Reportagens Especiais

Haveria um outro destino para Ângela Diniz?

Geórgia Santos
15 de outubro de 2023
alerta de gatilho – violência doméstica

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Imagem: colagem de imagens de Ângela Diniz e Doca Street e produzidas a partir de reprodução da Revista Manchete e de imagens do processo de Rosana*

A socialite Ângela Diniz foi assassinada em 30 de dezembro de 1976, dentro da própria casa, em Búzios, no Rio de Janeiro. Foram três tiros no rosto e um na nuca. Quem puxou o  gatilho foi o namorado, Raul Fernando Street, o Doca, uma figura frágil. No laudo do perito, recuperado pela produção do podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, lemos que quando as balas a encontraram ela usava “biquini azul tendo, na região frontal, o desenho de uma cabeça de pantera de cor preta.” Uma perversidade do destino com quem era chamada de “a Pantera de Minas”, apelido dado pelo colunista e amigo Ibrahim Sued, com quem Ângela tivera um relacionamento. O texto segue: “Junto ao ombro direito da vítima, encontrava-se uma pistola automática, oxidada, da marca Beretta, calibre 7,65 mm, com o carregador vazio.” 

Carlos Heitor Cony, na edição 1291 da Revista Manchete, de janeiro de 1977, escreve abre a reportagem sobre a morte de Ângela  de maneira crua: 

“Tinha gente que ia à missa na Igreja de Lourdes, em Belo Horizonte, só para ver o meu vestido novo. Todos os domingos, minha mãe me dava uma roupa nova. Aos 12 anos eu já era sucesso.” Vinte anos depois, essa menina que deslumbrava Belo Horizonte (e mais tarde escandalizou a cidade) estava deitada numa mesa de mármore, fria e imunda, no pequeno necrotério de Cabo Frio. Quase nua, apenas a tanga e a blusa, o rosto mutilado, os dentes trincados, como se mordessem o último pedaço de vida a que tinha direito. Muita coisa aconteceu na vida de Ângela Diniz: um casamento falido, três filhos, um crime de morte em seu próprio quarto, à beira da sua cama. Problemas de tóxico e de amor, ela queria muito e ao mesmo tempo, até que de repente tudo acabou. Frase de uma senhora mineira, durante o seu sepultamento: “Finalmente, ela descansou.”

Poucas pessoas comparecem ao sepultamento de Ângela Diniz – Reprodução, Revista Manchete.

O assassinato de Ângela Diniz provocou uma comoção no país, mas não pelos motivos que se espera, não pelo feminicídio – palavra que sequer existia no vocabulário dos brasileiros. De início, a surpresa de um crime tão bárbaro acometer a alta sociedade mesclava-se à incredulidade com o fato de tragédias acometerem aos ricos e famosos e belos. Mas em seguida Ângela revelou-se a vítima imperfeita e os motivos da atenção foram não tão lentamente sendo moldados sob a ótica de uma sociedade cruel e moralista. Ela costumava dizer: sou rica, bonita e boa de briga. E era tudo isso. E as pessoas detestavam isso. 

Na página dez da mesma Manchete, há uma frase de Ângela que dá uma ideia da mulher nada recatada: “Só tenho uma vida e quem decide sobre ela sou eu.” Mas a sentença do texto seguia cruel: “Suportar ou não suportar essas consequências [da vida] eis questão.” A frase era boa, explicava tudo. Ela continuou fazendo das suas, suportou as consequências tão bem que acabou varada de balas.” Duas semanas depois, na edição 1293, o mesmo semanário traria uma entrevista com Doca Street, então foragido, conduzida pelo jornalista Salomão Schvartzman. 

Doca se apresenta como uma figura atormentada, que sofre de saudade, que sofre pelo “amor alucinado” que dedicou a Ângela. Dizia que queria morrer, mas seguiu vivo até 2020, quando faleceu aos 86 anos. Ali, naquela entrevista, antes mesmo de se entregar à polícia, ele admite que a arma era dele, que estava louco de ciúmes, que a relação era conturbada. Ele admite que atirou, só alega não lembrar quantas vezes. Ainda assim, ele não parecia assumir a responsabilidade pelo crime. A primeira coisa que ele diz é que ela nunca se sustentou, se defendendo da alegação de que ele não ganhava dinheiro algum e, até aquele momento, dependia da fortuna da ex-mulher, Adelita Scarpa. E segue:

“Foi uma paixão violenta, possessiva, uma paixão total somada a um ciúme doentio. Amei como jamais amei outra mulher. Quis dar a Angela uma outra imagem, queria que ela vivesse outra vida, que tornasse a ter os filhos perto dela, como verdadeira mãe. Ela me prometeu que mudaria seu comportamento.” Ou seja, a culpa foi dela. 

A entrevista toda é entrecortada por frases que apontam para uma suposta inevitabilidade da violência. “Consegui modificar Ângela em muitas coisas, mas o que a estragava era a vodka”; “Disseram que eu não deixava Angela sair de casa. É verdade. Mas fazia isso por causa da compulsão que ela tinha em provocar os homens à sua volta”; “Não sei o que acontecia no seu íntimo, que lhe dava um prazer especial em me espicaçar, em me torturar, ferindo a minha sensibilidade”. Como disse antes, um homem frágil. Ele não pôde evitar.

De acordo com o que apurou a produção do podcast Praia dos Ossos, o delegado Newton Watzl, de Cabo Frio, leu a entrevista. E gostou. “É como se o Doca fosse um Dom Quixote moderno dentro do nosso mundo materialista.” Era ele quem cuidava do caso. 

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LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

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A estratégia traçada pelos advogados de Doca Street deu certo e não demoraria para a narrativa do crime passional ser dominante. O homem ponderado, cidadão de bem, apaixonara-se por uma mulher intensa e, em um momento de destempero, perdera a cabeça. Ele não era realmente assim. E conforme o tempo foi passando, boatos e conjecturas se misturaram à realidade e, até o momento do julgamento, em 1979, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ou, parafraseando o delegado, um Dom Quixote moderno. Ele estampava camisetas, nome de pratos em restaurante. Também em um trecho do podcast, sabemos que havia até um coquetel batizado em sua homenagem, que era servido com quatro balinhas no copo. Henfil foi quem melhor traduziu o que se passou naqueles três anos. “Tão quase conseguindo provar! Ângela matou Doca”, escreveu nO Pasquim.  

Assim, ignorando uma relação turbulenta, apenas de curta; ignorando que ele era agressivo com as pessoas à sua volta; ignorando que andava armado; ignorando que ele batia, ameaçava e agredia Ângela, o advogado Evandro Lins e Silva levou ao júri a tese da”legítima defesa da honra”. E voltou. Raul Fernando Street foi condenado a dois anos de prisão e, como réu primário, cumpriu a pena em liberdade. A sentença provocou uma reação sem precedentes e movimentos feministas lutaram para que ele fosse novamente julgado. E conseguiram. Na segunda vez, ele  foi considerado culpado e recebeu pena de 15 anos. Cumpriu um terço. 

A história da Pantera de Minas é contada no filme “Angela”, de Hugo Prata, que estreou nos cinemas em setembro deste ano. Um mês depois de a tese da “legítima defessa da honra” ser derrubada, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), 47 anos depois do assassinato que seria uma divisor de águas na justiça brasileira. 

Pela tese aceita até então, um réu agressor poderia alegar que sua honra havia sido ferida a partir do comportamento da vítima e, por isso, o crime havia sido cometido. De maneira prática, se uma mulher cometesse adultério, por exemplo, era como se o homem tivesse direito de se defender. E isso foi usado ao longo de décadas para, no limite, inclusive inocentar assassinos – como quase aconteceu com Doca. E não que seja um crime incomum por aqui.

No Brasil, o feminicídio foi incorporado ao Código Penal como uma qualificadora do crime de homicídio em 2015. Assim, a definição dada pela Lei Nº 13.104/2015 considera o feminicídio um tipo específico de homicídio doloso, cuja motivação está relacionada ao contexto de violência doméstica ou ao desprezo pelas mulheres, pelo sexo feminino. Um levantamento do Monitor da Violência, parceria do site G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) mostra que houve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com 2021. Segundo o que mostram os dados oficiais dos 26 Estados e do Distrito Federal, mais de 1,4 mil mulheres foram assassinadas pelo fato de serem mulheres. É uma morte a cada seis horas. O número é o maior registrado no país desde que a legislação foi atualizada. Se forem consideradas as mortes de mulheres  também sem a qualificadora, o número cresceu 3% entre 2021 e 2022 e chega a 3.930 assassinatos. Segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019. 

A pesquisa “Visível e Invisível”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, ainda mostra que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022. Estima-se que 33,4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais experimentaram alguma forma de violência por parte do parceiro ou ex. O resultado é superior à média mundial, estimada em 27% segundo o Global Prevalence Estimates of Intimate Partner Violence, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Mas há um detalhe sobre a suposta legítima defesa da honra: ela não aparece no Código Penal. O texto estabelece, sim, que “a legítima defesa pode ser empregada para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ou seja, defesa da própria vida, não da honra. 

A ação contra o argumento foi apresentada ao STF pelo PDT  em janeiro de 2021. No mesmo ano, o relator, ministro Dias Toffoli, suspendeu o uso da tese da legítima defesa da honra em julgamentos por meio de liminar. A decisão foi referendada por todos os ministros até que, em 29 de junho, Toffoli proferiu o voto, dizendo se tratar de um recurso argumentativo cruel. “A legítima defesa da honra é um estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no Brasil”, disse. 

Todos acompanharam o voto do relator. A ministra Cármen Lúcia foi didática: “A vitimização do réu nestes casos se faz indo em busca de informações sobre a mulher, ‘o que ela teria feito para merecer isso’. Portanto, sendo merecedora do assassinato, no caso do feminicídio, o homem não teria feito nada demais. E isto não é algo que esteja afastado da realidade brasileira de 2023. Uma mulher é violentada a cada quatro minutos no Brasil em 2023”. Durante o voto, a ministra relembrou o caso de Ângela Diniz. 

Eu sempre me perguntei e agora, diante disso, volto a me questionar como seria se houvesse um outro destino para Angela Diniz. Será que as mulheres imperfeitas seriam absolvidas? Como seria se ela, sim, tivesse agido em legítima defesa? Como seria se ela tivesse reagido às agressões, tomado a arma das mãos de Doca e atirado contra ele até que ele tombasse? Não precisei ir muito longe para descobrir que esse mesmo benefício raramente é concedido quando a história se inverte e a vítima se levanta. “A mulher, quando senta no banco dos réus, existe uma violência estatal muito forte contra ela”, diz o defensor público Andrey Régis de Melo. 

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ROSANA E ROBERTO

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Na primeira página do processo, leio: homicídio simples. Eu sei que se trata da tipificação, mas não pude deixar de pensar que não é nada simples. Assim como Ângela e Doca, Rosana e Roberto namoravam há poucos meses. E assim como o de Ângela e Doca, era um relacionamento violento. Mas diferente do que houve com Ângela e Doca, Rosana matou Roberto, não o contrário. Na noite de 06 de janeiro de 2005, Rosana deu uma facada no namorado que a segurava pelo pescoço. No auto de necropsia, lemos que Roberto apresentava uma “lesão perfuro-cortante na região peitoral esquerda com 27mm de extensão.” A facada perfurou o coração. Bastou um golpe. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

O nome dela não é Rosana mesmo, ela pediu para não ser identificada quando eu entrei em contato para que contasse sua história. De início, ela topou. Mas dois dias depois, enviou um áudio explicando que não conseguiria. “Eu comecei a me lembrar de tudo que eu passei, de todo aquele sofrimento. Foram vários anos de muito sofrimento e muita angústia. Eu não quero nem lembrar, foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas e eu não quero nem lembrar”, me disse. Acontece que Rosana foi denunciada e pronunciada por homicídio simples e, por 18 anos, o seu destino esteve nas mãos de quem não levou em conta as marcas de esganadura que ela trazia no pescoço e, muito menos, a palavra dela. 

Em respeito à Rosana, eu não insisti com as perguntas sobre como tudo aconteceu e decidi recorrer aos autos. No depoimento que prestou à polícia no dia seguinte aos fatos, Rosana conta que ela e Roberto Keppler começaram a namorar em novembro de 2004. Em dezembro, o namorado a convidou para morar com ele e, assim, começa a história de violência:  

“Que ficou uma semana morando junto com a vítima. Que a vítima sempre queria lhe agredir, só não fazendo porque “eu corri e foi (sic) posar na casa dos vizinhos”; que posou na casa da mãe da I.M.; que a vítima sempre “me ameaçava de agressão”.” 

Note que, neste depoimento, a vítima é o Roberto.

“Que ontem, 06.01.05, por volta de 19h3 ou 20h, Roberto chegou com um litro de cachaça, já com sinais de embriaguez e disse: Rosi, hoje eu vou quebrá (sic) a tua cara, hoje eu vou te matá (sic)” Que pediu para o Roberto parar, pois estavam na casa da amiga e não queria fazer fiasco; que Roberto convidou a depoente dizendo “tu qué apanhá (sic) lá em casa?”; que concordou em descer junto com Roberto até a casa dele, porém pediu para tomar um banho. Que foi tomar banho e neste momento a I.M. veio lhe dizer para não descer junto com ele porque ele ia lhe bater. Que se escondeu no quarto, porém antes pegou uma faca tamanho grande, cabo de madeira, na cozinha da I.M. e foi para o quarto; que deixou a faca sobre o balcão e se escondeu atrás da porta; que I.M. foi dizer para o Roberto que a depoente tinha fugido; que Roberto disse “eu vou achar a R. nem que seja no inferno” e entrou para dentro do quarto, fechou a porta e começou a chamar a depoente de “vagabunda, vadia, vou quebrar a tua cara”; que pediu para sentar e conversar, mas Roberto disse “não tem conversa contigo, eu vou quebrar a tua cara, vou bater onde mais dói, vou te quebrar tudo”; que Roberto falava em tom baixinho, não elevou a voz nenhuma vez; que implorou para ele parar dizendo “tu qué (sic) que eu me ajoelhe aqui, vamo para (sic) com isso, pelo amor de Deus”; que neste momento Roberto lhe deu um tapa na “cara” e a depoente continuou pedindo para ele parar, porém Roberto lhe pegou pelo pescoço e disse “agora vou te matar” e começou a apertar; diz a depoente que estava sufocada, que não conseguia mais respirar e falar, neste momento lembrou da faca, “levei a mão pra trás, peguei a faca e finquei, eu tava desatinada, eu não sei onde atingi”; “quando eu grudei a faca ele me largou e eu saí apavorada”. 

Segundo testemunhas, Roberto saiu do quarto cambaleando e dizendo: “Ela me arrebentou o coração.” e tombou no chão da cozinha. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

Rosana pediu abrigo na primeira casa que encontrou e ficou lá até a manhã do dia seguinte, quando voltou para a casa da amiga e só então soube que o namorado estava morto. “Eu não acreditava que tinha matado ele.” Ela foi encaminhada para exame de lesão corporal em que se atestou que ela havia sofrido violência: “Apresenta contusão na face lateral esquerda da região cervical.” Mesmo assim, o delegado pediu a prisão preventiva. O juiz indeferiu, mas deu seguimento ao processo. Ela seria julgada por homicídio. 

Segundo o defensor público Andrey Régis de Melo, responsável pela defesa de Rosana no tribunal do júri, a versão dela foi desconsiderada ao longo do processo. “Não é levada em conta pelo delegado de polícia, que acaba iniciando ela; não é levada em conta pelo promotor da época, que acaba denunciando ela; não é levada em conta pelo juiz, que pronuncia. E no julgamento, a promotora também não reconhece a legítima defesa”, conta. 

Um tempo depois, a prisão preventiva foi decretada novamente, mas Rosana havia se mudado e não havia notícias do seu paradeiro. Ela foi considerada foragida até que foi presa em 2016. “Ela foi registrar uma ocorrência policial, inclusive, e aí ficou sabendo que existia essa prisão preventiva referente a esse processo”, explica o defensor.  

Rosana só seria julgada em agosto de 2023. A acusação passou de homicídio simples para lesão corporal seguida de morte, com pena de quatro a 12 anos de reclusão. O defensor Andrey Régis de Melo explica que o caso é muito emblemático sobre como as vítimas que reagem à agressão são tratadas no sistema. “Foi desconsiderado que ela era uma vítima de violência doméstica. Ela já havia sido agredida por ele, inclusive havia informações dando conta de que uma vez ela praticamente se jogou na frente de uma viatura da Brigada Militar pedindo socorro. Ele fugiu na oportunidade e depois confidenciou para uma policial militar que estava armado. Então, era uma relação de poucos meses, mas já tinha os indicativos muito fortes de que ela era vítima de violência doméstica.”

Desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, o debate em torno da violência de gênero vêm se fortalecendo, assim como a construção de uma rede de proteção às mulheres. Mas a violência estatal em julgamentos como esse perdura. “Quando a mulher senta no banco dos réus, ela é muito violentada”, aponta o defensor. E a violência de gênero, segundo ele, pode ser notada em diversos âmbitos, não apenas em casos em que isso é julgado especificamente. Por exemplo, em casos que envolvem organizações criminosas. “Nós temos o maior encarceramento feminino da nossa história e não é feito um debate, por exemplo, sobre o quanto elas são violentadas dentro de facções. A gente não vai deparar com homens cedendo o próprio corpo para transportar drogas, mas as mulheres fazem isso porque muitas vezes elas estão sofrendo violência psicológica, violência física e isso é totalmente desconsiderado.” O defensor Andrey Melo disse que já chegou a ouvir de um desembargador que uma mulher coagida poderia ir à polícia e registrar um boletim de ocorrência. “Por que ela não vai numa delegacia? Porque no outro dia tá morta.”

Rosana foi absolvida, afinal. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, antes representada pela defensora Kedi Leticia Bagetti. Mas não significa que ela não tenha, de certa forma, cumprido uma pena. É o que se chama de pena processual, que é o tempo que as pessoas ficam sentadas no banco dos réus.  E a “pena processual” de Rosana foi longa. “Graças a Deus foi feita a justiça. Eu fui absolvida e eu quero deixar lá no passado. Eu não quero nem lembrar porque foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas. Passa todo aquele filme novamente na minha cabeça e foi muito sofrimento para mim. Graças a Deus isso acabou”, desabafa Rosana. 

No interrogatório do julgamento, ela estava muito emocionada. Chorou bastante. Sabia que a vida dela, dos dois filhos e do marido dependia do desfecho daquela história.  “Porque é um trauma para vida dela. A facada que ela dá no então namorado, companheiro dela, é um ato de socorro, é o que restou. Ela está sendo esganada dentro de um quarto, inclusive por um agressor que xingava ela, zombava dela. Então não dá para entender. Sinceramente, não dá para entender porque que ela foi denunciada e submetida a julgamento”, questiona o defensor. 

A proibição pelo STF do uso da tese da legítima defesa da honra é um avanço, mas existe muita coisa ainda para mudar no sistema judicial brasileiro. O caso da Rosana é um exemplo de como ainda não se compreende a complexidade das relações a que as mulheres são submetidas. Porque até então, para se defender homens agressores, usava-se um recurso que sequer consta no Código Penal enquanto as mulheres que se defendem mal conseguem se defender com o que está, de fato, escrito na legislação.

Ou seja, a mulher acaba sendo submetida a diversas violências durante processo como esse. 

“Teve um momento no julgamento que a acusação diz o seguinte: olha, não há uma prova da versão dela. Aí eu até interrompi a promotora e disse : olha, Doutora, com todo respeito do mundo, mas quando a senhora diz que não há uma prova em relação à versão dela, inclusive desconsiderando o laudo médico, a senhora simplesmente tá dizendo que essa mulher aqui, que apresentou todo esse sofrimento hoje aqui, é uma mentirosa. É só uma forma elegante de dizer que essa mulher está aqui mentindo. Porque em um crime que só tem ela e o companheiro agressor, e ele morre e ela traz uma versão, é óbvio que só vai existir essa versão dela”, me conta o defensor. 

O caso da Rosana mostra que a misoginia do sistema não permitiria outro destino para Ângela Diniz. Ela não seria tratada com a benevolência do agressor. Mas o defensor Andrey Melo faz ainda outra pergunta: “Se fosse um homem que tivesse uma marca de esganadura no pescoço e que tivesse dado um único golpe de faca e que existisse pessoas dizendo que ele já havia sido agredido pela mesma pessoa. Será que esse homem seria submetido ao Tribunal do Júri?”

Reportagens Especiais

Epidemia de violência . 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade de 2020

Geórgia Santos
15 de outubro de 2020

Atualização em 19 de outubro de 2020 após a publicação do Anúario da Segurança Pública

“Mama olhou em volta. Manteve os olhos fixos no relógio da parede durante algum tempo, o que estava com um dos ponteiros quebrados, e então se dirigiu a mim: – Sabe aquela mesinha onde guardamos a Bíblia da nossa casa, nne? Seu pai quebrou-a na minha barriga – disse, como se estivesse falando de outra pessoa, como se a mesa não fosse feita de madeira pesada. – Meu sangue escorreu todo por aquele chão antes mesmo de ele me levar ao St. Agnes.” Esta Mama é uma personagem do livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adiche. Ela é vítima constante dos abusos psicológicos e físicos do marido Eugene, chamado pela narradora, Kambili, de Papa. Kambili também sofre com os abusos e rompantes violentos do pai. As duas foram transcritas da imaginação de Chimamanda para o papel e são apresentadas ao mundo em uma obra de ficção, mas elas não existem apenas nas trezentas e poucas páginas de papel de um livro. No Brasil e no mundo, milhares de mulheres sofrem com a violência doméstica todos os dias. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima  que 35% das mulheres já passaram por uma situação de violência em algum ponto da vida. Nós conhecemos muitas Mamas. Nós conhecemos muitas Kambilis. Você também conhece.

Na circunstância da pandemia do novo coronavírus e submetida a um isolamento com o marido violento e os dois filhos, a nossa Mama* viu a violência se acumular nas pupilas do companheiro conforme também aumentava a frustração com o insuportável “novo normal”. O abuso psicológico e a violência patrimonial antes latentes estavam escalando e ela ficou com medo de sofrer violência física. Então, ela fez o mais difícil.  Em cinco de agosto deste ano, a nossa Mama pediu ajuda a uma amiga, que encaminhou um pedido a um grupo de apoio:

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“Bom dia, gurias. Alguém sabe se existe algum lugar de acolhimento ou casa de passagem pra vítima de abuso, por enquanto psicológico, mas muito muito próximo de se tornar violência física? Seria pra ela e dois filhos, um de sete anos e outro de dois.”

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O pedido de ajuda é a parte mais difícil porque, geralmente, as mulheres que se encontram em uma situação de abuso pelo companheiro são constantemente ameaçadas, constrangidas e chantageadas. Especialmente as que sofrem de violência patrimonial, que, segundo texto da Lei Maria da Penha, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”  Ou seja, que é quando o parceiro controla o dinheiro da casa.

Era o caso da Mama criada por Chimamanda, que perguntava para a cunhada: “Para onde eu vou se sair da casa de Eugene? Diga, para onde eu vou?”. E era o caso da nossa Mama:

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“Ela não tem família ou amigos próximos, está desempregada, disse que ia tentar fazer bolos para vender na rua, mas o marido proibiu de fazer na casa e disse que não ia ficar com as crianças também.”
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E não tardou para chegar outra mensagem:

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“O cara surtou, quebrou as coisas todas das crianças e disse que ia matar ela e o mais velho.”
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Ela conseguiu o abrigo antes que o pior acontecesse e a promessa do homem violento não se concretizou. Outras Mamas, porém, não foram libertadas a tempo. Os números apresentados no Anúario Brasileiro de Segurança Pública mostram que, no primeiro semestre de 2020, cuja maior parte se deu no contexto da pandemia, houve um aumento da violência letal contra as mulheres. O documento produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade deste ano, um aumento de 1,9% com relação ao mesmo período de 2019. Nota-se, ainda, um crescimento no número de chamadas para o 190. Houve um aumento de 3,8% nos acionamentos da PM em casos de violência doméstica. Ao todo, foram 147.379 pedidos de ajuda registrados em todo o país.

 

Segundo dados da ONU Mulheres, que é a entidade das Nações Unidas dedicada a promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino, uma em cada três mulheres sofre com violência física ou sexual no mundo, na maioria das vezes pelas mãos do companheiro ou algum familiar. Pesquisas locais indicam que, em alguns países, esse índice pode ser ainda maior e chegar a 70% das mulheres. No último ano, 243 milhões de meninas e mulheres entre as idades de 15 e 49 foram vítimas de algum tipo de abuso por parte de alguém do círculo íntimo de amigos ou familiares. Desde o início da pandemia de Covid-19, porém, dados emergentes e relatos de quem lida com essas mulheres cotidianamente dão conta de que o problema da violência contra a mulher aumentou. Principalmente a violência doméstica. A organização chama de Shadow Pandemic, que em tradução livre significa a Pandemia à Sombra. Nós chamamos de Epidemia de Violência.

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“Entrei na banheira e fiquei parada, olhando para ele. Não parece que Papa ia pegar um galho, e senti o medo, ardente e inflamado, encher minha bexiga e meus ouvidos. Não sabia  o que ele ia fazer comigo. Era mais fácil quando eu via o galho, porque podia esfregar as palmas das mãos e retesar os músculos das panturrilhas para me preparar. Mas Papa jamais me pedira para ficar de pé dentro da banheira. Então percebi a chaleira no chão, ao lado dos pés de Papa, a chaleira verde que Sisi usava para ferver água para o chá e para o garri, aquela que apitava quando a água começava a ferver. Papa apanhou-a.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Kambili de Chimamanda conhecia os hábitos do pai. Ela já havia apanhado incontáveis vezes de maneiras pouco sofisticadas mas extremamente dolorosas. A tortura com água quente foi uma novidade. Novidade também foi a agressão a que foi submetida a nossa Kambili*. Ela vive com a mãe e o padrasto que, antes do início da pandemia, parecia o homem perfeito para uma mulher que saíra de um casamento abusivo, em que era submetida a agressões verbais e violência patrimonial. Ninguém imaginou que ele seria uma pessoa violenta.

O aumento nos casos de violência contra a mulher pode ser explicado a partir do que a ONU chama de fatores exacerbantes, ou seja, situações estressantes e limítrofes que podem piorar o comportamento de quem já é agressivo. No caso da violência doméstica, antes de tudo aparecem as preocupações com dinheiro, segurança e saúde. Depois, são listados problemas como condições precárias de moradia, que fazem com que as pessoas precisem ficar juntas em espaços apertados em situações de isolamento social e o fato de se isolar com o abusador. Além da restrição de movimentos. Foi o caso do padrasto da nossa Kambili, um homem frustrado profissionalmente que, quando se percebeu isolado em casa e sem perspectiva, recorreu ao álcool e libertou uma persona agressiva. O homem compreensivo e acolhedor agora agredia Kambili verbal e fisicamente. Assustada, ela se trancou no quarto e chorou até adormecer. A mãe da nossa Kambili fez o mesmo e só foi despertada com os socos que sacudiam a porta do quarto.

Pesquisa realizada pelo C6Bank e Datafolha mostra que, no Brasil, nos últimos cinco anos, pelo menos 24% das mulheres já foram agredidas verbalmente pelo companheiro ou por alguém que more na mesma casa e pelo menos 10% já foram agredidas fisicamente. O estudo investigou a ocorrência de 14 tipos de violências entre a população brasileira. A preocupação com dinheiro como um fator de risco para o aumento no número de casos de violência doméstica encontra guarida no mesmo estudo, que mostra um crescimento importante de situações de violência patrimonial desde o início da pandemia do novo coronavírus, especialmente durante o período em que o isolamento social foi levado mais a sério. A pesquisa mostra que, entre março e julho de 2020, houve aumento relativo especialmente nas incidências relacionadas a participação no orçamento financeiro familiar, na decisão de compra, negação e apropriação de recursos e uso do nome sem consentimento. “Ou seja, as restrições orçamentárias e dificuldades financeiras têm aumentado os pontos de conflito doméstico de várias formas”, indica o texto do estudo.

A pesquisa foi conduzida a partir de 1503 entrevistas e acessa tanto as ocorrências de violência patrimonial nos últimos cinco anos quanto as sofridas pela primeira vez durante a pandemia. E os dados mostram de houve um aumento de 37% nos casos em que alguém da família negou recursos financeiros para compras que atendessem necessidades pessoais. Além disso, o estudo mostra um aumento de 47% nos casos de entrevistados que foram impedidos de participar das decisões de compra de produtos e serviços para casa e família. Ainda houve um crescimento de 26% no número de ocorrências em que alguém da família tenha se apoderado do dinheiro que a pessoa ganha ou ganhou por considerar que ela não tem a capacidade para administrar esses recursos.

Observa-se, ainda, alta sobreposição entre agressões verbais e todas as outras formas de violência avaliadas, especialmente restrições na participação do orçamento e das decisões de consumo da familiar e acesso aos recursos financeiros. Todas essas situações, segundo o estudo, tendem a ser agravadas pela crise econômica e, simultaneamente, tornam-se fatores exacerbastes para a escalada da violência doméstica e outros problemas de âmbito familiar.

Especificamente no período da pandemia de coronavírus, o monitoramento Um Vírus e Duas Guerras, realizado por sete veículos de jornalismo independente, identificou que 497 mulheres foram assassinadas entre março e agosto de 2020. Foi um feminicídio a cada nove horas- ou três mortes por dia. São Paulo, Minas Gerais e Bahia foram os estados que registraram o maior número absoluto de casos, com 79 mortes em SP, 64 em MG e 49 na BA. O índice médio de mortes no país foi de 0,21 por 100 mil mulheres. O que faz com que 13 estados estejam acima da média nacional de feminicídios: Mato Grosso (1,03), Alagoas (0,75), Roraima (0,74), Mato Grosso do Sul (0,65), Piauí (0,64), Pará (0,62), Maranhão (0,47), Acre (0,44), Minas Gerais (0,43), Bahia (0,39), Santa Catarina (0,38), Distrito Federal (0,37) e Rio Grande do Sul (0,34).

De maneira geral, houve uma redução de 6% no número de casos em comparação com o mesmo período do ano passado, mas a queda não é necessariamente um indicativo real de diminuição da violência.  Primeiro porque, em se tratando deste estudo em específico, sete estados não enviaram os dados solicitados ao coletivo (Amazonas, Amapá, Ceará, Goiás, Paraíba, Paraná e Sergipe). Tanto que nos dados do Anuário, o registro é de aumento entre janeiro e julho. Segundo porque existe uma enorme subnotificação.

O Anúario da Segurança pública indica que, apesar do aumento de feminicídios, houve uma redução nos registros de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável, assim como caíram os registros de agressões em decorrência da violência doméstica nas delegacias de polícia – uma queda de 9,9% com relação ao ano passado.

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“- Eugene vai vir nos apanhar. – Escute… Tia Ifeoma falou num tom mais suave; ela deve ter percebido que um tom firma não penetraria no sorriso fixo no rosto de Mama. O olhar de Mama continuava vidrado, mas ela parecia ser outra mulher, não a mesma que saltara do táxi de manhã. Parecia estar possuída por outro demônio. – Fique pelo menos alguns dias, nwunye m, não volte tão cedo. Mama balançou a cabeça. Não havia nenhuma expressão em seu rosto, a não ser um sorriso duro. – Eugene não anda bem – disse ela – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Mama de Chimamanda não denunciou o marido. A nossa Mama também não. A nossa Kambili também não. De acordo com a promotora Carla Souto, do MP-RS, dois grandes pontos fazem com que a vítima não denuncie: medo e a vergonha. E agora, o isolamento.

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SUBNOTIFICAÇÃO

O Anúario Brasileira da Segurança Pública indica que, como a maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico exige a presença da vítima para a instauração de um inquérito, as denúncias começaram a cair na quarentena em função das medidas de distanciamento social e de isolamento, cuja consequência é uma maior permanência em casa. A presença constante do agressor nos lares agrava a situação porque constrange a mulher a pedir ajuda, a fazer um telefone e, principalmente,  de procurar as autoridades competentes para comunicar a violência sofrida.

Isso significa que a diminuição do registro de algumas ocorrências no período da pandemia de Covid-19 não representa necessariamente uma redução de casos de violência contra a mulher, mas mostra que as mulheres encontraram obstáculos para denunciar a situação de abuso a que foram submetidas. A defensora pública Liseane Hartmann, que é dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) da Associação das Defensoras  e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS), explica que é extremamente difícil para a mulher denunciar a violência doméstica. Quando isso acontece, geralmente é porque ela já passou por diversas situações de humilhação. “É muito difícil romper o ciclo da violência, então até que a vítima se sinta encorajada a procurar uma instituição e poder denunciar, infelizmente, ela já passou por muito sofrimento. Ela já viveu muitas situações de violência que são variadas. Pode ser violência física, patrimonial, moral, sexual e psicológica. Aliás, tem muito a questão da violência psicológica, que não deixa marcas evidentes mas afeta a vida de todos.”

Os motivos para a subnotificação são muitos, mas costumam estar associados ao fato de o agressor ser, na maioria das vezes, o companheiro da vítima – ou, pelo menos, parte da família. Isso faz com que as mulheres agredidas tenham receio de prosseguir com a denúncia porque não querem prejudicar o companheiro, porque tem medo de retaliação ou tem até vergonha da violência. Segundo a defensora Liseane Hartmann, isso faz com que o número de denúncias seja sempre muito inferior em relação aos fatos. “Se nós pensarmos nos dois primeiros meses da pandemia, em que o isolamento social foi levado a cabo, aumentaram os feminicídios no Rio Grande do Sul, por exemplo, mas o número de ocorrências de lesão corporal diminuiu. Isso nos leva a crer que tenha ocorrido uma subnotificação importante em razão da dificuldade ainda maior de conseguir fazer essa denúncia. Nós sabemos que as tensões familiares aumentaram e se intensificaram. A mulher passa mais tempo em contato com o opressor e isso pode dificultar o acesso à denúncia, fica mais difícil pedir ajuda.”

A promotora de Justiça Carla Souto, da Promotoria Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), inclusive alertou para o fato de que em alguns casos de feminicídio não havia nenhuma denúncia anterior. “Os dados da Polícia Civil que indicam uma diminuição nos registros de ocorrência são muito preocupantes, porque se chega a conclusão de que há um número muito grande de mulheres sendo agredidas e sem buscar ajuda. Sem ter ajuda.”

Um levantamento inédito sobre a violência doméstica realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entre os meses de março e abril deste ano apontou que os casos de feminicídio no País aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019. Somente nesses dois meses, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes. Entre os 20 estados brasileiros que liberaram dados das secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de 54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo índice. Os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano em 12 estados do país. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, o documento foi divulgado hoje (1º) e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros.

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MÁSCARA ROXA

No Rio Grande do Sul, um dos estados que registrou crescimento no número de feminicídios, 28 mulheres foram assassinadas por questões de gênero nos meses de março, abril e maio, . Os dados são da Secretaria de Segurança Pública. Em abril, o aumento foi de 66,7% em relação ao mesmo período do ano passado. O aumento no número de feminicídios entre março e abril  e o fato de o confinamento dificultar a denúncia das vítimas levou o Comitê Gaúcho ElesPorElas, da ONU Mulheres, a criar a Campanha Máscara Roxa, que permite que mulheres vítimas de violência façam a comunicação do crime em farmácias. Para facilitar,  os estabelecimentos credenciados apresentam o selo “Farmácia Amiga das Mulheres”, que serve para que as vítimas as identifiquem.

O procedimento é bastante simples: a vítima precisa ir até uma farmácia que tenha aderido à campanha e pedir por uma “máscara roxa”, que é a senha para que o atendente saiba que se trata de um pedido de ajuda. O profissional, que recebeu capacitação online para realizar o procedimento de forma adequada e garantir a segurança das mulheres,  vai responder que o produto está em falta e vai solicitar alguns dados para que possa avisá-la quando a suposta máscara chegar. Ele pede pelo nome, endereço e dois números de telefone para contato. O deputado estadual Edegar Pretto (PT), coordenador do Comitê e idealizador da campanha, explica que a necessidade dos dois números de telefone é porque, em muitos casos, o agressor está vigiando a vítima. “Uma das dificuldades que as mulheres encontram para pedir ajuda é justamente porque são vigiadas e constrangidas, isso quando o agressor não está de posse do aparelho. Então é importante que tenha um contato alternativo”, diz. Fornecidos os dados, o próximo passo é passar essas informações para a Polícia Civil por meio do WhatsApp, para garantir também o anonimato do atendente. A partir daí, os policiais ficam responsáveis por auxiliar a vítima.

A campanha foi lançada em 10 de junho no RS e já está em milhares de farmácias de todo da capital e do interior – em grandes redes e lojas individuais. A Polícia Civil disponibilizou um número específico para receber as denúncias da campanha, que fica “ligado” 24h por dia. Até o final de setembro foram registradas 31 denúncias em farmácias do Rio Grande do Sul. Também foram efetuadas três prisões em flagrante nos municípios de Porto Alegre, Caxias do Sul e Rio Grande.

Pretto , que faz parte do Comitê Eles por Elas desde a criação do He for She, em 2013, explicou que ele e sua equipe pensaram nessa iniciativa a partir da recomendação da ONU para que as nações membros da Organização constituíssem politicas afirmativas de facilitação de denúncias. “O governo brasileiro não deu importância, diferente de outros países europeus e mesmo sulamericanos como Argentina, que criou a campanha da Mascara Roja, e do Chile. Então nós entendemos que algo deveria ser feito.”

Foto: Leandro Molina

A percepção do parlamentar, de que o governo brasileiro não tomou medidas efetivas para o combate à violência doméstica do país, foi confirmada pelo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo as informações publicadas no Anúario da Segurança, a ONU fez uma série de recomendações para orientar os países no enfrentamento da violência contra a mulher nesse período. A Organização destacou uma série de medidas possíveis, como a necessidade de se aumentar os investimentos em serviços de atendimento online, de se estabelecer serviços de alerta de emergência em farmácias e supermercado e ainda a importância de criar abrigos temporários para vítimas de violência de gênero. Apesar das recomendações, o documento produzido pelo Fórum indica que, embora o governo federal tenha se posicionado publicamente sobre a questão, em comparação com outros países, as iniciativas divulgadas no Brasil não foram suficientes para combater a violência doméstica neste período. Pelo contrário.

As medidas anunciadas pelo governo de Jair Bolsonaro eram campanhas voltadas a recomendações gerais sobre atuação das redes de proteção. Isso também é importante, mas não foram apresentadas saídas concretas e imediatas. Enquanto isso, países como França, Espanha, Itália e Argentina, por exemplo, transformaram quartos de hotéis em abrigos temporários e criaram centros de aconselhamentos em farmácias e supermercados para que as denúncias fossem realizadas por meio de “palavras-código”, exatamente como a iniciativa crida no Rio Grande do Sul.

A Campanha da Máscara Roxa mobiliza diversas instituições em torno da combate à violência de gênero. Ela se concretiza a partir de um termo de cooperação assinado por Ministério Público do Rio Grande do Sul; Tribunal de Justiça do RS;  Poder Executivo gaúcho, por meio do Departamento de Políticas Públicas para as Mulheres, Polícia Civil e Brigada Militar;  Defensoria Pública; ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos;  Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem); Agência Moove; Grupo RBS; e Rede de Farmácias Associadas. A defensora pública Liseane Hartmann conta que cada participante assumiu o compromisso de divulgar da forma mais ampla possível o trabalho das instituições no sentido de que as vítimas tenham um fácil acesso aos canais de denúncia. “Hoje nós já contamos com o trabalho online das delegacias de polícia, porém, nós sabemos em alguns casos a vítima está em contato direto com o ofensor e não tem o acesso facilitado por parte de um computador ou celular. Então, ela podendo se dirigir a uma farmácia amiga das mulheres, ela simplesmente solicitar uma máscara roxa.

Uma pesquisa conduzida pela promotora de Justiça de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes investigou 364 denúncias provenientes de feminicídios. O estudo mostrou  que 30% das mortes aconteceram aos sábados ou domingos. Ou seja, quando a maioria das delegacias está fechada. A pesquisa ainda indicou que a cada quatro feminicídios, um tem uma segunda vítima, como filhos ou outros parentes. Em 66% dos casos, as mortes ocorreram em casa. E de todas as vítimas, 97% não tinham medida protetiva e só 4% tinham registrado boletim de ocorrência. Os números só reforçam a importância de se viabilizar um canal de denúncia alternativo às mulheres.

A promotora de Justiça Carla Souto, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ressalta a importância da denúncia, que ela chama de “mais um ato de coragem”. “Eu falo em coragem porque é, realmente, muito difícil. Não é fácil denunciar o agressor que muitas vezes é o companheiro, pai dos filhos. Em tempos de pandemia, em que as pessoas se encontram isoladas dentro de casa, esse desafio fica muito maior. Além de a vítima tomar a decisão de denunciar, e não é simples em razão do ciclo da violência, ela tem que ter como fazê-lo. E sem saídas para o trabalho, ela isolada junto como agressor é extremamente difícil.”

Nossa Mama não conseguiu fazer uma denúncia formal, mas conseguiu pedir ajuda. Esse foi o primeiro ato de coragem e foi recompensado. No dia seis de agosto deste ano, chegou uma nova mensagem pelo WhatsApp.

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“Conseguiram o abrigo, vão buscar a mãe e os 2 meninos hoje. E foi bem em tempo. Tudo muito triste, mas todos bem (fisicamente) e hoje saem de lá. Valeu mesmo.”

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ENTENDA O CICLO DA VIOLÊNCIA

Ciclo da Violência tem três fases. Na Fase 1, ocorre o aumento da tensão. Nesse momento, o agressor se mostra tenso e irritado por coisas pequenas. É agora que ele começa a ter acessos de raiva, humilhar, fazer ameaças e quebrar objetos. Neste ponto, a mulher tenta acalmar o agressor e evitar qualquer coisa que possa provocá-lo. Em geral, na fase 1, a vítima tende a negar que isso esteja acontecendo com ela. Ela esconde o jogo, não conversa sobre a situação com ninguém e inclusive se sente culpada, acha que mereceu, que fez algo errado. Ou seja, ela justifica o comportamento violento do agressor. Lembra da Mama de Chimamanda falando do peso que o marido carregava? Essa tensão pode durar dias ou anos. Mas conforme aumenta, é provável que leve à Fase 2.

Nesse segundo momento ocorre a explosão. A tensão da primeira fase se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. A vítima se sente perdida e paralisada. Neste ponto, ela sofre de uma tensão severa que pode levar à insônia, perda de peso, fadiga constante e ansiedade. Ela sente medo, ódio, solidão, vergonha. É agora que ela pode tomar a decisão de buscar ajuda, denunciar ou se esconder na casa de conhecidos. O que leva à Fase 3.

O terceiro momento do Ciclo da Violência é conhecido como lua de mel. O agressor se mostra arrependido e passar a se comportar de forma carinhosa. Diz que nunca mais fará aquilo novamente.

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“A dor me queimava agora, estava mais parecida com mordidas, porque o metal caía sobre as feridas expostas na lateral do meu corpo, em minhas costas, minhas pernas. Chute. Chute. Chute.

[…]

O rosto de Papa estava próximo do meu. Tão perto que seu nariz quase tocou o meu, mas mesmo assim vi que seus olhos estavam mansos, que ele falava e chorava ao mesmo tempo. -Minha filha preciosa. Nada vai acontecer com você. Minha filha preciosa.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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Na fase 3, a mulher pode se sentir confusa e pressionada a manter o relacionamento, especialmente se o casal tem filhos. Se a mulher decide retomar o relacionamento, o período subsequente costuma ser calmo e ela se sente feliz por ter dado uma nova chance. E como há, geralmente, a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele. isso estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. A mulher, porém, continua confusa e, por fim, a tensão volta. E com ela, as agressões da Fase 1. E tudo recomeça.

A nossa Kambili não recebeu propriamente um pedido de desculpas, mas a mãe dela ouviu a promessa de que aquilo não aconteceria mais, mesmo que o agressor continue bebendo demais, ignorando o alcoolismo da família que, antigamente, era gatilho para a violência do próprio pai.

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COMO E ONDE PEDIR AJUDA

Mas se a nossa Kambili ou a mãe conseguirem romper o ciclo, elas não estarão sozinhas.  Primeiro, a mulher pode ligar para o 180, que é o número do serviço da Central de Atendimento à Mulher, um serviço que presta escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência e que registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes. Em caso de emergência, a mulher pode ainda ligar para o 190 e acionar o serviço da Polícia Militar. Para o caso do registro de ocorrência, a vítima pode fazer isso pessoalmente em uma Delegacia de Polícia ou fazer o registro online. No Rio Grande do Sul, ela ainda tem a opção de fazer a denúncia nas farmácias, usando a senha “Máscara Roxa”.

Mas há uma série de instituições que podem ajudar as mulheres no processo e quebrar o ciclo da violência. A Defensoria Pública também presta atendimento jurídico às vítimas de violência de gênero, inclusive doméstica e familiar. Em Porto Alegre, o Núcleo de Defesa da Mulher realiza ações e atividades voltadas à prevenção, defesa e garantia dos direitos das mulheres no âmbito da defensoria. “A nossa atuação é tanto na área criminal como na área cível, então a assistência às vítimas de violência na solicitação de medidas protetivas de urgência, que são previstas na Lei Maria da Penha, e também a questão da parte cível, que compreende as ações de divórcio, dissolução de união estável, pensão, guarda dos filhos e visitas”, explica a defensora Liseane Hartmann. Mas também há ações extra-judiciais, como orientação acerca dos direitos das vítimas e informação quanto à rede de proteção à mulher, com auxilio da Defensoria, Delegacias, Brigada Militar e Ministério Público. “O problema da violência doméstica é multidisciplinar. É preciso olhar para o problema como uma questão de saúde, assistencial e de segurança”, disse.

Já a promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica de Porto Alegre, por exemplo, atua em duas frentes: medidas protetivas e processos criminais.

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COMO FUNCIONAM AS MEDIDAS PROTETIVAS?

Medidas protetivas são decisões judiciais rápidas que tem o objetivo de proteger a mulher e evitar o desgaste da vítima. A ideia é que, com uma medida protetiva, a mulher esteja resguardada e não precise de peregrinação em busca de assistência jurídica. Existem vários tipos de medidas protetivas, mas as mais comuns são o afastamento do agressor do lar; a proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares; suspensão de procurações concedidas pela vítima ao agressor; prestação de alimentos aos filhos menores; e a suspensão do porte de arma de fogo do agressor; separação de corpos; proibição de contato ou aproximação com a vítima; restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores; restituição de bens indevidamente subtraídos; encaminhamento da vítima a programa de proteção ou atendimento.

Quando a vítima faz o registro de ocorrência, via de regra, ela é questionada sobre o interesse em medidas protetivas. A promotora Carla Souto explica que essas medidas são muito importantes também porque tem um caráter inibidor. “Nós já temos dados que nos indicam que as mulheres que tem medidas protetivas realmente consegue evitar que se chegue ao mal maior, que é o feminicídio. Esse ano, durante a pandemia, em abril nós tivemos um número absurdo de feminicídios e, aqui no RS, só uma delas tinha medida protetiva.”

Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), 76% das vítimas de feminicídio e 85% das mulheres que sofreram de tentativa de feminicídio haviam sofrido atos de perseguição nos 12 meses anteriores ao ato. Mais do que isso, 41% dos agressores voltam a praticar violência contra as mesmas vítimas no período de até dois anos e meio após um incidente anterior de violência. A maioria das mortes que decorrem da violência de gênero ocorre no contexto de um relacionamento marcado por violência.

O caminho para conseguir uma medida protetiva é o seguinte: a vítima faz o registro de ocorrência e comunica que precisa de medida protetiva. Esse pedido vai direto ao Judiciário, para que o juiz defira ou não. Deferido o pedido, o agressor é intimado pessoalmente. “Ele não pode se aproximar da vítima, nem do local de trabalho e não pode manter nenhum tipo de contato, nem por WhatsApp ou telefone. Então isso nos traz uma referência que funciona”, explica a promotora. A medida protetiva ainda tem uma outra função: o agressor que descumpre uma medida protetiva pode ser preso em flagrante.

O Ministério Público ainda atua nos processos criminais. “Neste ponto, é importante que se diga que vai chegar o momento em que a vítima será chamada a comparece ao Fórum para falar sobre o que aconteceu. E é importante que ela compareça, senão a gente fica sem poder comprovar o que se falou no registro de ocorrência e se tem muitas absolvições”, alertou a promotora.

No ano passado, o MP lançou a cartilha virtual “Todos e todas pelo fim da violência contra a mulher”.  O documento explica, de forma didática, o que é violência doméstica e familiar  e como funciona o ciclo, além de identificar todas as formas de violência. mostra como opera o ciclo de que seja compartilhada pelas redes sociais digitais. A cartilha também traz  informações sobre onde e como buscar ajuda e pode ser compartilhada em redes sociais.

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EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, METE-SE A COLHER

A promotora de Justiça Carla Souto lembra que é importante falar sobre o assunto. “Nós precisamos falar muito sobre isso, para que a gente consiga alterar a cultura que ainda existe em algumas pessoas, de que é uma questão do marido e da mulher e que ninguém tem que interferir. A questão da violência doméstica é um problema de cada um de nós, é uma questão que envolve os Direitos Humanos, a dignidade. É um problema de saúde pública. As vítimas da violência, para além da violência física, estão desenvolvendo problemas de saúde mental extremamente graves. Depressão, ansiedade. Afora isso, tem os filhos. Porque o menino que vive em um lar violento vai ter a tendência, no futuro, de reprisar aqueles mesmo atos de violência. E a menina a ser tolerante com a violência. Então o problema vai pra muito além.”

Ela alerta para o fato de que a violência de gênero não causa tanta comoção como outros crimes. Percebe cultura de culpabilização da vítima e ela cultura alimenta o ciclo da violência e que faz com que as vítimas permaneçam caladas. Porque ela tá em todos nós. E a mulher acaba acreditando nisso, porque a questão da violência psicológica é extremamente grave. Seguidamente em audiência a gente ouve as mulheres dizendo “eu que provoquei”, “eu que quis estudar”.

“Eu acredito que nós estamos em um momento único na questão do olhar pra violência doméstica. Agora, no RS, foi lançada essa campanha da qual o MP é parceiro. E com isso, eu percebo uma mudança institucional importante no Ministério Público, no sentido do quanto é importante o trabalho dos promotores nessa área. E pela Polícia Civil, eu só vejo excelência no que eles estão produzindo. Isso mostra que as instituições estão conseguindo compreender o ciclo da violência.”

A promotora Carla Souto ainda alerta para o fato de que as pessoas que estão no entorno dessas mulheres devem prestar atenção às microviolências. “Às vezes a própria vítima não entende que está em um relacionamento abusivo. Então é importante que nós, como amigas ou conhecidas, estejamos atentas. Se de uma hora para outra essa mulher mudou de forma drástica, vamos perguntar. É importante denunciar, mas é importante, também, falar. O primeiro passo é falar para alguém, contar para uma amiga, para um familiar. Há algo que eu uso enquanto promotora e como amiga. Se por dez vezes ela voltar para aquele agressor, por onze vezes eu vou estar aqui, apoiando e dando suporte. Também a família e os amigos não podem desistir.” Segundo a promotora, a violência contra a mulher é uma epidemia, é um problema de saúde pública.

“Isso não pode continuar nwunye m – disse tia Ifeoma. – Quando uma casa está pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

 

*Os nomes foram modificados e a verdadeira identidade protegida a pedido das entrevistadas

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #45 Violência contra as mulheres

Geórgia Santos
3 de fevereiro de 2020

É imperativo que a sociedade brasileira discuta os casos de violência contra a mulher e relacionamentos abusivos. A desinformação ficou escancarado na última semana quando Micheli Schlosser pediu autorização para beijar o namorado. O problema? Lisandro Rafael Posselt, de 28 anos, estava sendo julgado por tentativa de feminídio. Contra a própria Micheli. Em agosto do ano passado, após uma discussão, ele disparou sete vezes contra a namorada. Acertou cinco.

Ele foi condenado a sete anos de prisão pelo Tribunal do Júri em Venâncio Aires, no Rio Grande do Sul. Ele estava preso mas vai ficar em liberdade, pois não possui antecedentes e a pena foi menor do que oito anos. No tribunal das redes sociais, o julgamento foi bastante rápido. O julgamento de Micheli.

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“O amor venceu”, diziam alguns
“Mulher gosta de cafajeste”; “Ela é doida”; “Essa gosta de apanhar”, diziam outros
“Não tem amor próprio”; “Quem sou eu pra criticar o amor?”
“Da próxima vez que acontecer, sim porque vai acontecer novamente, espero que ela se lembre disso e não invente de ligar pra polícia, pois a partir do momento que beijou quem tentou lhe matar ela jogou no lixo o trabalho da policia e da justiça”
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No fim, é a demonstração do quanto é difícil quebrar um ciclo de abuso e violência. Por isso, vamos ouvir a psicóloga Daniela Zanetti, que vai contar quais são os sinais de um relacionamento abusivo e quais os passos para quebrar essa corrente de violência.

O tema vem na esteira de uma reportagem produzida pelo Vós, que venceu a primeira edição do Prêmio C6 Bank de Jornalismo. Na matéria, as jornalistas Flávia Cunha e Geórgia Santos falam sobre outros tipos de violência, como a psicológica, moral e patrimonial.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha e Tércio Saccol. 

Voos Literários

O beijo e o ciclo da violência doméstica

Flávia Cunha
31 de janeiro de 2020

ALERTA: Esse texto aborda a violência contra a mulher, com conteúdo que pode provocar gatilhos emocionais. Além disso, para os leitores que não gostam de spoilers, usei trechos do livro Hibisco Roxo, além de dar detalhes do enredo.   

O caso da mulher que beijou o ex-namorado em pleno tribunal, no interior do Rio Grande do Sul, após ele ter tentado matá-la com cinco tiros ganhou grande repercussão nacional. E o perdão virou-se contra a vítima, com o julgamento nas redes sociais, dentro da não-compreensão do ciclo da violência dentro de um relacionamento abusivo. Por coincidência, quando o assunto veio à tona nessa semana, eu estava terminando a leitura do livro Hibisco Roxo

Na obra, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie aborda, com muita delicadeza, o tema da violência doméstica, expondo toda a complexidade do assunto. O enredo é narrado pela adolescente Kambili, que aos poucos vai revelando aos leitores o grande segredo de sua família. Seu pai, um próspero empresário e católico fervoroso, exerce um total controle sobre a esposa, o filho e a filha. Ao ser desobedecido ou quando considera que houve algum pecado dentro de sua rígida visão de mundo, Eugene aplica castigos em seus familiares. Os maus-tratos vão sendo intensificados ao longo da narrativa, conforme a situação política da Nigéria vai interferindo na rotina do tão temido Papa.

Quem enfrenta Eugene é sua irmã Ifeoma, uma viúva feminista e professora universitária, que prefere não depender financeiramente do irmão. É na casa dessa tia decidida que Kambili e seu irmão Jaja conseguem, aos poucos, romper o controle emocional (e até mental) exercido pelo pai abusivo. Em determinado ponto da narrativa, a mãe consegue fugir do marido e parece prestes a terminar com o casamento.  Chegando na casa da cunhada, ela explica que sofreu um aborto espontâneo depois de ter sido espancada pelo marido:

– Eu estava grávida de seis semanas.  – Ekwuzinal Não repita isso! – exclamou tia Ifeoma, arregalando os olhos.  – É verdade. Eugene não sabia. Eu ainda não tinha contado a ele, mas é verdade. 
Mama escorregou para o chão. Ficou sentada com as pernas esticadas à frente do corpo. Era uma postura humilhante, mas me abaixei e sentei ao lado dela, com meu ombro tocando o seu. Mama chorou por muito tempo.”

Logo em seguida, a história revela a dependência emocional exercida dentro de relacionamentos abusivos. Quando o marido violento entra em contato por telefone, Beatrice recua na sua atitude de sair de casa:

“Tia Ifeoma atendeu e depois veio dizer a Mama quem tinha sido. – Eu desliguei. Disse a ele que não ia deixar você falar com ele.  Mama pulou do banquinho. – Por quê? Por quê?  – Nwunye m, sente-se agora! – disse tia Ifeoma, irritada.  Mas Mama não se sentou. Ela foi para o quarto de tia Ifeoma e ligou para Papa. O telefone tocou logo depois e eu soube que ele tinha retornado a ligação. Mama saiu do quarto depois de mais ou menos quinze minutos. – Nós vamos amanhã. As crianças e eu – disse ela, olhando para algum ponto acima da cabeça de todos nós. – Vão para onde? – perguntou tia Ifeoma. – Para Enugu. Vamos voltar para casa.” 

E por mais que a cunhada tente argumentar, Beatrice prefere voltar para perto do marido abusador, demonstrando o quanto é difícil romper o ciclo da violência doméstica:

“- Você tem um parafuso solto na cabeça, gbo? Vocês não vão a lugar nenhum.  – Eugene vai vir nos apanhar.  – Escute… Tia Ifeoma falou num tom mais suave; ela deve ter percebido que um tom firme não penetraria no sorriso fixo no rosto de Mama. O olhar de Mama continuava vidrado, mas ela parecia ser outra mulher, não a mesma que saltara do táxi de manhã. Parecia estar possuída por outro demônio. – Fique pelo menos alguns dias, nwunye m, não volte tão cedo. Mama balançou a cabeça. Não havia nenhuma expressão em seu rosto, a não ser um sorriso duro. – Eugene não anda bem disse ela. – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar. Você sabe o que a morte de Ade fez com ele? É demais para uma só pessoa.[…] Você sabia que Eugene paga a mensalidade escolar de mais de cem pessoas? Sabe quantas pessoas estão vivas por causa do seu irmão? – Não é disso que eu estou falando, e você sabe muito bem. […] Sabe quantas mães empurraram suas filhas para ele? Sabe quantas pediram que ele engravidasse suas filhas, sem nem precisar se incomodar em pagar o preço de uma noiva? – E daí? Diga… e daí? retrucou tia Ifeoma, gritando. “

Como podemos perceber no trecho acima, a mulher vítima de violência dentro de um casamento procura encontrar motivos para justificar o comportamento do marido abusivo. É muito difícil para quem está de fora da relação compreender, como podemos notar pela reação da personagem Ifeoma. No caso real da mulher que preferiu perdoar o ex e retomar o relacionamento agora que o homem foi absolvido da tentativa de homicídio, me parece que o mais conveniente seria tentarmos não julgá-la. Se a conhecesse, aconselharia terapia e cautela. Alguém que reage com tamanha violência depois de uma discussão conjugal parece ter dificuldade de controlar a raiva, o que pode ser muito perigoso no futuro.

Infelizmente, esse beijo em público está sendo usado para justificar a violência contra a mulher. E para isso, não pode haver perdão. 
Reportagens Especiais

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira”

Geórgia Santos
10 de dezembro de 2019

Por Flávia Cunha e Geórgia Santos

Nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica incluem o que se conhece por violência patrimonial, que ocorre quando o parceiro utiliza o dinheiro para controlar a mulher. No Brasil não há dados compilados sobre o crime previsto na Lei Maria da Penha, mas a transformação do papel da mulher na sociedade mostra que a educação financeira pode ser um passo importante para a superação de um relacionamento abusivo e usada como prática de combate à violência patrimonial


Ela sempre sonhou com aquele apartamento. Não que ela tivesse passado dificuldades na infância, mas aquele imóvel era a projeção de uma vida confortável para a família que ela havia construído. Era lindo. Grande. Tinha 137 m², três quartos, dois banheiros, sala ampla e churrasqueira. Isso sem falar no condomínio com piscina, salão de festas, playground, espaço kids, salão de jogos e quadras esportivas. O sonho de sempre da administradora Maria* custava aproximadamente R$ 1 milhão. O dinheiro não seria um problema. A família havia atingido um patamar financeiro estável já que o marido era um profissional da área da saúde com rendimentos muito acima da média nacional de todos os trabalhadores ocupados, que em 2019 está RS2.234. Mas o preço que ela pagaria seria infinitamente mais alto que o valor monetário. O apartamento tão desejado viraria palco de brigas e discussões frequentes – muitas delas presenciadas pelas duas filhas pequenas do casal. O apartamento dos sonhos abrigaria, então, um casamento recheado de traições, abuso psicológico, humilhações. Um casamento em que o dinheiro desempenhava um papel central de controle.

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria
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Em 2017, o casamento de 12 anos acabou após uma violenta discussão dentro das dependências do edifício de alto padrão. “Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria. Na iminência de uma agressão física, um dos seguranças do prédio interferiu e evitou que algo pior acontecesse. A polícia chegou a ser chamada ao local e o agora ex-marido devolveu as chaves, contrariado. Saiu fazendo xingamentos. Maria não via assim à época, mas ela era vítima de um relacionamento abusivo.

 

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

O estopim para o final do relacionamento foi uma mistura entre traição e descaso como pai. “Eu tinha visto no celular dele muitas mensagens marcando encontros com diversas mulheres, algumas falando de mim de uma forma nada respeitosa. Ali foi a gota d´água. Ele recém havia voltado de uma viagem e mal tinha entrado em contato conosco, apesar de a nossa filha mais velha ter ficado hospitalizada durante uma semana. Depois, descobri que ele estava com outra mulher no Rio de Janeiro, enquanto eu estava aqui cuidando da família”. Ela também recorda que o marido não agia como se fossem realmente um casal, em que os bens seriam divididos. “Dizia que eu não teria direito a nada. Sempre teve esse tipo de chantagem psicológica para tentar evitar a separação”, lamenta.

A psicóloga Daniela Zanetti, especialista em terapia de casal e família, explica que a chantagem emocional e a manipulação podem fazer com que muitas mulheres tenham dúvidas se estão realmente em um relacionamento abusivo. “É preciso estar atento aos sinais, principalmente o controle e o ciúme excessivos, camuflados de amor e cuidado”, enfatiza. Ela destaca que a tecnologia pode ser usada como uma forma tóxica de fiscalização constante, por meio de aplicativos com GPS que monitoram os passos da parceira. “O ideal é não dar espaço para esse tipo de comportamento, já que um relacionamento saudável pressupõe confiança”, aconselha Daniela.

 

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VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

No caso de Maria, mais do que estar em um relacionamento abusivo, ela ainda sofria com a violência doméstica. Ela não sofreu nenhum tipo de agressão física ou sexual, mas ela foi vítima de outros tipos de violência: psicológica, moral e patrimonial. Segundo a Lei Maria da Penha, a primeira é entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e que tenha por objetivo, entre outras coisas, controlar a vítima mediante ameaça, constrangimento, humilhação, insultos e ridicularização. Enquanto a violência moral diz respeito às ações que configurem calúnia, difamação ou injúria. Já a violência patrimonial, segundo o texto, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”

Maria percebe que o dinheiro sempre desempenhou um papel central no relacionamento com o ex-marido. Ele nunca quis, espontaneamente, proporcionar uma vida confortável para as próprias filhas, por exemplo. Ele reclamava de cada gasto. Roupas infantis, brinquedos e mensalidades escolares eram tratados como uma exploração por parte de uma mulher gananciosa e pouco confiável. Por outro lado, entendia que sua única responsabilidade era a financeira, tanto que era um pai ausente emocionalmente e pouco disposto a se envolver nos cuidados com as filhas e nas tarefas domésticas. “Se chegava em casa e a janta não estava pronta, me humilhava na frente das crianças”, recorda. Quando ela descobria traições, a reação do marido era sempre a mesma: dizer que não era importante, que ficaria tudo bem e convidá-la para ir a um shopping para comprar um presente ou dizer que faria uma transferência bancária generosa. “Para ele, o dinheiro comprava tudo.”

A psicóloga Daniela Zanetti explica que, em casos como o de Maria, também é comum o homem sugerir que a mulher largue o emprego ou tenha uma atividade profissional com menos carga horária do que o usual, fazendo com que a remuneração da parceira seja a menor dentro do relacionamento. “É uma forma de o controle se estabelecer. Em um primeiro momento, o discurso é de cuidado e preocupação, para que a mulher tenha mais tempo livre para se dedicar para a família, por exemplo.” De acordo com a especialista, o abusador espera essa nova dinâmica se estabelecer para, então, reclamar da falta de dinheiro e do fato de ser o principal provedor da casa. “É um discurso ambivalente, que oscila entre momentos de agressividade e demonstrações de afeto, desestabilizando a parceira.” Em relacionamentos tóxicos, despesas familiares são tratadas como uma forma da mulher “se aproveitar” do marido.

O Brasil ainda carece de dados no que tange à violência patrimonial. Não há informações sobre o número de casos no país. O Dossiê Mulher 2018 (ISP/RJ), do Instituto Patrícia Galvão, é o que temos de mais concreto. O documento indica as mulheres foram as maiores vítimas do crime no Estado do Rio de Janeiro em 2017. O principal tipo foi o dano, que aparece em 50,4% dos casos, seguido da violação de domicílio (41,8%) e da supressão de documentos, 7,8%. Além disso, o texto mostra que 43,3% dos casos ocorreram na casa da vítima, por namorados, maridos ou ex-companheiros. Se forem somados os pais, padrastos, parentes e conhecidos, o número chega a 59,9%.

A fundação americana Purple Purse, que se dedica a quebrar o ciclo de violência por meio do empoderamento financeiro indica que, nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica envolvem abuso financeiro. “Acontece todos os dias e não discrimina. Afeta todas as classes, raças e comunidades. E homens são vítimas também.” Para testar a solidariedade dos americanos, a organização produziu um vídeo em que uma mulher esquece uma bolsa roxa (purple purse em inglês) em um táxi. Assim que um novo passageiro entra no veículo, o telefone celular está dentro da bolsa começa a receber mensagens ameaçadoras, supostamente do parceiro. Em seguida, a mulher liga para próprio aparelho em busca de seus pertences. O vídeo abaixo mostra alguns dos casos em que as pessoas se preocuparam com o bem-estar da dona da bolsa roxa.

A Purple Purse recomenda ficar alerta aos primeiros sinais. Como qualquer violência doméstica, a violência patrimonial começa com um padrão abusivo de comportamento, usado para controlar e intimidar a parceira. É uma conduta que começa de forma sutil, progride com o tempo. Além da chantagem emocional e das ações listadas pela psicóloga Daniela Zanetti, a organização ainda indica que há outras maneiras pelas quais o companheiro pode tentar assumir o controle dos recursos financeiros da mulher. As principais delas são: restringir os gastos diários; desviar recursos da esposa; impedir o acesso às contas bancárias; sabotar a educação e o emprego da parceira; excluir a mulher do planejamento financeiro; e criar dívidas.

Fontes: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família / Lei Maria da Penha

Para quem olha a situação de fora, pode parecer impossível que uma mulher não se afaste de alguém que a agrida diariamente. Que a faça sofrer. Que a humilhe e insulte constantemente. Mas a violência patrimonial paralisa. Não bastassem chantagens emocionais e as constantes ameaças, a supressão de documentos e a limitação de acesso aos recursos financeiros do casal deixam a mulher isolada e sem ter a quem recorrer. No website da fundação Purple Purse, os visitantes são convidados a assumir o papel da vítima em uma situação de violência doméstica durante uma experiência de realidade virtual chamada Trapped – Descubra por que vítimas de violência doméstica não podem sair de casa.

Nós decidimos fazer o teste. Assim que a experiência começa o visitante assume o papel de uma mulher de 33 anos que é dona de casa, tem filhos e é casada desde o final da faculdade. Nos últimos anos, o estresse do trabalho, segundo o texto, transformou o temperamento do parceiro de ciumento para controlador até que chegou ao ponto da agressão física. Ela já não se sente mais segura na própria casa. Neste momento, a pessoa pode escolher entre sair ou permanecer. Nós clicamos no botão que indicava a saída e prontamente surgiu a dúvida: para onde você vai? Uma das opções era família, e foi a que nós escolhemos. Em seguida, surgiu o seguinte texto: 65% das americanas não acreditam que sua família saberia se elas estivessem em um relacionamento financeiramente abusivo. A experiência continua e é aterrorizante.

Você pode ver como funciona aqui – apenas tenha cuidado, pois pode ativar gatilhos

Foto: Reprodução

“As pessoas acham que você pode simplesmente sair; que você pode simplesmente se levantar e ir. Não é sempre assim”, diz Susan, em um dos depoimentos disponíveis no site. “Nós ficamos juntos por dois anos e eu levei dois anos para me afastar dele. Não era claro para mim o quão profundo havia sido o abuso financeiro”, completou Krista. Mas para Ana a violência era muito clara. Ela já havia apanhado do namorado incontáveis vezes quando decidiu terminar a relação. Mas ele não aceitou. Além de espancá-la, recusava-se a sair do imóvel que ela tinha comprado sozinha, com muito esforço. Só o fez quando ela decidiu chamar a polícia, mais de um ano depois. Ainda assim, ele espreitava a casa à noite na tentativa de intimidá-la. Foram anos até que ela pôde sentar na sacada sem medo.

Maria também tinha receio de romper com aquele relacionamento, apesar das infidelidades e da ausência de demonstração de afeto para ela e as crianças. Ela tinha medo de não conseguir manter o padrão de vida e de prejudicar financeira e emocionalmente as filhas. E essa é, de fato, uma das principais preocupações das mulheres que sofrem com a violência patrimonial, elas tem medo de não conseguir pagar as contas, receiam passar por dificuldades extremas e sofrem com a possibilidade de não poder sustentar os próprios filhos.

A saída de um relacionamento abusivo não é simples nem rápida. Algumas mulheres não tem a quem recorrer, estão alienadas dos amigos e familiares e sem acesso a recursos financeiros. Há mulheres que não tem para onde ir. Há mulheres sem emprego, cuja única fonte de renda era o marido. Mesmo assim, a psicóloga Daniela Zanetti insiste que é preciso procurar ajuda profissional, antes de qualquer coisa. Se a mulher tiver condições financeiras, deve procurar um terapeuta. No caso de mulheres vulneráveis, a orientação é procurar ajuda de uma assistente social, que fará o encaminhamento adequado. “O psicólogo dará o apoio necessário para a mulher começar a reagir àquela situação”, garante Daniela Zanetti. A profissional explica que cada paciente tem suas particularidades, tanto no tempo para se dar conta dos danos provocados por uma relação tóxica quanto para recuperar a autoestima e independência emocional. “Depois desse fortalecimento é que podemos trabalhar, durante a terapia, em questões mais práticas.”

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

A psicóloga ressalta que o principal nesse momento de fragilidade é a mulher não ter vergonha de suas atitudes e decisões, caso tenha se afastado de amigos e familiares em função de um casamento que revelou-se abusivo. “Ter uma rede de apoio é fundamental para essas mulheres”. Passado o início desse processo de cura, a fundação Purple Purse ainda orienta que a mulher procure informações sobre educação financeira.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA

No caso de vítimas de violência doméstica, a educação financeira pode ser o passo definitivo para encerrar um ciclo de violência patrimonial que tem uma raiz profunda na sociedade patriarcal em que as mulheres não são educadas para lidar com o dinheiro. E é muito mais que planejamento. Consiste numa série de ações que tem por objetivo diminuir despesas, aumentar ganhos e, eventualmente, investir e acumular recursos. Ou seja, é um conjunto de práticas que minimizam os riscos no que diz respeito à situação financeira com escolhas conscientes e planejadas.

Com isso em mente, a educadora financeira Leila Ghiorzi e a advogada Gabriela Souza pensaram a oficina “Dinheiro também empodera: como o autocuidado financeiro pode proteger as mulheres da violência doméstica”, em Porto Alegre.

“Nós vivemos em uma sociedade muito machista e patriarcal e isso faz com que tenha, sim, uma bagagem diferente com relação aos gastos”,  disse Leila. Ao homem, cabe o fardo de ser o responsável pelo sustento de uma família, à mulher, cabe o fardo de ser submissa e dependente financeiramente. “Isso é construído socialmente. A questão de o homem ter que arcar com tudo vem de uma época em que a mulher não podia trabalhar e do mito que a mulher é interesseira. Essa é uma herança de quando a única forma de ascensão social da mulher era casar com um homem rico. Era a única forma, porque não podia sair da casa dos pais sem casar, não podia trabalhar, então era única a opção. Mesmo que isso significasse passar por certas humilhações e violências pra manter o casamento”, explicou. E, como vimos anteriormente, é fato que muitas relações ainda se sustentam porque, se o casal se separar, a mulher não tem como se sustentar financeiramente.

Isso não significa que as mulheres gastem mais, não há evidências que comprovem esse fantasia sustentada por muitos machões. Por outro lado, as mulheres pedem mais ajuda. E essa é uma porta importante para conectar a educação financeira à quebra do ciclo da violência doméstica.

Leila conta que já atendeu diversas mulheres que procuraram ajuda para organizar a vida financeira e que não percebiam que estavam sendo vítimas de violência patrimonial. E as situações eram as mais variadas, inclusive casos em que a mulher ganhava mais dinheiro mas era o companheiro quem gerenciava os recursos da casa – e não por uma opção dela. Na oficina, essa porta fica ainda mais aberta, pois é um espaço seguro de compartilhamento. “Acontece muito de alguém ouvir uma história e dizer: “Ah, eu já passei por isso e não tinha me dado conta que era violência.” Por isso a fundação Purple Purse recomenda que, após a ajuda psicológica, a educação financeira seja o primeiro passo para se livrar de uma relação abusiva e da violência patrimonial.

Mas não é um processo simples. Leila diz que não há um modelo estanque a ser seguido por todas as mulheres, até porque a violência patrimonial ocorre com mulheres de todas as classes, mas há alguns passos que por onde se pode começar. Primeiro a pessoa precisa procurar orientações sobre como reorganizar as finanças, fazer um mapeamento da própria condição e um levantamento dos danos. Se houver muitas dívidas, Leila sugere que se procure a Central de Mediação de superendividamentos, na Justiça Estadual. Depois disso, é possível tomar medidas mais simples. “É importante que a pessoa entenda que o dinheiro é limitado. Não dá pra fazer tudo. Então, tem que direcionar para aquilo que faz sentido. Por exemplo, não tem porque pagar tarifa bancária quando há bancos digitais com contas gratuitas”, explica Leila. Então, a primeira recomendação é procurar um banco que não cobre tarifas para a manutenção da conta. Além disso, seguindo uma recomendação da Purple Purse, é importante que essa conta seja individual, para que nenhuma outra pessoa tenha acesso. A seguir, é recomendado que faça um pente fino nas contas fixas. “Liga para as operadores, tenta reduzir as contas de internet, TV, celular, vê o que é preciso manter e o que não é. O segredo é identificar as áreas em que não faz sentido gastar”, explica Leila. Por fim, conforme as finanças forem se reorganizando, é importante guardar dinheiro para uma reserva de emergência. “O ideal é que se tenha, pelo menos, o suficiente para viver por três meses”.

Fonte: Leila Ghiorzi, educadora financeira / Purple Purse Foundation

A educação financeira não é, obviamente, a solução para todos os problemas. Especialmente em um país como o Brasil, em que muitas mulheres, além da violência, são acossadas pela desigualdade e pelo racismo, que também são formas de violência. Especialmente em um país em que o machismo ainda está entranhado nas relações sociais. Mas a ideia de entender a educação e a inclusão financeiras como ponto de partida para a transformação pode ser potente.

E Maria é um exemplo disso. “Eu posso estar mais apertada financeiramente por ter assumido mais despesas, mas estou muito mais feliz e tranquila. E as minhas filhas também. Consegui reduzir o que era supérfluo sem prejudicá-las.” Passados dois anos da separação, o apartamento dos sonhos é alvo de uma disputa extrajudicial e a pensão alimentícia das filhas ainda não foi acertada. “Todo mês, eu preciso negociar os valores a serem pagos. Percebo que é uma forma de tentar manter o antigo controle e poder, mas isso não me afeta mais. Espero conseguir passar o imóvel para o nome das minhas filhas. Ele já comprou outro apartamento, então lugar para morar não é um problema para ele.”

Ela também conseguiu se recuperar emocionalmente. Pouco depois da separação, começou um novo relacionamento. Um namoro em que o dinheiro não é o mais importante e em que as demonstrações de afeto e cuidado para ela e as filhas fazem parte do dia a dia. Olhando para trás, a sensação é de alívio. “A gente não sabe como pode terminar uma relação tão doentia, com uma pessoa que acha que pode comprar tudo, que considera o dinheiro mais importante do que o afeto.”

* Os nomes e profissão foram trocados a pedido das entrevistadas.

Foto de capa: Montagem / Geórgia Santos

Geórgia Santos

Sobre o BBB17 e a normalização da brutalidade

Geórgia Santos
10 de abril de 2017

Vamos lá, podem me chamar de esquerdopatafeminazi ou de alguma outra atrocidade delirante, mas dedo na cara não é a norma e hematoma não é marca de amor. O que aconteceu no BBB17 é a normalização da brutalidade.

Nesta semana, um dos assuntos mais comentados no país foi a agressão protagonizada por Marcos Harter durante o Big Brother Brasil. Na cena assistida por milhões de pessoas, o médico é flagrado agredindo sua namorada, Emily, verbal e fisicamente. Visivemelmente agressivo e descontrolado, ele aponta o dedo para o rosto da companheira de casa, aperta o braço e belisca a jovem de maneira bruta. Eu não acompanho o programa mas, segundo informações de quem o faz, existia um padrão de constrangimento que vinha se perpetuando entre o casal.

Por bem, após analisar as imagens e, segundo Tiago Leifert, “ouvir especialistas”, a Globo decidiu expulsar Marcos do programa. A polícia foi até a casa do BBB e tomou depoimento de todos os envolvidos no caso. Ficou comprovada a agressão.

Agora veja bem, não sou eu, não é uma esquerdopatafeminazi, não é uma louca mentirosa que está dizendo. A polícia confirmou a agressão.

     Dito isso, acho que algumas coisas precisam ser discutidas:

  1. O que é agressão?

Segundo relatos da imprensa, Emily ficou bastante impactada com a decisão e tentou justificar a ação de Marcos, afirmando que ele “estava muito nervoso”. Após a saída, ela repetiu que sabia que ele jamais tinha a intenção de machucá-la. Na mesma linha, inúmeros telespectadores ficaram consternados com a saída do “brother”, afirmando que não houve agressão e que aquilo não passava de uma discussão normal de marido e mulher e que as pessoas (leia-se feministas) estavam exagerando e que ela também era culpada.

Não, amigos e amigas. Não é normal.

Isso apenas mostra o tamanho da nossa ignorância com relação ao que é aceitável em um relacionamento, seja amoroso ou não. Não precisa de tapa na cara ou um chute para se configurar agressão, que pode ser física (e aqui se inclui a sexual) ou psicológica.

Nesse caso, houve violência física, comprovada pelos hematomas deixados no braço da vítima após ela ser apertada e beliscada; e violência psicológica, que inclui constrangimento, humilhação e manipulação, insultos, entre outras coisas. Todas observadas na imagem quando ela foi praticamente “embretada” em um canto como se fosse um animal assustado.

Então, não, não é uma briga normal de casal. E se tu vês isso com naturalidade, eu sugiro que procure ajuda, sendo homem ou mulher.

  1. Qual o limite?

Nós já definimos agressão, mesmo que superficialmente, então talvez essa pergunta pareça relativamente mais fácil de responder. Mas não é. O limite dentro de um relacionamento abusivo pode ser uma linha bastante borrada e difícil de identificar. Quando Emily tentou defender o agressor, uma das colegas de casa replicou “Talvez tu gostasse tanto dele que tu não estivesse enxergando”, disse a advogada Vivian sobre o nível da agressão. Ou seja, o limite não estava claro.

Aparentemente, nem para a TV Globo, que não considerou as imagens perturbadoras o suficiente para caracterizar como agressão. Precisou esperar a polícia.

O lance é que nós vivemos em uma sociedade machista – e o fato de tantas pessoas acharem aquela briga normal prova isso – e o discurso vigente torna essa tarefa mais difícil. Mas É possível identificar alguns sinais e entender o limite que não deve ser cruzado.

O movimento Mexeu com uma, mexeu com todas produziu um material bastante elucidativo e que pode ajudar muita gente.

É fácil encontrar justificativas para a agressividade em uma sociedade em que a brutalidade é normalizada, mas elas são todas vãs. Então, não permita que nenhuma dessas coisas aconteça a você ou a alguém que você conheça.