Reportagens Especiais

Haveria um outro destino para Ângela Diniz?

Geórgia Santos
15 de outubro de 2023
alerta de gatilho – violência doméstica

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Imagem: colagem de imagens de Ângela Diniz e Doca Street e produzidas a partir de reprodução da Revista Manchete e de imagens do processo de Rosana*

A socialite Ângela Diniz foi assassinada em 30 de dezembro de 1976, dentro da própria casa, em Búzios, no Rio de Janeiro. Foram três tiros no rosto e um na nuca. Quem puxou o  gatilho foi o namorado, Raul Fernando Street, o Doca, uma figura frágil. No laudo do perito, recuperado pela produção do podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, lemos que quando as balas a encontraram ela usava “biquini azul tendo, na região frontal, o desenho de uma cabeça de pantera de cor preta.” Uma perversidade do destino com quem era chamada de “a Pantera de Minas”, apelido dado pelo colunista e amigo Ibrahim Sued, com quem Ângela tivera um relacionamento. O texto segue: “Junto ao ombro direito da vítima, encontrava-se uma pistola automática, oxidada, da marca Beretta, calibre 7,65 mm, com o carregador vazio.” 

Carlos Heitor Cony, na edição 1291 da Revista Manchete, de janeiro de 1977, escreve abre a reportagem sobre a morte de Ângela  de maneira crua: 

“Tinha gente que ia à missa na Igreja de Lourdes, em Belo Horizonte, só para ver o meu vestido novo. Todos os domingos, minha mãe me dava uma roupa nova. Aos 12 anos eu já era sucesso.” Vinte anos depois, essa menina que deslumbrava Belo Horizonte (e mais tarde escandalizou a cidade) estava deitada numa mesa de mármore, fria e imunda, no pequeno necrotério de Cabo Frio. Quase nua, apenas a tanga e a blusa, o rosto mutilado, os dentes trincados, como se mordessem o último pedaço de vida a que tinha direito. Muita coisa aconteceu na vida de Ângela Diniz: um casamento falido, três filhos, um crime de morte em seu próprio quarto, à beira da sua cama. Problemas de tóxico e de amor, ela queria muito e ao mesmo tempo, até que de repente tudo acabou. Frase de uma senhora mineira, durante o seu sepultamento: “Finalmente, ela descansou.”

Poucas pessoas comparecem ao sepultamento de Ângela Diniz – Reprodução, Revista Manchete.

O assassinato de Ângela Diniz provocou uma comoção no país, mas não pelos motivos que se espera, não pelo feminicídio – palavra que sequer existia no vocabulário dos brasileiros. De início, a surpresa de um crime tão bárbaro acometer a alta sociedade mesclava-se à incredulidade com o fato de tragédias acometerem aos ricos e famosos e belos. Mas em seguida Ângela revelou-se a vítima imperfeita e os motivos da atenção foram não tão lentamente sendo moldados sob a ótica de uma sociedade cruel e moralista. Ela costumava dizer: sou rica, bonita e boa de briga. E era tudo isso. E as pessoas detestavam isso. 

Na página dez da mesma Manchete, há uma frase de Ângela que dá uma ideia da mulher nada recatada: “Só tenho uma vida e quem decide sobre ela sou eu.” Mas a sentença do texto seguia cruel: “Suportar ou não suportar essas consequências [da vida] eis questão.” A frase era boa, explicava tudo. Ela continuou fazendo das suas, suportou as consequências tão bem que acabou varada de balas.” Duas semanas depois, na edição 1293, o mesmo semanário traria uma entrevista com Doca Street, então foragido, conduzida pelo jornalista Salomão Schvartzman. 

Doca se apresenta como uma figura atormentada, que sofre de saudade, que sofre pelo “amor alucinado” que dedicou a Ângela. Dizia que queria morrer, mas seguiu vivo até 2020, quando faleceu aos 86 anos. Ali, naquela entrevista, antes mesmo de se entregar à polícia, ele admite que a arma era dele, que estava louco de ciúmes, que a relação era conturbada. Ele admite que atirou, só alega não lembrar quantas vezes. Ainda assim, ele não parecia assumir a responsabilidade pelo crime. A primeira coisa que ele diz é que ela nunca se sustentou, se defendendo da alegação de que ele não ganhava dinheiro algum e, até aquele momento, dependia da fortuna da ex-mulher, Adelita Scarpa. E segue:

“Foi uma paixão violenta, possessiva, uma paixão total somada a um ciúme doentio. Amei como jamais amei outra mulher. Quis dar a Angela uma outra imagem, queria que ela vivesse outra vida, que tornasse a ter os filhos perto dela, como verdadeira mãe. Ela me prometeu que mudaria seu comportamento.” Ou seja, a culpa foi dela. 

A entrevista toda é entrecortada por frases que apontam para uma suposta inevitabilidade da violência. “Consegui modificar Ângela em muitas coisas, mas o que a estragava era a vodka”; “Disseram que eu não deixava Angela sair de casa. É verdade. Mas fazia isso por causa da compulsão que ela tinha em provocar os homens à sua volta”; “Não sei o que acontecia no seu íntimo, que lhe dava um prazer especial em me espicaçar, em me torturar, ferindo a minha sensibilidade”. Como disse antes, um homem frágil. Ele não pôde evitar.

De acordo com o que apurou a produção do podcast Praia dos Ossos, o delegado Newton Watzl, de Cabo Frio, leu a entrevista. E gostou. “É como se o Doca fosse um Dom Quixote moderno dentro do nosso mundo materialista.” Era ele quem cuidava do caso. 

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LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA

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A estratégia traçada pelos advogados de Doca Street deu certo e não demoraria para a narrativa do crime passional ser dominante. O homem ponderado, cidadão de bem, apaixonara-se por uma mulher intensa e, em um momento de destempero, perdera a cabeça. Ele não era realmente assim. E conforme o tempo foi passando, boatos e conjecturas se misturaram à realidade e, até o momento do julgamento, em 1979, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ou, parafraseando o delegado, um Dom Quixote moderno. Ele estampava camisetas, nome de pratos em restaurante. Também em um trecho do podcast, sabemos que havia até um coquetel batizado em sua homenagem, que era servido com quatro balinhas no copo. Henfil foi quem melhor traduziu o que se passou naqueles três anos. “Tão quase conseguindo provar! Ângela matou Doca”, escreveu nO Pasquim.  

Assim, ignorando uma relação turbulenta, apenas de curta; ignorando que ele era agressivo com as pessoas à sua volta; ignorando que andava armado; ignorando que ele batia, ameaçava e agredia Ângela, o advogado Evandro Lins e Silva levou ao júri a tese da”legítima defesa da honra”. E voltou. Raul Fernando Street foi condenado a dois anos de prisão e, como réu primário, cumpriu a pena em liberdade. A sentença provocou uma reação sem precedentes e movimentos feministas lutaram para que ele fosse novamente julgado. E conseguiram. Na segunda vez, ele  foi considerado culpado e recebeu pena de 15 anos. Cumpriu um terço. 

A história da Pantera de Minas é contada no filme “Angela”, de Hugo Prata, que estreou nos cinemas em setembro deste ano. Um mês depois de a tese da “legítima defessa da honra” ser derrubada, por unanimidade, no Supremo Tribunal Federal (STF), 47 anos depois do assassinato que seria uma divisor de águas na justiça brasileira. 

Pela tese aceita até então, um réu agressor poderia alegar que sua honra havia sido ferida a partir do comportamento da vítima e, por isso, o crime havia sido cometido. De maneira prática, se uma mulher cometesse adultério, por exemplo, era como se o homem tivesse direito de se defender. E isso foi usado ao longo de décadas para, no limite, inclusive inocentar assassinos – como quase aconteceu com Doca. E não que seja um crime incomum por aqui.

No Brasil, o feminicídio foi incorporado ao Código Penal como uma qualificadora do crime de homicídio em 2015. Assim, a definição dada pela Lei Nº 13.104/2015 considera o feminicídio um tipo específico de homicídio doloso, cuja motivação está relacionada ao contexto de violência doméstica ou ao desprezo pelas mulheres, pelo sexo feminino. Um levantamento do Monitor da Violência, parceria do site G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) mostra que houve um aumento de 5% nos casos de feminicídio em 2022 em comparação com 2021. Segundo o que mostram os dados oficiais dos 26 Estados e do Distrito Federal, mais de 1,4 mil mulheres foram assassinadas pelo fato de serem mulheres. É uma morte a cada seis horas. O número é o maior registrado no país desde que a legislação foi atualizada. Se forem consideradas as mortes de mulheres  também sem a qualificadora, o número cresceu 3% entre 2021 e 2022 e chega a 3.930 assassinatos. Segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 50.056 assassinatos de mulheres entre 2009 e 2019. 

A pesquisa “Visível e Invisível”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber, ainda mostra que mais de 18 milhões de mulheres sofreram alguma forma de violência em 2022. Estima-se que 33,4% das mulheres brasileiras com 16 anos ou mais experimentaram alguma forma de violência por parte do parceiro ou ex. O resultado é superior à média mundial, estimada em 27% segundo o Global Prevalence Estimates of Intimate Partner Violence, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Mas há um detalhe sobre a suposta legítima defesa da honra: ela não aparece no Código Penal. O texto estabelece, sim, que “a legítima defesa pode ser empregada para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Ou seja, defesa da própria vida, não da honra. 

A ação contra o argumento foi apresentada ao STF pelo PDT  em janeiro de 2021. No mesmo ano, o relator, ministro Dias Toffoli, suspendeu o uso da tese da legítima defesa da honra em julgamentos por meio de liminar. A decisão foi referendada por todos os ministros até que, em 29 de junho, Toffoli proferiu o voto, dizendo se tratar de um recurso argumentativo cruel. “A legítima defesa da honra é um estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida, e totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do feminicídio no Brasil”, disse. 

Todos acompanharam o voto do relator. A ministra Cármen Lúcia foi didática: “A vitimização do réu nestes casos se faz indo em busca de informações sobre a mulher, ‘o que ela teria feito para merecer isso’. Portanto, sendo merecedora do assassinato, no caso do feminicídio, o homem não teria feito nada demais. E isto não é algo que esteja afastado da realidade brasileira de 2023. Uma mulher é violentada a cada quatro minutos no Brasil em 2023”. Durante o voto, a ministra relembrou o caso de Ângela Diniz. 

Eu sempre me perguntei e agora, diante disso, volto a me questionar como seria se houvesse um outro destino para Angela Diniz. Será que as mulheres imperfeitas seriam absolvidas? Como seria se ela, sim, tivesse agido em legítima defesa? Como seria se ela tivesse reagido às agressões, tomado a arma das mãos de Doca e atirado contra ele até que ele tombasse? Não precisei ir muito longe para descobrir que esse mesmo benefício raramente é concedido quando a história se inverte e a vítima se levanta. “A mulher, quando senta no banco dos réus, existe uma violência estatal muito forte contra ela”, diz o defensor público Andrey Régis de Melo. 

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ROSANA E ROBERTO

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Na primeira página do processo, leio: homicídio simples. Eu sei que se trata da tipificação, mas não pude deixar de pensar que não é nada simples. Assim como Ângela e Doca, Rosana e Roberto namoravam há poucos meses. E assim como o de Ângela e Doca, era um relacionamento violento. Mas diferente do que houve com Ângela e Doca, Rosana matou Roberto, não o contrário. Na noite de 06 de janeiro de 2005, Rosana deu uma facada no namorado que a segurava pelo pescoço. No auto de necropsia, lemos que Roberto apresentava uma “lesão perfuro-cortante na região peitoral esquerda com 27mm de extensão.” A facada perfurou o coração. Bastou um golpe. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

O nome dela não é Rosana mesmo, ela pediu para não ser identificada quando eu entrei em contato para que contasse sua história. De início, ela topou. Mas dois dias depois, enviou um áudio explicando que não conseguiria. “Eu comecei a me lembrar de tudo que eu passei, de todo aquele sofrimento. Foram vários anos de muito sofrimento e muita angústia. Eu não quero nem lembrar, foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas e eu não quero nem lembrar”, me disse. Acontece que Rosana foi denunciada e pronunciada por homicídio simples e, por 18 anos, o seu destino esteve nas mãos de quem não levou em conta as marcas de esganadura que ela trazia no pescoço e, muito menos, a palavra dela. 

Em respeito à Rosana, eu não insisti com as perguntas sobre como tudo aconteceu e decidi recorrer aos autos. No depoimento que prestou à polícia no dia seguinte aos fatos, Rosana conta que ela e Roberto Keppler começaram a namorar em novembro de 2004. Em dezembro, o namorado a convidou para morar com ele e, assim, começa a história de violência:  

“Que ficou uma semana morando junto com a vítima. Que a vítima sempre queria lhe agredir, só não fazendo porque “eu corri e foi (sic) posar na casa dos vizinhos”; que posou na casa da mãe da I.M.; que a vítima sempre “me ameaçava de agressão”.” 

Note que, neste depoimento, a vítima é o Roberto.

“Que ontem, 06.01.05, por volta de 19h3 ou 20h, Roberto chegou com um litro de cachaça, já com sinais de embriaguez e disse: Rosi, hoje eu vou quebrá (sic) a tua cara, hoje eu vou te matá (sic)” Que pediu para o Roberto parar, pois estavam na casa da amiga e não queria fazer fiasco; que Roberto convidou a depoente dizendo “tu qué apanhá (sic) lá em casa?”; que concordou em descer junto com Roberto até a casa dele, porém pediu para tomar um banho. Que foi tomar banho e neste momento a I.M. veio lhe dizer para não descer junto com ele porque ele ia lhe bater. Que se escondeu no quarto, porém antes pegou uma faca tamanho grande, cabo de madeira, na cozinha da I.M. e foi para o quarto; que deixou a faca sobre o balcão e se escondeu atrás da porta; que I.M. foi dizer para o Roberto que a depoente tinha fugido; que Roberto disse “eu vou achar a R. nem que seja no inferno” e entrou para dentro do quarto, fechou a porta e começou a chamar a depoente de “vagabunda, vadia, vou quebrar a tua cara”; que pediu para sentar e conversar, mas Roberto disse “não tem conversa contigo, eu vou quebrar a tua cara, vou bater onde mais dói, vou te quebrar tudo”; que Roberto falava em tom baixinho, não elevou a voz nenhuma vez; que implorou para ele parar dizendo “tu qué (sic) que eu me ajoelhe aqui, vamo para (sic) com isso, pelo amor de Deus”; que neste momento Roberto lhe deu um tapa na “cara” e a depoente continuou pedindo para ele parar, porém Roberto lhe pegou pelo pescoço e disse “agora vou te matar” e começou a apertar; diz a depoente que estava sufocada, que não conseguia mais respirar e falar, neste momento lembrou da faca, “levei a mão pra trás, peguei a faca e finquei, eu tava desatinada, eu não sei onde atingi”; “quando eu grudei a faca ele me largou e eu saí apavorada”. 

Segundo testemunhas, Roberto saiu do quarto cambaleando e dizendo: “Ela me arrebentou o coração.” e tombou no chão da cozinha. 

Colagem a partir de imagens dos autos do processo.

Rosana pediu abrigo na primeira casa que encontrou e ficou lá até a manhã do dia seguinte, quando voltou para a casa da amiga e só então soube que o namorado estava morto. “Eu não acreditava que tinha matado ele.” Ela foi encaminhada para exame de lesão corporal em que se atestou que ela havia sofrido violência: “Apresenta contusão na face lateral esquerda da região cervical.” Mesmo assim, o delegado pediu a prisão preventiva. O juiz indeferiu, mas deu seguimento ao processo. Ela seria julgada por homicídio. 

Segundo o defensor público Andrey Régis de Melo, responsável pela defesa de Rosana no tribunal do júri, a versão dela foi desconsiderada ao longo do processo. “Não é levada em conta pelo delegado de polícia, que acaba iniciando ela; não é levada em conta pelo promotor da época, que acaba denunciando ela; não é levada em conta pelo juiz, que pronuncia. E no julgamento, a promotora também não reconhece a legítima defesa”, conta. 

Um tempo depois, a prisão preventiva foi decretada novamente, mas Rosana havia se mudado e não havia notícias do seu paradeiro. Ela foi considerada foragida até que foi presa em 2016. “Ela foi registrar uma ocorrência policial, inclusive, e aí ficou sabendo que existia essa prisão preventiva referente a esse processo”, explica o defensor.  

Rosana só seria julgada em agosto de 2023. A acusação passou de homicídio simples para lesão corporal seguida de morte, com pena de quatro a 12 anos de reclusão. O defensor Andrey Régis de Melo explica que o caso é muito emblemático sobre como as vítimas que reagem à agressão são tratadas no sistema. “Foi desconsiderado que ela era uma vítima de violência doméstica. Ela já havia sido agredida por ele, inclusive havia informações dando conta de que uma vez ela praticamente se jogou na frente de uma viatura da Brigada Militar pedindo socorro. Ele fugiu na oportunidade e depois confidenciou para uma policial militar que estava armado. Então, era uma relação de poucos meses, mas já tinha os indicativos muito fortes de que ela era vítima de violência doméstica.”

Desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, o debate em torno da violência de gênero vêm se fortalecendo, assim como a construção de uma rede de proteção às mulheres. Mas a violência estatal em julgamentos como esse perdura. “Quando a mulher senta no banco dos réus, ela é muito violentada”, aponta o defensor. E a violência de gênero, segundo ele, pode ser notada em diversos âmbitos, não apenas em casos em que isso é julgado especificamente. Por exemplo, em casos que envolvem organizações criminosas. “Nós temos o maior encarceramento feminino da nossa história e não é feito um debate, por exemplo, sobre o quanto elas são violentadas dentro de facções. A gente não vai deparar com homens cedendo o próprio corpo para transportar drogas, mas as mulheres fazem isso porque muitas vezes elas estão sofrendo violência psicológica, violência física e isso é totalmente desconsiderado.” O defensor Andrey Melo disse que já chegou a ouvir de um desembargador que uma mulher coagida poderia ir à polícia e registrar um boletim de ocorrência. “Por que ela não vai numa delegacia? Porque no outro dia tá morta.”

Rosana foi absolvida, afinal. Graças ao trabalho da Defensoria Pública, antes representada pela defensora Kedi Leticia Bagetti. Mas não significa que ela não tenha, de certa forma, cumprido uma pena. É o que se chama de pena processual, que é o tempo que as pessoas ficam sentadas no banco dos réus.  E a “pena processual” de Rosana foi longa. “Graças a Deus foi feita a justiça. Eu fui absolvida e eu quero deixar lá no passado. Eu não quero nem lembrar porque foram momentos muito difíceis que eu vivi, foram coisas muito dolorosas. Passa todo aquele filme novamente na minha cabeça e foi muito sofrimento para mim. Graças a Deus isso acabou”, desabafa Rosana. 

No interrogatório do julgamento, ela estava muito emocionada. Chorou bastante. Sabia que a vida dela, dos dois filhos e do marido dependia do desfecho daquela história.  “Porque é um trauma para vida dela. A facada que ela dá no então namorado, companheiro dela, é um ato de socorro, é o que restou. Ela está sendo esganada dentro de um quarto, inclusive por um agressor que xingava ela, zombava dela. Então não dá para entender. Sinceramente, não dá para entender porque que ela foi denunciada e submetida a julgamento”, questiona o defensor. 

A proibição pelo STF do uso da tese da legítima defesa da honra é um avanço, mas existe muita coisa ainda para mudar no sistema judicial brasileiro. O caso da Rosana é um exemplo de como ainda não se compreende a complexidade das relações a que as mulheres são submetidas. Porque até então, para se defender homens agressores, usava-se um recurso que sequer consta no Código Penal enquanto as mulheres que se defendem mal conseguem se defender com o que está, de fato, escrito na legislação.

Ou seja, a mulher acaba sendo submetida a diversas violências durante processo como esse. 

“Teve um momento no julgamento que a acusação diz o seguinte: olha, não há uma prova da versão dela. Aí eu até interrompi a promotora e disse : olha, Doutora, com todo respeito do mundo, mas quando a senhora diz que não há uma prova em relação à versão dela, inclusive desconsiderando o laudo médico, a senhora simplesmente tá dizendo que essa mulher aqui, que apresentou todo esse sofrimento hoje aqui, é uma mentirosa. É só uma forma elegante de dizer que essa mulher está aqui mentindo. Porque em um crime que só tem ela e o companheiro agressor, e ele morre e ela traz uma versão, é óbvio que só vai existir essa versão dela”, me conta o defensor. 

O caso da Rosana mostra que a misoginia do sistema não permitiria outro destino para Ângela Diniz. Ela não seria tratada com a benevolência do agressor. Mas o defensor Andrey Melo faz ainda outra pergunta: “Se fosse um homem que tivesse uma marca de esganadura no pescoço e que tivesse dado um único golpe de faca e que existisse pessoas dizendo que ele já havia sido agredido pela mesma pessoa. Será que esse homem seria submetido ao Tribunal do Júri?”

Reportagens Especiais

Epidemia de violência . 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade de 2020

Geórgia Santos
15 de outubro de 2020

Atualização em 19 de outubro de 2020 após a publicação do Anúario da Segurança Pública

“Mama olhou em volta. Manteve os olhos fixos no relógio da parede durante algum tempo, o que estava com um dos ponteiros quebrados, e então se dirigiu a mim: – Sabe aquela mesinha onde guardamos a Bíblia da nossa casa, nne? Seu pai quebrou-a na minha barriga – disse, como se estivesse falando de outra pessoa, como se a mesa não fosse feita de madeira pesada. – Meu sangue escorreu todo por aquele chão antes mesmo de ele me levar ao St. Agnes.” Esta Mama é uma personagem do livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adiche. Ela é vítima constante dos abusos psicológicos e físicos do marido Eugene, chamado pela narradora, Kambili, de Papa. Kambili também sofre com os abusos e rompantes violentos do pai. As duas foram transcritas da imaginação de Chimamanda para o papel e são apresentadas ao mundo em uma obra de ficção, mas elas não existem apenas nas trezentas e poucas páginas de papel de um livro. No Brasil e no mundo, milhares de mulheres sofrem com a violência doméstica todos os dias. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima  que 35% das mulheres já passaram por uma situação de violência em algum ponto da vida. Nós conhecemos muitas Mamas. Nós conhecemos muitas Kambilis. Você também conhece.

Na circunstância da pandemia do novo coronavírus e submetida a um isolamento com o marido violento e os dois filhos, a nossa Mama* viu a violência se acumular nas pupilas do companheiro conforme também aumentava a frustração com o insuportável “novo normal”. O abuso psicológico e a violência patrimonial antes latentes estavam escalando e ela ficou com medo de sofrer violência física. Então, ela fez o mais difícil.  Em cinco de agosto deste ano, a nossa Mama pediu ajuda a uma amiga, que encaminhou um pedido a um grupo de apoio:

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“Bom dia, gurias. Alguém sabe se existe algum lugar de acolhimento ou casa de passagem pra vítima de abuso, por enquanto psicológico, mas muito muito próximo de se tornar violência física? Seria pra ela e dois filhos, um de sete anos e outro de dois.”

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O pedido de ajuda é a parte mais difícil porque, geralmente, as mulheres que se encontram em uma situação de abuso pelo companheiro são constantemente ameaçadas, constrangidas e chantageadas. Especialmente as que sofrem de violência patrimonial, que, segundo texto da Lei Maria da Penha, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”  Ou seja, que é quando o parceiro controla o dinheiro da casa.

Era o caso da Mama criada por Chimamanda, que perguntava para a cunhada: “Para onde eu vou se sair da casa de Eugene? Diga, para onde eu vou?”. E era o caso da nossa Mama:

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“Ela não tem família ou amigos próximos, está desempregada, disse que ia tentar fazer bolos para vender na rua, mas o marido proibiu de fazer na casa e disse que não ia ficar com as crianças também.”
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E não tardou para chegar outra mensagem:

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“O cara surtou, quebrou as coisas todas das crianças e disse que ia matar ela e o mais velho.”
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Ela conseguiu o abrigo antes que o pior acontecesse e a promessa do homem violento não se concretizou. Outras Mamas, porém, não foram libertadas a tempo. Os números apresentados no Anúario Brasileiro de Segurança Pública mostram que, no primeiro semestre de 2020, cuja maior parte se deu no contexto da pandemia, houve um aumento da violência letal contra as mulheres. O documento produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade deste ano, um aumento de 1,9% com relação ao mesmo período de 2019. Nota-se, ainda, um crescimento no número de chamadas para o 190. Houve um aumento de 3,8% nos acionamentos da PM em casos de violência doméstica. Ao todo, foram 147.379 pedidos de ajuda registrados em todo o país.

 

Segundo dados da ONU Mulheres, que é a entidade das Nações Unidas dedicada a promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino, uma em cada três mulheres sofre com violência física ou sexual no mundo, na maioria das vezes pelas mãos do companheiro ou algum familiar. Pesquisas locais indicam que, em alguns países, esse índice pode ser ainda maior e chegar a 70% das mulheres. No último ano, 243 milhões de meninas e mulheres entre as idades de 15 e 49 foram vítimas de algum tipo de abuso por parte de alguém do círculo íntimo de amigos ou familiares. Desde o início da pandemia de Covid-19, porém, dados emergentes e relatos de quem lida com essas mulheres cotidianamente dão conta de que o problema da violência contra a mulher aumentou. Principalmente a violência doméstica. A organização chama de Shadow Pandemic, que em tradução livre significa a Pandemia à Sombra. Nós chamamos de Epidemia de Violência.

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“Entrei na banheira e fiquei parada, olhando para ele. Não parece que Papa ia pegar um galho, e senti o medo, ardente e inflamado, encher minha bexiga e meus ouvidos. Não sabia  o que ele ia fazer comigo. Era mais fácil quando eu via o galho, porque podia esfregar as palmas das mãos e retesar os músculos das panturrilhas para me preparar. Mas Papa jamais me pedira para ficar de pé dentro da banheira. Então percebi a chaleira no chão, ao lado dos pés de Papa, a chaleira verde que Sisi usava para ferver água para o chá e para o garri, aquela que apitava quando a água começava a ferver. Papa apanhou-a.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Kambili de Chimamanda conhecia os hábitos do pai. Ela já havia apanhado incontáveis vezes de maneiras pouco sofisticadas mas extremamente dolorosas. A tortura com água quente foi uma novidade. Novidade também foi a agressão a que foi submetida a nossa Kambili*. Ela vive com a mãe e o padrasto que, antes do início da pandemia, parecia o homem perfeito para uma mulher que saíra de um casamento abusivo, em que era submetida a agressões verbais e violência patrimonial. Ninguém imaginou que ele seria uma pessoa violenta.

O aumento nos casos de violência contra a mulher pode ser explicado a partir do que a ONU chama de fatores exacerbantes, ou seja, situações estressantes e limítrofes que podem piorar o comportamento de quem já é agressivo. No caso da violência doméstica, antes de tudo aparecem as preocupações com dinheiro, segurança e saúde. Depois, são listados problemas como condições precárias de moradia, que fazem com que as pessoas precisem ficar juntas em espaços apertados em situações de isolamento social e o fato de se isolar com o abusador. Além da restrição de movimentos. Foi o caso do padrasto da nossa Kambili, um homem frustrado profissionalmente que, quando se percebeu isolado em casa e sem perspectiva, recorreu ao álcool e libertou uma persona agressiva. O homem compreensivo e acolhedor agora agredia Kambili verbal e fisicamente. Assustada, ela se trancou no quarto e chorou até adormecer. A mãe da nossa Kambili fez o mesmo e só foi despertada com os socos que sacudiam a porta do quarto.

Pesquisa realizada pelo C6Bank e Datafolha mostra que, no Brasil, nos últimos cinco anos, pelo menos 24% das mulheres já foram agredidas verbalmente pelo companheiro ou por alguém que more na mesma casa e pelo menos 10% já foram agredidas fisicamente. O estudo investigou a ocorrência de 14 tipos de violências entre a população brasileira. A preocupação com dinheiro como um fator de risco para o aumento no número de casos de violência doméstica encontra guarida no mesmo estudo, que mostra um crescimento importante de situações de violência patrimonial desde o início da pandemia do novo coronavírus, especialmente durante o período em que o isolamento social foi levado mais a sério. A pesquisa mostra que, entre março e julho de 2020, houve aumento relativo especialmente nas incidências relacionadas a participação no orçamento financeiro familiar, na decisão de compra, negação e apropriação de recursos e uso do nome sem consentimento. “Ou seja, as restrições orçamentárias e dificuldades financeiras têm aumentado os pontos de conflito doméstico de várias formas”, indica o texto do estudo.

A pesquisa foi conduzida a partir de 1503 entrevistas e acessa tanto as ocorrências de violência patrimonial nos últimos cinco anos quanto as sofridas pela primeira vez durante a pandemia. E os dados mostram de houve um aumento de 37% nos casos em que alguém da família negou recursos financeiros para compras que atendessem necessidades pessoais. Além disso, o estudo mostra um aumento de 47% nos casos de entrevistados que foram impedidos de participar das decisões de compra de produtos e serviços para casa e família. Ainda houve um crescimento de 26% no número de ocorrências em que alguém da família tenha se apoderado do dinheiro que a pessoa ganha ou ganhou por considerar que ela não tem a capacidade para administrar esses recursos.

Observa-se, ainda, alta sobreposição entre agressões verbais e todas as outras formas de violência avaliadas, especialmente restrições na participação do orçamento e das decisões de consumo da familiar e acesso aos recursos financeiros. Todas essas situações, segundo o estudo, tendem a ser agravadas pela crise econômica e, simultaneamente, tornam-se fatores exacerbastes para a escalada da violência doméstica e outros problemas de âmbito familiar.

Especificamente no período da pandemia de coronavírus, o monitoramento Um Vírus e Duas Guerras, realizado por sete veículos de jornalismo independente, identificou que 497 mulheres foram assassinadas entre março e agosto de 2020. Foi um feminicídio a cada nove horas- ou três mortes por dia. São Paulo, Minas Gerais e Bahia foram os estados que registraram o maior número absoluto de casos, com 79 mortes em SP, 64 em MG e 49 na BA. O índice médio de mortes no país foi de 0,21 por 100 mil mulheres. O que faz com que 13 estados estejam acima da média nacional de feminicídios: Mato Grosso (1,03), Alagoas (0,75), Roraima (0,74), Mato Grosso do Sul (0,65), Piauí (0,64), Pará (0,62), Maranhão (0,47), Acre (0,44), Minas Gerais (0,43), Bahia (0,39), Santa Catarina (0,38), Distrito Federal (0,37) e Rio Grande do Sul (0,34).

De maneira geral, houve uma redução de 6% no número de casos em comparação com o mesmo período do ano passado, mas a queda não é necessariamente um indicativo real de diminuição da violência.  Primeiro porque, em se tratando deste estudo em específico, sete estados não enviaram os dados solicitados ao coletivo (Amazonas, Amapá, Ceará, Goiás, Paraíba, Paraná e Sergipe). Tanto que nos dados do Anuário, o registro é de aumento entre janeiro e julho. Segundo porque existe uma enorme subnotificação.

O Anúario da Segurança pública indica que, apesar do aumento de feminicídios, houve uma redução nos registros de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável, assim como caíram os registros de agressões em decorrência da violência doméstica nas delegacias de polícia – uma queda de 9,9% com relação ao ano passado.

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“- Eugene vai vir nos apanhar. – Escute… Tia Ifeoma falou num tom mais suave; ela deve ter percebido que um tom firma não penetraria no sorriso fixo no rosto de Mama. O olhar de Mama continuava vidrado, mas ela parecia ser outra mulher, não a mesma que saltara do táxi de manhã. Parecia estar possuída por outro demônio. – Fique pelo menos alguns dias, nwunye m, não volte tão cedo. Mama balançou a cabeça. Não havia nenhuma expressão em seu rosto, a não ser um sorriso duro. – Eugene não anda bem – disse ela – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Mama de Chimamanda não denunciou o marido. A nossa Mama também não. A nossa Kambili também não. De acordo com a promotora Carla Souto, do MP-RS, dois grandes pontos fazem com que a vítima não denuncie: medo e a vergonha. E agora, o isolamento.

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SUBNOTIFICAÇÃO

O Anúario Brasileira da Segurança Pública indica que, como a maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico exige a presença da vítima para a instauração de um inquérito, as denúncias começaram a cair na quarentena em função das medidas de distanciamento social e de isolamento, cuja consequência é uma maior permanência em casa. A presença constante do agressor nos lares agrava a situação porque constrange a mulher a pedir ajuda, a fazer um telefone e, principalmente,  de procurar as autoridades competentes para comunicar a violência sofrida.

Isso significa que a diminuição do registro de algumas ocorrências no período da pandemia de Covid-19 não representa necessariamente uma redução de casos de violência contra a mulher, mas mostra que as mulheres encontraram obstáculos para denunciar a situação de abuso a que foram submetidas. A defensora pública Liseane Hartmann, que é dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) da Associação das Defensoras  e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS), explica que é extremamente difícil para a mulher denunciar a violência doméstica. Quando isso acontece, geralmente é porque ela já passou por diversas situações de humilhação. “É muito difícil romper o ciclo da violência, então até que a vítima se sinta encorajada a procurar uma instituição e poder denunciar, infelizmente, ela já passou por muito sofrimento. Ela já viveu muitas situações de violência que são variadas. Pode ser violência física, patrimonial, moral, sexual e psicológica. Aliás, tem muito a questão da violência psicológica, que não deixa marcas evidentes mas afeta a vida de todos.”

Os motivos para a subnotificação são muitos, mas costumam estar associados ao fato de o agressor ser, na maioria das vezes, o companheiro da vítima – ou, pelo menos, parte da família. Isso faz com que as mulheres agredidas tenham receio de prosseguir com a denúncia porque não querem prejudicar o companheiro, porque tem medo de retaliação ou tem até vergonha da violência. Segundo a defensora Liseane Hartmann, isso faz com que o número de denúncias seja sempre muito inferior em relação aos fatos. “Se nós pensarmos nos dois primeiros meses da pandemia, em que o isolamento social foi levado a cabo, aumentaram os feminicídios no Rio Grande do Sul, por exemplo, mas o número de ocorrências de lesão corporal diminuiu. Isso nos leva a crer que tenha ocorrido uma subnotificação importante em razão da dificuldade ainda maior de conseguir fazer essa denúncia. Nós sabemos que as tensões familiares aumentaram e se intensificaram. A mulher passa mais tempo em contato com o opressor e isso pode dificultar o acesso à denúncia, fica mais difícil pedir ajuda.”

A promotora de Justiça Carla Souto, da Promotoria Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), inclusive alertou para o fato de que em alguns casos de feminicídio não havia nenhuma denúncia anterior. “Os dados da Polícia Civil que indicam uma diminuição nos registros de ocorrência são muito preocupantes, porque se chega a conclusão de que há um número muito grande de mulheres sendo agredidas e sem buscar ajuda. Sem ter ajuda.”

Um levantamento inédito sobre a violência doméstica realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entre os meses de março e abril deste ano apontou que os casos de feminicídio no País aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019. Somente nesses dois meses, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes. Entre os 20 estados brasileiros que liberaram dados das secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de 54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo índice. Os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano em 12 estados do país. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, o documento foi divulgado hoje (1º) e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros.

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MÁSCARA ROXA

No Rio Grande do Sul, um dos estados que registrou crescimento no número de feminicídios, 28 mulheres foram assassinadas por questões de gênero nos meses de março, abril e maio, . Os dados são da Secretaria de Segurança Pública. Em abril, o aumento foi de 66,7% em relação ao mesmo período do ano passado. O aumento no número de feminicídios entre março e abril  e o fato de o confinamento dificultar a denúncia das vítimas levou o Comitê Gaúcho ElesPorElas, da ONU Mulheres, a criar a Campanha Máscara Roxa, que permite que mulheres vítimas de violência façam a comunicação do crime em farmácias. Para facilitar,  os estabelecimentos credenciados apresentam o selo “Farmácia Amiga das Mulheres”, que serve para que as vítimas as identifiquem.

O procedimento é bastante simples: a vítima precisa ir até uma farmácia que tenha aderido à campanha e pedir por uma “máscara roxa”, que é a senha para que o atendente saiba que se trata de um pedido de ajuda. O profissional, que recebeu capacitação online para realizar o procedimento de forma adequada e garantir a segurança das mulheres,  vai responder que o produto está em falta e vai solicitar alguns dados para que possa avisá-la quando a suposta máscara chegar. Ele pede pelo nome, endereço e dois números de telefone para contato. O deputado estadual Edegar Pretto (PT), coordenador do Comitê e idealizador da campanha, explica que a necessidade dos dois números de telefone é porque, em muitos casos, o agressor está vigiando a vítima. “Uma das dificuldades que as mulheres encontram para pedir ajuda é justamente porque são vigiadas e constrangidas, isso quando o agressor não está de posse do aparelho. Então é importante que tenha um contato alternativo”, diz. Fornecidos os dados, o próximo passo é passar essas informações para a Polícia Civil por meio do WhatsApp, para garantir também o anonimato do atendente. A partir daí, os policiais ficam responsáveis por auxiliar a vítima.

A campanha foi lançada em 10 de junho no RS e já está em milhares de farmácias de todo da capital e do interior – em grandes redes e lojas individuais. A Polícia Civil disponibilizou um número específico para receber as denúncias da campanha, que fica “ligado” 24h por dia. Até o final de setembro foram registradas 31 denúncias em farmácias do Rio Grande do Sul. Também foram efetuadas três prisões em flagrante nos municípios de Porto Alegre, Caxias do Sul e Rio Grande.

Pretto , que faz parte do Comitê Eles por Elas desde a criação do He for She, em 2013, explicou que ele e sua equipe pensaram nessa iniciativa a partir da recomendação da ONU para que as nações membros da Organização constituíssem politicas afirmativas de facilitação de denúncias. “O governo brasileiro não deu importância, diferente de outros países europeus e mesmo sulamericanos como Argentina, que criou a campanha da Mascara Roja, e do Chile. Então nós entendemos que algo deveria ser feito.”

Foto: Leandro Molina

A percepção do parlamentar, de que o governo brasileiro não tomou medidas efetivas para o combate à violência doméstica do país, foi confirmada pelo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo as informações publicadas no Anúario da Segurança, a ONU fez uma série de recomendações para orientar os países no enfrentamento da violência contra a mulher nesse período. A Organização destacou uma série de medidas possíveis, como a necessidade de se aumentar os investimentos em serviços de atendimento online, de se estabelecer serviços de alerta de emergência em farmácias e supermercado e ainda a importância de criar abrigos temporários para vítimas de violência de gênero. Apesar das recomendações, o documento produzido pelo Fórum indica que, embora o governo federal tenha se posicionado publicamente sobre a questão, em comparação com outros países, as iniciativas divulgadas no Brasil não foram suficientes para combater a violência doméstica neste período. Pelo contrário.

As medidas anunciadas pelo governo de Jair Bolsonaro eram campanhas voltadas a recomendações gerais sobre atuação das redes de proteção. Isso também é importante, mas não foram apresentadas saídas concretas e imediatas. Enquanto isso, países como França, Espanha, Itália e Argentina, por exemplo, transformaram quartos de hotéis em abrigos temporários e criaram centros de aconselhamentos em farmácias e supermercados para que as denúncias fossem realizadas por meio de “palavras-código”, exatamente como a iniciativa crida no Rio Grande do Sul.

A Campanha da Máscara Roxa mobiliza diversas instituições em torno da combate à violência de gênero. Ela se concretiza a partir de um termo de cooperação assinado por Ministério Público do Rio Grande do Sul; Tribunal de Justiça do RS;  Poder Executivo gaúcho, por meio do Departamento de Políticas Públicas para as Mulheres, Polícia Civil e Brigada Militar;  Defensoria Pública; ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos;  Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem); Agência Moove; Grupo RBS; e Rede de Farmácias Associadas. A defensora pública Liseane Hartmann conta que cada participante assumiu o compromisso de divulgar da forma mais ampla possível o trabalho das instituições no sentido de que as vítimas tenham um fácil acesso aos canais de denúncia. “Hoje nós já contamos com o trabalho online das delegacias de polícia, porém, nós sabemos em alguns casos a vítima está em contato direto com o ofensor e não tem o acesso facilitado por parte de um computador ou celular. Então, ela podendo se dirigir a uma farmácia amiga das mulheres, ela simplesmente solicitar uma máscara roxa.

Uma pesquisa conduzida pela promotora de Justiça de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes investigou 364 denúncias provenientes de feminicídios. O estudo mostrou  que 30% das mortes aconteceram aos sábados ou domingos. Ou seja, quando a maioria das delegacias está fechada. A pesquisa ainda indicou que a cada quatro feminicídios, um tem uma segunda vítima, como filhos ou outros parentes. Em 66% dos casos, as mortes ocorreram em casa. E de todas as vítimas, 97% não tinham medida protetiva e só 4% tinham registrado boletim de ocorrência. Os números só reforçam a importância de se viabilizar um canal de denúncia alternativo às mulheres.

A promotora de Justiça Carla Souto, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ressalta a importância da denúncia, que ela chama de “mais um ato de coragem”. “Eu falo em coragem porque é, realmente, muito difícil. Não é fácil denunciar o agressor que muitas vezes é o companheiro, pai dos filhos. Em tempos de pandemia, em que as pessoas se encontram isoladas dentro de casa, esse desafio fica muito maior. Além de a vítima tomar a decisão de denunciar, e não é simples em razão do ciclo da violência, ela tem que ter como fazê-lo. E sem saídas para o trabalho, ela isolada junto como agressor é extremamente difícil.”

Nossa Mama não conseguiu fazer uma denúncia formal, mas conseguiu pedir ajuda. Esse foi o primeiro ato de coragem e foi recompensado. No dia seis de agosto deste ano, chegou uma nova mensagem pelo WhatsApp.

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“Conseguiram o abrigo, vão buscar a mãe e os 2 meninos hoje. E foi bem em tempo. Tudo muito triste, mas todos bem (fisicamente) e hoje saem de lá. Valeu mesmo.”

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ENTENDA O CICLO DA VIOLÊNCIA

Ciclo da Violência tem três fases. Na Fase 1, ocorre o aumento da tensão. Nesse momento, o agressor se mostra tenso e irritado por coisas pequenas. É agora que ele começa a ter acessos de raiva, humilhar, fazer ameaças e quebrar objetos. Neste ponto, a mulher tenta acalmar o agressor e evitar qualquer coisa que possa provocá-lo. Em geral, na fase 1, a vítima tende a negar que isso esteja acontecendo com ela. Ela esconde o jogo, não conversa sobre a situação com ninguém e inclusive se sente culpada, acha que mereceu, que fez algo errado. Ou seja, ela justifica o comportamento violento do agressor. Lembra da Mama de Chimamanda falando do peso que o marido carregava? Essa tensão pode durar dias ou anos. Mas conforme aumenta, é provável que leve à Fase 2.

Nesse segundo momento ocorre a explosão. A tensão da primeira fase se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. A vítima se sente perdida e paralisada. Neste ponto, ela sofre de uma tensão severa que pode levar à insônia, perda de peso, fadiga constante e ansiedade. Ela sente medo, ódio, solidão, vergonha. É agora que ela pode tomar a decisão de buscar ajuda, denunciar ou se esconder na casa de conhecidos. O que leva à Fase 3.

O terceiro momento do Ciclo da Violência é conhecido como lua de mel. O agressor se mostra arrependido e passar a se comportar de forma carinhosa. Diz que nunca mais fará aquilo novamente.

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“A dor me queimava agora, estava mais parecida com mordidas, porque o metal caía sobre as feridas expostas na lateral do meu corpo, em minhas costas, minhas pernas. Chute. Chute. Chute.

[…]

O rosto de Papa estava próximo do meu. Tão perto que seu nariz quase tocou o meu, mas mesmo assim vi que seus olhos estavam mansos, que ele falava e chorava ao mesmo tempo. -Minha filha preciosa. Nada vai acontecer com você. Minha filha preciosa.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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Na fase 3, a mulher pode se sentir confusa e pressionada a manter o relacionamento, especialmente se o casal tem filhos. Se a mulher decide retomar o relacionamento, o período subsequente costuma ser calmo e ela se sente feliz por ter dado uma nova chance. E como há, geralmente, a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele. isso estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. A mulher, porém, continua confusa e, por fim, a tensão volta. E com ela, as agressões da Fase 1. E tudo recomeça.

A nossa Kambili não recebeu propriamente um pedido de desculpas, mas a mãe dela ouviu a promessa de que aquilo não aconteceria mais, mesmo que o agressor continue bebendo demais, ignorando o alcoolismo da família que, antigamente, era gatilho para a violência do próprio pai.

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COMO E ONDE PEDIR AJUDA

Mas se a nossa Kambili ou a mãe conseguirem romper o ciclo, elas não estarão sozinhas.  Primeiro, a mulher pode ligar para o 180, que é o número do serviço da Central de Atendimento à Mulher, um serviço que presta escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência e que registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes. Em caso de emergência, a mulher pode ainda ligar para o 190 e acionar o serviço da Polícia Militar. Para o caso do registro de ocorrência, a vítima pode fazer isso pessoalmente em uma Delegacia de Polícia ou fazer o registro online. No Rio Grande do Sul, ela ainda tem a opção de fazer a denúncia nas farmácias, usando a senha “Máscara Roxa”.

Mas há uma série de instituições que podem ajudar as mulheres no processo e quebrar o ciclo da violência. A Defensoria Pública também presta atendimento jurídico às vítimas de violência de gênero, inclusive doméstica e familiar. Em Porto Alegre, o Núcleo de Defesa da Mulher realiza ações e atividades voltadas à prevenção, defesa e garantia dos direitos das mulheres no âmbito da defensoria. “A nossa atuação é tanto na área criminal como na área cível, então a assistência às vítimas de violência na solicitação de medidas protetivas de urgência, que são previstas na Lei Maria da Penha, e também a questão da parte cível, que compreende as ações de divórcio, dissolução de união estável, pensão, guarda dos filhos e visitas”, explica a defensora Liseane Hartmann. Mas também há ações extra-judiciais, como orientação acerca dos direitos das vítimas e informação quanto à rede de proteção à mulher, com auxilio da Defensoria, Delegacias, Brigada Militar e Ministério Público. “O problema da violência doméstica é multidisciplinar. É preciso olhar para o problema como uma questão de saúde, assistencial e de segurança”, disse.

Já a promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica de Porto Alegre, por exemplo, atua em duas frentes: medidas protetivas e processos criminais.

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COMO FUNCIONAM AS MEDIDAS PROTETIVAS?

Medidas protetivas são decisões judiciais rápidas que tem o objetivo de proteger a mulher e evitar o desgaste da vítima. A ideia é que, com uma medida protetiva, a mulher esteja resguardada e não precise de peregrinação em busca de assistência jurídica. Existem vários tipos de medidas protetivas, mas as mais comuns são o afastamento do agressor do lar; a proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares; suspensão de procurações concedidas pela vítima ao agressor; prestação de alimentos aos filhos menores; e a suspensão do porte de arma de fogo do agressor; separação de corpos; proibição de contato ou aproximação com a vítima; restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores; restituição de bens indevidamente subtraídos; encaminhamento da vítima a programa de proteção ou atendimento.

Quando a vítima faz o registro de ocorrência, via de regra, ela é questionada sobre o interesse em medidas protetivas. A promotora Carla Souto explica que essas medidas são muito importantes também porque tem um caráter inibidor. “Nós já temos dados que nos indicam que as mulheres que tem medidas protetivas realmente consegue evitar que se chegue ao mal maior, que é o feminicídio. Esse ano, durante a pandemia, em abril nós tivemos um número absurdo de feminicídios e, aqui no RS, só uma delas tinha medida protetiva.”

Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), 76% das vítimas de feminicídio e 85% das mulheres que sofreram de tentativa de feminicídio haviam sofrido atos de perseguição nos 12 meses anteriores ao ato. Mais do que isso, 41% dos agressores voltam a praticar violência contra as mesmas vítimas no período de até dois anos e meio após um incidente anterior de violência. A maioria das mortes que decorrem da violência de gênero ocorre no contexto de um relacionamento marcado por violência.

O caminho para conseguir uma medida protetiva é o seguinte: a vítima faz o registro de ocorrência e comunica que precisa de medida protetiva. Esse pedido vai direto ao Judiciário, para que o juiz defira ou não. Deferido o pedido, o agressor é intimado pessoalmente. “Ele não pode se aproximar da vítima, nem do local de trabalho e não pode manter nenhum tipo de contato, nem por WhatsApp ou telefone. Então isso nos traz uma referência que funciona”, explica a promotora. A medida protetiva ainda tem uma outra função: o agressor que descumpre uma medida protetiva pode ser preso em flagrante.

O Ministério Público ainda atua nos processos criminais. “Neste ponto, é importante que se diga que vai chegar o momento em que a vítima será chamada a comparece ao Fórum para falar sobre o que aconteceu. E é importante que ela compareça, senão a gente fica sem poder comprovar o que se falou no registro de ocorrência e se tem muitas absolvições”, alertou a promotora.

No ano passado, o MP lançou a cartilha virtual “Todos e todas pelo fim da violência contra a mulher”.  O documento explica, de forma didática, o que é violência doméstica e familiar  e como funciona o ciclo, além de identificar todas as formas de violência. mostra como opera o ciclo de que seja compartilhada pelas redes sociais digitais. A cartilha também traz  informações sobre onde e como buscar ajuda e pode ser compartilhada em redes sociais.

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EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, METE-SE A COLHER

A promotora de Justiça Carla Souto lembra que é importante falar sobre o assunto. “Nós precisamos falar muito sobre isso, para que a gente consiga alterar a cultura que ainda existe em algumas pessoas, de que é uma questão do marido e da mulher e que ninguém tem que interferir. A questão da violência doméstica é um problema de cada um de nós, é uma questão que envolve os Direitos Humanos, a dignidade. É um problema de saúde pública. As vítimas da violência, para além da violência física, estão desenvolvendo problemas de saúde mental extremamente graves. Depressão, ansiedade. Afora isso, tem os filhos. Porque o menino que vive em um lar violento vai ter a tendência, no futuro, de reprisar aqueles mesmo atos de violência. E a menina a ser tolerante com a violência. Então o problema vai pra muito além.”

Ela alerta para o fato de que a violência de gênero não causa tanta comoção como outros crimes. Percebe cultura de culpabilização da vítima e ela cultura alimenta o ciclo da violência e que faz com que as vítimas permaneçam caladas. Porque ela tá em todos nós. E a mulher acaba acreditando nisso, porque a questão da violência psicológica é extremamente grave. Seguidamente em audiência a gente ouve as mulheres dizendo “eu que provoquei”, “eu que quis estudar”.

“Eu acredito que nós estamos em um momento único na questão do olhar pra violência doméstica. Agora, no RS, foi lançada essa campanha da qual o MP é parceiro. E com isso, eu percebo uma mudança institucional importante no Ministério Público, no sentido do quanto é importante o trabalho dos promotores nessa área. E pela Polícia Civil, eu só vejo excelência no que eles estão produzindo. Isso mostra que as instituições estão conseguindo compreender o ciclo da violência.”

A promotora Carla Souto ainda alerta para o fato de que as pessoas que estão no entorno dessas mulheres devem prestar atenção às microviolências. “Às vezes a própria vítima não entende que está em um relacionamento abusivo. Então é importante que nós, como amigas ou conhecidas, estejamos atentas. Se de uma hora para outra essa mulher mudou de forma drástica, vamos perguntar. É importante denunciar, mas é importante, também, falar. O primeiro passo é falar para alguém, contar para uma amiga, para um familiar. Há algo que eu uso enquanto promotora e como amiga. Se por dez vezes ela voltar para aquele agressor, por onze vezes eu vou estar aqui, apoiando e dando suporte. Também a família e os amigos não podem desistir.” Segundo a promotora, a violência contra a mulher é uma epidemia, é um problema de saúde pública.

“Isso não pode continuar nwunye m – disse tia Ifeoma. – Quando uma casa está pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

 

*Os nomes foram modificados e a verdadeira identidade protegida a pedido das entrevistadas

Voos Literários

Feminismo para quê? (Quem mandou matar Marielle?)

Flávia Cunha
13 de março de 2020
“Os estereótipos associados ao que é ser uma mulher e as expectativas sobre como devemos nos comportar são facetas do discurso institucional e hegemônico ainda profundamente conservador e reacionário. Registra-se que tal movimento ganha força no momento atual; basta olhar, por exemplo, para o resultado das eleições nos EUA e no plebiscito do Reino Unido, entre outros exemplos possíveis. Em escala internacional, guerras, interdições, perseguições, separações voltam a aparecer e se marcam como impedimentos e controles cada vez maiores do outro, da outra, do corpo que não compõe o grupo social de poder, que tende a ser “colocado para fora”, ou “impedidos”, pelas classes dominantes de conviver com suas “diferenças” na cidade. Com a falácia da narrativa de ‘crise econômica’, busca-se derrubar os direitos conquistados e, uma vez feito, serão as mulheres negras e pobres, moradoras das periferias, principalmente das favelas, que estarão ainda mais vulneráveis à violência e ao racismo institucional impregnado nos poros da formação social brasileira.”
Marielle Franco, no livro Tem Saída? Ensaios Críticos Sobre o Brasil, lançado em 2017, no capítulo A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada.

Muitas pessoas consideram que Marielle foi vítima de um feminicídio político. Foi brutalmente assassinada pela condição de mulher negra favelada, como se auto intitulava. Além disso, sua atuação na política primava pela luta a favor das mulheres, dos negros, da comunidade LGBT, além de atuar fortemente contra as milícias.

Quem mandou executar Marielle naquele 14 de março de 2018 provavelmente não imaginava que, dois anos depois, ela estaria mais presente do que nunca. As investigações de seu brutal assassinato e o do motorista Anderson Gomes seguem nos noticiários. Foi homenageada aqui e no Exterior. Um documentário foi lançado na plataforma de streaming da Globo, sendo que o primeiro episódio foi exibido em rede nacional. O nome de Marielle também segue ecoando em manifestações pelo Brasil.

Mas tentam macular sua memória. Inventaram mentiras a seu respeito, tentaram fazer ligações de sua trajetória ao tráfico de drogas e seguem relativizando com argumentos desconexos a importância dada à seu assassinato. A violência contra essa mulher segue, mesmo após sua morte. Nessa semana, denunciei um comentário de uma postagem no Facebook em que aparecia o rosto Marielle como se estivesse no cartaz de um filme, com a grotesca legenda: “Fácil de matar”. Tamanha falta de humanidade não deveria ser habitual no jogo político brasileiro. 

MULHERES NA POLÍTICA

Enquanto ocupou seu espaço como vereadora pelo PSOL do Rio de Janeiro, Marielle destoava da maioria de seus pares, homens brancos héteros. Isso porque a política brasileira é mais um terreno desigual para as mulheres no Brasil. De acordo com levantamento de 2016, 87% do total de vereadores no país eram homens. Um dos motivos apontados para essa desigualdade é a divisão sexual do trabalho, que faz com que mulheres tenham menos tempo para a militância política. 

Como ela escreveu no capítulo do livro Tem Saída?, os conservadores têm estereótipos sobre o que é ser mulher e expectativas sobre o comportamento feminino. Porém, a vereadora Marielle Franco não se comportava de forma submissa e dócil como esperavam seus pares masculinos. Não tolerava ser desrespeitada. 

Seguir lutando pelo feminismo, como ela, é uma forma de manter seu legado.

E enquanto o crime não for esclarecida, seguiremos perguntando:

Quem mandou matar Marielle?

Imagem: Renan Olez/ Câmara de Vereadores do Rio

Voos Literários

Pelo fim da violência

Flávia Cunha
29 de novembro de 2019

Dentre as inúmeras datas que nos lembram do quanta falta avançarmos enquanto sociedade, está a de 25 de novembro, dia internacional de enfrentamento à violência contra a mulher. O assunto não deixa de ser abordado pela grande mídia, mas os noticiários em geral se detém em aspectos particulares de cada caso. O horror de Eliza Samúdio ter sido devorada por cães a mando do ex-amante, as fortes imagens do circuito interno de um elevador onde uma advogada foi espancada violentamente pelo marido. Depois, foi jogada do edifício de alto padrão no Paraná onde morava. Não resistiu. Cito esses exemplos porque me chocaram especialmente. Mas se os números são necessários para convencer o leitor desse texto a respeito da urgência de abordarmos este tema, vamos a eles. O levantamento mais recente, divulgado em março de 2019, aponta que foram registrados 4.254 homicídios dolosos de mulheres em 2018. Conforme o Monitor da Violência, uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil.

Em 2017, a tipificação do crime de feminicídio foi questionada pelo então deputado Jair Bolsonaro, que classificou o assunto como “mimimi”. Nessa semana, a ministra  da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, contradisse a fala de dois anos atrás do agora chefe da nação, ao afirmar que “existem mulheres que são mortas apenas pelo gênero”.  Antes, fez uma questionável performance, ficando em silêncio durante uma coletiva de imprensa sobre o assunto.

Mas qual é a tipificação do feminicídio e por que  ele incomoda alguns homens?

No Brasil, o crime de feminicídio foi definido legalmente desde a entrada em vigor da Lei nº 13.104 em 2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

Assim, segundo o Código Penal, feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino”, isto é, quando o crime envolve: “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher” […] pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.

Ao incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, o crime foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros.

Fonte:  Dossiê Femicídio da Agência Patrícia Galvão

E quais seriam possíveis caminhos para modificar esse panorama de violência contra a mulher?

Considero que o essencial é conseguirmos sair do lugar-comum dos noticiários sensacionalistas, que apenas ressaltam a crueldade particular de cada crime e não tentam entender as causas que levam tantas mulheres a serem assassinadas por maridos, namorados ou ex-cônjuges. Nesse sentido, trago algumas reflexões interessantes do livro O Feminismo é Para Todo Mundo, de bell hooks. (A autora, feminista e negra, prefere a grafia de seu nome com letras minúsculas.) Apesar dela referir-se aos Estados Unidos em seus textos, considero que os conceitos e questões abordadas podem ser úteis para qualquer país ocidental.

No capítulo Pelo Fim da Violência, a pensadora apresenta um conceito diferente do usual. Ao invés de violência doméstica, ela prefere utilizar o termo violência patriarcal:

A violência patriarcal em casa é baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva. Essa definição estendida de violência doméstica inclui a violência de homens contra mulheres, a violência em relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e a violência de adultos contra crianças. O termo ‘violência patriarcal’ é útil porque, diferentemente da expressão ‘violência doméstica’, mais comum, ele constantemente lembra o ouvinte que violência no lar está ligada ao sexismo e ao pensamento sexista, à dominação masculina. Por muito tempo, o termo violência doméstica tem sido usado como um termo ‘suave’, que sugere emergir em um contexto íntimo que é privado e de alguma maneira menos ameaçador, menos brutal, do que a violência que acontece fora do lar. Isso não procede, já que mais mulheres são espancadas e assassinadas em casa do que fora de casa.”

Em outro trecho do mesmo capítulo, a autora destaca que apesar da violência contra a mulher ser condenada pela sociedade, as causas dessa violência acabam sendo rechaçadas quando o argumento é o sexismo. Ela considera que o próprio feminismo pode ter contribuído, sem querer, para essa resistência ao assunto:

Em um esforço zeloso de chamar atenção para a violência de homens contra mulheres, pensadoras feministas reformistas ainda escolhem frequentemente retratar como vítimas sempre e somente mulheres. O fato de que vários ataques violentos contra crianças seja cometido por mulheres não é igualmente destacado e visto como outra expressão de violência patriarcal. Sabemos agora que crianças são violentadas, não somente quando são o alvo direto de violência patriarcal, mas também quando são forçadas a testemunhar atos violentos. Se todas as pensadoras feministas tivessem expressado ter se sentido ofendidas pela violência patriarcal perpetrada por mulheres, colocando isso em pé de igualdade com a violência de homens contra mulheres, seria mais difícil para o público ignorar a atenção dada à violência patriarcal, por enxergá-la como pauta antihomem.”

Mas como fazer para que as causas da violência contra a mulher deixem de ser consideradas uma pauta “antihomem’? A escritora bell hooks procura responder essa questão no capítulo Masculinidade Feminista:

Uma visão feminista que adere à masculinidade feminista, que ama garotos e homens e exige, em nome deles, todos os direitos que desejamos para garotas e mulheres, pode renovar o homem norte-americano. Principalmente, o pensamento feminista ensina a todos nós como amar a justiça e a liberdade de maneira a nutrir e afirmar a vida. Claramente, precisamos de novas estratégias, novas teorias, diretrizes que nos mostrarão como criar um mundo em que a masculinidade feminista prospere.”

Definitivamente, o feminismo precisa ser para todo mundo!

Imagem: Reprodução/Internet