários

Pessoas LGBTQIA+ e a violência na quarentena

Flávia Cunha
10 de julho de 2020

ALERTA: ESSE TEXTO ABORDA A VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS LGBTQIA+. A INTENÇÃO É DENUNCIAR ESSE CENÁRIO INACEITÁVEL E CONTRIBUIR PARA QUE A SITUAÇÃO ATUAL SEJA MODIFICADA. PORÉM, PODE PROVOCAR GATILHOS EM QUEM JÁ PASSOU POR ESSE TIPO DE SITUAÇÃO. 

QUANDO O LAR NÃO É SEGURO

O  senso comum costuma nos fazer associar o conceito de lar a um ambiente seguro e confortável, um espaço onde podemos nos refugiar da vida lá fora e, no momento atual, nos protegermos do perigo da proliferação do novo coronavírus. Mas não é para todo mundo que é assim. O distanciamento social de amigos e a convivência intensa com familiares podem ser dolorosos para pessoas LGBTQIA+. Pesquisas recentes apontam aumento da violência doméstica provocada pela homofobia e transfobia no Brasil nos últimos meses. Um cenário de vulnerabilidade, infelizmente, não é novidade para essa parcela da população, oprimida pela heteronormatividade e pelo machismo. Para quem quer entender melhor essas existências, sugiro a leitura do livro Contos Transantropológicos, da escritora, professora e filósofa Atena Beauvoir.

TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Atena denuncia em sua obra uma dura realidade, como no conto Uma verdade de mulher, no qual é exposta, de forma contundente, a repulsa paterna à transição de gênero do filho:

“Olga começou sua transição de gênero, do socialmente masculino morto para o feminino vivo, do garoto que nunca era para a garota que sempre se fazia ser a si mesma. Ela estava radiante. Já havia terminado o ensino médio e completava 18 anos naquele sábado. Resolveu, portanto, divulgar para toda família que seu nome real era Olga e que sempre sentiu em si, a garota que sempre esteve presente em seu ser. […]

E no primeiro minuto de sua presença, Olga recebe um soco da vida. Ou melhor de seu próprio pai. Ninguém imaginaria que aquele soco iria mudar o rumo inteiro da família. Olga foi levada prontamente para o hospital por um casal de primos. Sua mãe chorava em casa tentando acalmar o pai que guardava seus pertences em uma mala. Gritava que aquele traveco não era seu ?lho. Que não viveria sob o mesmo teto que um veado endemoneado que fazia-o passar vergonha na ?rma. A mãe de Olga pedia perdão, como todo o peso e a culpa da maternidade produzindo um ser defeituoso, ela se empunha a responsabilidade por tal desvio de caráter do primogênito. Não houve retorno. O soco rachou profundamente as estruturas da família. O símbolo da violência produzia um ar ressoante de guerra instaurada. A face da aniversariante também foi rachada. O soco imortalizou na alma de Olga, que sua embarcação existencial havia partido do porto.”

EMPATIA E RESPEITO

No posfácio da obra, Atena explica que escreveu o livro pensando nas pessoas cisgêneras, que precisam conhecer outras realidades para, assim, desenvolverem mais empatia e respeito às diferenças:

“Não é um livro escrito para pessoas trans. Essas sabem sobre tudo o que está escrito. Não sabem no sentido do texto posto, mas do contexto exposto. Esse livro é para pessoas cis. Essas desconhecem o universo ontológico da existência inexistente. Sempre são o que são, pois nasceram assim: existências dadas. E as aceitaram. Onde quer que se diga – Eu sou trans – será entendido como uma inexistência da construção da nova existência. E as estruturas históricas sempre trarão ao nosso redor o esforço de nos fazer sentir que devemos viver o que não vive e nunca viveu em nós. Enquanto escrevo esse posfácio, lembro do início da minha transição de gênero e o quanto foi angustiante. Sangrei até esvaziar o conteúdo de uma existência. Agora gero meu próprio sangue para dar forma e força ao novo corpo existente. Só existe liberdade na existencialidade do ser.”

O livro Contos Antropológicos pode ser adquirido direto com a autora.

MÃES PELA DIVERSIDADE

Além da leitura, recomendo que vocês sigam nas redes sociais o projeto Mães pela Diversidade, um coletivo criado em São Paulo, em 2014. Assim o grupo se apresenta, em uma postagem recente:

“ […] fruto de um encontro espontâneo de mães e pais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais de todo o Brasil, preocupados com o avanço do fundamentalismo religioso, a insegurança jurídica, o preconceito e a violência contra a população LGBTQI+. Além disso, o grupo luta pelos direitos civis de seus filhos e filhas.
A princípio, funcionou como um grupo informal de encontro, mas, com o crescimento e necessidades crescentes de controle e compromissos, o grupo passou a adquirir identidade jurídica. Trata-se de um movimento político suprapartidário que tem por objetivo trabalhar em prol dos direitos civis de nossos filhos.”

Imagem: Chickenonline/ Pixabay

 

Voos Literários

Atena Beauvoir: Existência, resistência e visibilidade

Flávia Cunha
20 de agosto de 2019

Escritora, poetisa, slammer, professora e filósofa, Atena Beauvoir provoca impacto por onde passa. Não seria diferente na noite fria de 14 de agosto de 2019, quando ela surgiu, com sua voz potente e bem colocada, fazendo uma performance que me levou às lágrimas em plena Livraria Cultura, em um shopping center de Porto Alegre conhecido pelo poder aquisitivo de grande parte dos frequentadores.

Confira o vídeo aqui.

A performance que falava sobre visibilidade LGBT e de resistência à violência contra pessoas trans fazia foi a estreia de um projeto realizado, a convite da Cultura, pelo Literatura RS, uma rede dedicada à divulgação da literatura produzida e editada no Rio Grande do Sul.  O ciclo de atividades, muito bem-vindo no cenário literário da cidade, será mensal e gratuito.

O bate-papo Visibilidade e Escrita, conduzido pelo jornalista Vitor Diel, fluiu tão bem que as quase duas horas de evento passaram muito rápido, mesmo com a profundidade das reflexões sobre existencialismo, mitologia e política, entre outros assuntos.

Atena revelou ter se tornado escritora ao perceber que escrever fazia parte do seu corpo, uma forma de reconhecer a própria existência. Não é à toa que escolheu homenagear a filósofa existencialista Simone de Beauvoir em seu nome civil, após a transição de gênero, devido à frase “Não se nasce mulher, tornase mulher”, do clássico O Segundo Sexo.

Após encantar-se por Simone, aprofundou-se na obra de Sartre, pelo qual nutre uma grande admiração por ter rejeitado receber o badalado prêmio Nobel de Literatura.

No vídeo abaixo, uma das leituras que tornaram o bate-papo ainda mais instigante.

Obras de Atena Beauvoir:

Contos Transantropológicos, com histórias sobre identidade e gênero. 

Libertê: poesia, filosofia e transantropologia, em que aborda conceitos da filosofia sartreana, a partir de reflexões sobre identidade, liberdade e autonomia existenciais.

Phóda, em que reflete sobre a obra História da Sexualidade, do filósofo Michel Foucault.

 

Foto: Literatura RS/Divulgação

Vídeo: Daiana Christ