Reportagens Especiais

Epidemia de empobrecimento . Fim do auxílio emergencial deve recolocar milhões em situação de pobreza

Geórgia Santos
31 de dezembro de 2020

Por Flávia Cunha, Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol

“Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do que manteiga? Ela não responde. — E o gelo?… pra que é que se precisava de gelo?… Faz-se uma pausa. Ele continua: — Gelo… manteiga… Quanta bobice inútil e dispendiosa… — Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o leite? — Por que não? — Com o leite?! Ele desvia a cara de novo. — Não digo com o leite — acrescenta depois — mas há muito esbanjamento. — Aponta o esbanjamento. — Olha, Adelaide (ele se coloca decisivo na frente dela), tu queres que eu te diga? Outros na nossa situação já teriam suspendido o leite mesmo. Ela começa a choramingar: — Pobre do meu filho… — O nosso filho não haveria de morrer por tão pouco. Eu não morri, e muita vez só o que tinha pra tomar era água quente com açúcar. — Mas, Naziazeno… (A mulher ergue-lhe uma cara branca, redonda, de criança grande chorosa)… tu não vês que uma criança não pode passar sem leite?”

Em “Os Ratos”, Dyonélio Machado apresenta o protagonista Naziazeno durante o que o autor chama de “pega” com o leiteiro, que exige pagamento pelo leite de todo dia. Naziazeno contemporiza e tenta se convencer de que leite não é importante, de que não é necessário, mas ele sabe que não é assim que a banda toca. Ele precisa dar um jeito. A situação de Naziazeno em 1935 se repete, hoje, com milhões de brasileiros que foram beneficiados com o programa de auxílio emergencial criado pelo governo federal para ajudar as famílias mais vulneráveis durante a pandemia do novo coronavírus, que chegou ao Brasil em março.

De abril a dezembro, foram repassados cerca de R$ 322 bilhões em parcelas iniciais de R$ 600 e pagamentos “extras” de R$300. Estima-se que 70 milhões de pessoas receberam pelo menos um pagamento..

“Era um dinheirinho que dava para fazer algumas coisinhas, né? Não muito, mas ajudava.” A diarista Denise Basílio da Costa, de 30 anos, foi aprovada para receber o auxílio emergencial no início da pandemia. O valor mensal era destinado principalmente à compra de itens de alimentação para os filhos Vitória, de 10 anos, Vitor, 6 anos, e Lucas, de 4. Ela o marido, Cristiano, de 24 anos, ainda contaram com eventuais doações de cestas básicas ao longo dos últimos meses. “Meu marido faz bicos, como limpeza de pátios. A gente vai se virando, mas não sei como vai ser agora”, lamenta. Ela reconhece que não sabe como ficará o sustento da família com o fim do auxílio emergencial. “Esse dinheiro vai fazer falta, vai mesmo”.

Inúmeros fatores contribuem para a incerteza e ansiedade sobre o desempenho da economia, e o impacto na vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. O fim do auxílio ocorre em um momento em que o desemprego atinge mais de 14 milhões de brasileiros, um índice de 14,3%, provocado, principalmente, pela gradual busca por vagas no mercado por trabalhadores que não estavam procurando. O desempenho da criação de vagas, no entanto, ainda depende da confiança do empresário, algo que não está acontecendo, em meio a indefinições sobre vacina e políticas fiscais. O Índice de Confiança do Empresário do Comércio fechou o ano de 2020 na menor pontuação desde 2017 (102 pontos).

Sem auxílio e com retomada mais lenta do que o necessário, o brasileiro ainda lida com inflação em alta em setores prioritários. No caso dos alimentos, a alta é de 17,46% – a maior desde outubro de 2003, em parte pela favorabilidade para exportações e, em outra, pelo aumento do consumo. E os mais pobres sofrem mais. Estudo do Banco Central (BC) divulgado em dezembro (17) mostrou justamente o impacto do auxílio emergencial na inflação dos mais pobres. A pesquisa mostrou que o benefício concedido pelo governo em razão da pandemia da Covid-19 elevou os preços da cesta de alimentos de quem ganha entre um e três salários mínimos.

O economista Ely José Mattos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que o auxílio causou um impacto considerável do ponto de vista do consumo.  “Por exemplo, se a gente olhar carne de primeira e carne de segunda. Quando a gente pensa no movimento inflacionário da carne, por exemplo, esse dois tipos de carne tendem a caminhar mais ou menos juntos. Agora não aconteceu isso. A carne de segunda teve uma elevação relativamente mais acentuada que a carne de primeira. Ou seja, a gente teve uma pressão que é oriunda, sim, do aumento do consumo das famílias em função da renda. Cabe lembrar que os R$600 mensais, para muitas famílias, foi uma renda maior do que elas costumava receber regularmente antes da pandemia. São famílias que tem poder de poupança muito baixo, elas gastam esse dinheiro, afinal de contas, são famílias mais pobres e precisam usar esse dinheiro. Só que com a chegada desagrada extra, isso levou a uma pressão inflacionária.”

Além do reflexo no preço dos alimentos, o índice usado para reajustar aluguéis já passa de 23% ao ano. Para piorar, a inflação para classe de renda muito baixa – a mesma que não terá mais acesso ao benefício do governo – é quase três vezes a de renda alta, segundo dados do Ipea divulgados em novembro. Uma equação de difícil solução, sobretudo em meio a aumento do número de mortes e endividamento em alta.

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O IMPACTO DA PANDEMIA
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Pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do C6 Bank mostrou o quanto os brasileiros foram afetados pela pandemia sob o ponto de vista financeiro. O estudo mostra, ainda, que os brasileiros foram afetados de maneira desigual –  segundo os dados da pesquisa, as classes C, D, e E foram as mais atingidas.

Para a maioria dos brasileiros, mais especificamente para 67% dos entrevistados, a questão financeira foi motivo de estresse e ansiedade desde o início da pandemia. A maior parte dos brasileiros com mais de 16 anos precisou cortar gastos pessoais e com a família e 58% afirmam que a renda familiar diminuiu. Quase a metade da população precisou adiar despesas. E entre os integrantes das classes C, D e E, os impactos financeiros foram mais comuns do que nas classes AB.

A suspensão dos contratos de trabalho atingiu 20% da população, impactando tanto assalariados como profissionais autônomos e free-lancers. Foi o caso do Tiago Rosa, de 34 anos, que é autônomo e não conseguiu manter o ritmo do trabalho. “Eu e minha esposa, Julia, conseguimos o auxílio. O valor até foi suficiente para pagar as contas e a alimentação nossa e do Caio (11) e da Elisa (5)”, pondera. Antes da pandemia, ele tinha o próprio negócio, uma empresa de transporte de bandas para shows e eventos. “Levava músicos para shows em Porto Alegre, região metropolitana e às vezes até para outros Estados. Com a pandemia, meu negócio parou. Até consegui fazer alguns trabalhos em lives, mas não tem como comparar com os ganhos que eu tinha antes”, comenta. O projeto para 2021 é voltar a ser motorista de aplicativo, uma ocupação que havia abandonado principalmente pelo medo de assaltos e por ter investido em sua empresa. “Mas é o jeito agora,” resume.

Em situação similar à do Tiago, a pesquisa do C6Bank e Datafolha indica que cerca de um terço da população economicamente ativa e assalariada afirma que teve redução de salário durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, o que representa 9% da população brasileira com 16 anos ou mais. Além disso, 43% dos entrevistados desempregados informaram que perderam o emprego durante a pandemia do Coronavírus.

Os números mostram a relevância do auxílio emergencial para a população mais vulnerável. Ainda, de acordo o economista Ely José Mattos, mostram a importância do benefício para o desempenho da economia brasileira em 2020. “O Banco Central projeta uma queda de PIB entre 4,5 e 5% pra 2020. Lá em junho nós apostávamos em quedas de 7%, porque o cenário era muito preocupante. O auxilio emergencial robusto, sem dúvida, ajudou a manter a dinâmica do varejo, do consumo básico. A gente teve, de fato, um componente de dinamismo econômico muito significativo. E foi fundamental pra manter as pessoas distantes de situações de muita necessidade e muita vulnerabilidade nesse período incerto e de tanto deslocamento das atividades econômicas. Tanto do ponto de vista do emprego quanto do ponto de vista de dinâmica. Então o auxilio emergencial foi fundamental.”

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DESIGUALDADE
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O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) divulgou um estudo chamado “Covid, Classes Econômicas e o Caminho do Meio: Crônica da Crise até Agosto de 2020”, que mostra que, em meio à pandemia de covid-19, o auxílio emergencial contribuiu para a queda temporária da pobreza no país. Segundo a FGV, a pobreza é caracterizada pela renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo (R$522,50). A comparação feita com os dados fechados de 2019 aponta que 15 milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza até agosto, uma queda de 23,7%. Mesmo havendo 50 milhões de pobres após a queda, foi o nível mais baixo de toda a série estatística. Com isso, de acordo com reportagem da jornalista Cássia Almeida publicada no jornal O Globo a partir de cálculo inédito do sociólogo Rogério Barbosa, a desigualdade brasileira chegou no menor nível histórico.

A questão é que a desigualdade no Brasil vinha aumentando desde 2016, e o fim do auxílio emergencial pode levar a desigualdade de volta ao patamar da década de 1980. Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, o índice de pobreza – neste caso caracterizada por uma renda de até um terço do salário mínimo (R$348) – caiu de 18,7% em 2019 para 11% em 2020. Mas sem o benefício do governo, de acordo com o sociólogo Rogério Barbosa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esse indicador pode chegar a 24%. Isso coloca quase um quarto de toda a população brasileira em situação de pobreza.

Apesar de se ventilar a ideia de um reforço do Bolsa Família, o economista Ely José Matos não enxerga a possibilidade de o governo federal financiar um novo auxílio.

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“Não consigo enxergar uma repetição do que aconteceu esse ano, nós não temos caixa pra isso. Mas se não tiver nada, a gente vai ver a volta de um percentual significativo da população de baixa renda para patamares abaixo da linha de pobreza, o que é terrível.”
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E essa discussão, segundo ele, maquia a realidade. “Porque quando a gente discute pobreza no brasil, a gente fala em pobreza crônica, não pobreza transiente, que é quando se entra na momento de crise e depois sai. Aqui está acontecendo o inverso. A gente tem uma situação de pobreza crônica, o auxílio emergencial resgatou, e assim que acabar, as pessoas voltam”, explica.

A perspectiva traçada pelo economista mostra um cenário dramático para 2021. Ainda mais dramático. Com uma taxa de desemprego alta, uma recuperação incerta. “Para se ter uma ideia, o (ministro da economia) Paulo Guedes declarou que aconselharia não dar o 13º do Bolsa Família pela questão fiscal. A gente vai precisar de algo mais criativo”, diz o professor Ely Mattos.

Mas se não se pode contar com o auxílio, se não se pode contar com o governo, o brasileiro vai precisar se virar. Não que seja novidade, a criatividade no povo do Brasil é famosa. Mas nao tem nada de bonito ou romântico nisso. É cruel. Porque mais do que nunca o brasileiro vê a necessidade de tirar leite de pedra, como Naziazeno. A educação financeira é um caminho – talvez o único caminho – além da solidariedade.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA
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É preciso cuidado para falar sobre educação financeira diante do fim do auxílio emergencial. Porque para quem está abaixo da linha da pobreza, parece uma brincadeira de mau gosto discutir prioridades, orçamento familiar ou planilhas de gastos. Tanto é assim que o presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, alerta para o fato de que a teoria pode não ajudar, por exemplo, quem passa fome. “A teoria é muito bonita, diz que para aumentar a renda tem que aumentar as horas de trabalho e se qualificar. E do lado da despesa, trabalhar o orçamento. Mas para esse público, essas teorias tem valor próximo de zero. Porque eles tem extrema dificuldade de melhorar qualificação, e mesmo que conseguissem, demoraria um tempo razoável e, é claro, custaria mais dinheiro. E fazer orçamento para se gastar R$300 por mês? Tudo é prioridade.”

A questão é quando a gente pensa em educação financeira, logo imagina pessoas com muito dinheiro e investimentos. Mas a educadora financeira Cíntia Senna, ensina que ela pode ser aplicada também em famílias mais vulneráveis e de baixa renda. “Todos precisamos desse conhecimento, independente de quanto a gente ganha, escolaridade ou qualquer questão externa.”

Segundo Cíntia, diante do fim do auxílio emergencial e a falta de perspectiva de um novo benefício ou mesmo uma melhora na economia, a primeira coisa a se fazer é olhar ao redor, para a própria comunidade, vizinhos e amigos. “A gente tem que começar a observar o que é possível ser feito diante da realidade de cada um. E se perguntar, como está a minha comunidade, meu bairro, o que se pode fazer em conjunto. Pode ser importante olhar pra dentro da comunidade e observar quais as necessidades e ver o que cada um pode contribuir.  E em troca disso receber um recurso financeiro ou até encontrar novas possibilidades.”

O músico e cozinheiro Felipe Santos de Souza, de 44 anos, reativou o trabalho com gastronomia para conseguir pagar as contas depois de o setor de entretenimento começar a sofrer os impactos da pandemia, especialmente com o cancelamento de shows. Apesar de ter sido aprovado para receber o auxílio emergencial, o valor não foi suficiente para manter as contas da família em dia. “Resolvi vender comida congelada como uma forma de complementar a renda para além do auxílio”, conta. Mais recentemente, começou a trabalhar pintando apartamentos. E é com essa ocupação que pretende se sustentar no ano que vem. “Também pretendo enxugar mais ainda os gastos. Mas, certamente, é um dinheiro que fará falta, já que os shows, que eram minha principal fonte de renda, não têm data para serem retomados no Rio Grande do Sul.”

Mas nem todo mundo consegue encontrar novas possibilidades e pagar as despesas básicas se torna motivo de uma angústia profunda. Naziazeno não conseguia comprar leite. A Denise, que aparece no início da reportagem, agora não sabe se vai conseguir comprar comida.

Cíntia explica que o supermercado é responsável por 60% das despesas das famílias brasileiras. Ou seja, em média, 60% da renda, independente de qual seja, é utilizada para a compra de alimentos que, como mostra o início da reportagem, é fortemente impactada pela inflação. Mas mesmo assim, mesmo nessas condições, a educação financeira pode ajudar. “Além de olhar marcas e pesquisar preços, a gente precisa sempre olhar o que tem dentro de casa e ir até o supermercado com uma lista pronta e ciente da quantidade se precisa. Também é importante estabelecer um limite de gastos e observar o que eu preciso para a semana, e não para o mês. Porque pode haver diferença de preços em determinados produtos que, ao final de 30 dias, podem impactar consideravelmente o orçamento da casa”, explica. Mas essas são medidas convencionais, que se aplicam a famílias que tem o orçamento apertado mas que, apesar da dificuldade, tem condições de se organizar sem passar necessidade ou fome.

Para famílias mais vulneráveis, Cíntia sugere medidas menos ortodoxas e que, de novo, envolvem a comunidade. “Todas as famílias precisam de comida e precisam fazer as compras. Então, procure fazer algo em conjunto. Organize com os vizinhos um dia para as compras. Os produtos podem ser comprados em conjunto e, assim, é possível negociar com o supermercado para se fazer uma compra única e ter acesso a algum desconto pela quantidade que está sendo comprada. Assim,  é possível dividir e ter um custo bem menor. Isso pode ser feito em atacadões, que tem preços mais em conta. São estratégias que podem ser utilizadas para reduzir o valor da compra.” Segundo Roque Pellizzaro, presidente do SPC, a força das comunidades é muito importante nesse momento. “Esse lado cooperativo é muito nosso, muito do Brasil.”

Em momentos de crise como esse, muitas pessoas recorrem a empréstimos consignados com longos prazos de pagamento. No momento, até pode parecer uma boa ideia, mas o que pode resolver os problemas no curto prazo pode se tornar um problema maior no médio e longo prazo. Por isso, outra lição importante da educação financeira é fugir do crédito fácil. “Nós tínhamos muitas pessoas desbancarizadas no Brasil, fora do sistema financeiro. Por causa do auxilio emergencial, a gente enxergou essas pessoas. Mas nem todas são informadas e isso faz com que a oferta de crédito seja atrativa para esse público. E o aumento no nível de endividamento tem a ver com isso.”

O presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, explica que é importante ter muito  cuidado com qualquer promessa de facilidade exagerada. “Eu sempre me preocupei com essa questão do empréstimo consignado. Em tese, é uma coisa muito boa, porque como ele reduz o risco, ele teria que reduzir o juro. E o consignado nasceu com a ideia de melhorar esse viés do risco e oferecer juros mais atrativos, mas isso foi desvirtuado com o tempo. Tudo em excesso é muito perigoso e essas ofertas de crédito com juro muito alto são muito perigosas.”

Roque explica que o mais importante, em momentos de vulnerabilidade como esse do fim do auxílio emergencial, é não pegar um empréstimo com o único fim de pagar uma dívida antiga. “O empréstimo só vai ser bom se você for gerar uma nova riqueza com ele e, com essa nova riqueza, pagar o empréstimo e ainda sobrar um dinheirinho”, explica.

O recomendável, então, com relação a dívidas antigas,  é renegociar com o credor. “Você vai vai conseguir uma taxa de juro muito mais barata do que tomando um empréstimo. Então, se você tem uma dívida, vá até o credor e diga: “eu não vou poder pagar. Vamos renegociar, eu vou precisar de seis meses, um ano.” O credor vai fazer, porque ele já está sem receber.”

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“Não tenha vergonha de procurar um credor. É melhor para você e paro o seu crédito uma renegociação do que ficar um tempo sem pagar e pagar tudo à vista com dinheiro emprestado.”
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Além de dívidas antigas, porém, há as contas que se acumulam todos os meses. Nesse caso, Pellizzaro sugere estabelecer prioridades. “O que eu preciso consumir todos os dias? Energia, água e alimentos. Ninguém vive sem isso. Essas são as prioridades. Então é importante manter as contas em dia ara não ter corte de luz e água e renegociar outras dívidas eventuais como compras antigas e parceladas. Não se pode pagar conta velha com dinheiro que você tem só pra comida.”


A educação financeira é algo que o brasileiro sempre exerceu muito pouco, de acordo com Roque Pellizzaro.  E ela, sozinha, não resolve a profunda desigualdade à qual o Brasil é submetido desde sempre. Tampouco é capaz de mover famílias que estão abaixo da linha da pobreza para uma situação mais confortável. Mas ela pode auxiliar famílias vulneráveis em momentos de crises mais agudos como o que se avizinha em 2021. Cíntia Senna lembra que, a partir deste ano, a educação financeira deve fazer parte do currículo de todas as escolas. Mas até que exista uma cultura de planejamento nas famílias brasileiras, há recursos que podem ser utilizados.

O primeiro passo, para qualquer família, segundo Pellizzaro, é organizar um orçamento familiar. Por menor que seja a renda. Porque isso facilita mover os recursos conforme a necessidade. “Vamos supor que a pessoa reserve R$20 por mês para gastar com remédios. Mas ela ficou doente e precisou gastar R$50. De onde ela vai tirar os outros R$30? Se isso não estiver no papel, fica muito difícil reorganizar o orçamento em situações de crise ou emergência. Eu sei que fica muito difícil para pessoas com baixa escolaridade, mas hoje há aplicativos e outras ferramentas que podem auxiliar.

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CANAIS DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA NO YOUTUBE
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Nath Finanças .  A Nath Finanças se dedica à educação financeira para pessoas pobres e de baixa renda. A proposta do canal é falar sobre o tema de maneira fácil e prática, justamente para quem nunca estudou ou não tem familiaridade com o assunto.

Me poupe – A Nathalia Arcuri explica de forma didática as questões complexas do sistema financeiro e dá dicas para quem, por exemplo, está endividado.

Instituições financeiras – Algumas instituições financeiras, como o C6 e o Itaú, tem canais no Youtube que auxiliam as pessoas que, por exemplo, precisam cortar despesas. E o melhor é que não precisa ser correntista para acessar o conteúdo.

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APLICATIVOS
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Minhas Economias . O aplicativo permite que o usuário organize entradas e saídas por meio de categorias. Assim, é possível controlar receitas e despesas em grupos e controlar o impacto sobre a renda mensal. O aplicativo Minhas Economias pode ser baixado gratuitamente tanto no Google Play quanto na App Store.

Guia Bolso .  É um dos aplicativos de controle financeiro mais utilizados no país. O grande diferencial é a sincronização com a conta bancária do usuário. Ou seja, ele coordena o planejamento de gastos com a movimentação financeira, com as entradas e as saídas de recursos. O GuiaBolso pode ser baixado de graça no Google Play e na App Store.

Organize . É ideal para quem quer monitorar o quanto ganha e o quanto gasta. A ferramenta dispõe de um painel com as principais despesas do usuário e o quanto elas representam no orçamento total. O aplicativo Google Play e na App Store. O serviço também tem versão web.

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PLANILHAS
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Pra quem tem dificuldade com aplicativos, o ideal é apostar em uma planilha, que pode ser feita até em uma folha de caderno. Abaixo estão alguns modelos que facilitam o começo do trabalho.

Nath Finanças . A Nath finanças preparou uma planilha que pode ser acessada aqui e é perfeita para quem está começando a fazer o orçamento da casa.

Google Planilhas . Essa opção é menos intuitiva, mas é bastante eficiente. É similar ao Exel, mas é gratuito e dispoe de modelos prontos para organização financeira.


Segundo Pellizzaro, esse é um momento de transição bastante difícil. “Nós vimos essa dificuldade  já com a redução do auxilio de R$600 para R$300, nos primeiros dois meses houve um impacto especialmente no comércio, no comércio mais popular. A gente deve ter agora, no início de 2021, algo similar. Sé que com impacto ainda maior”, lamenta.  Apesar de 2021 trazer uma expectativa melhor em função da possibilidade de vacina – possibilidade, porque, ao contrário de outros países, até agora, não há um plano concreto de vacinação no Brasil –  não há nenhuma perspectiva de, já no primeiro trimestre, nós teremos uma vida social normal.

Por isso, enquanto ações de educação financeira ainda caminham, a solidariedade segue sendo uma força poderosa em tempos de crise. Não para reduzir desigualdades, mas para ajudar quem precisa. Para matar a fome.

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Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #37 A vida sem auxílio
PodCasts

BSV Especial Coronavírus #37 A vida sem auxílio

Geórgia Santos
23 de dezembro de 2020

Algumas pessoas imaginavam que em dezembro já estaríamos vivendo normalmente. Outros, só esperavam um Natal em família. Mas 2020 chega ao fim e ainda estamos enfrentando o vírus e diversas outras epidemias. Epidemia de ansiedade, epidemia de violência, epidemia de empobrecimento.

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Chegamos a 2021 em uma tempestade perfeita. A pandemia que não se foi, desemprego alto, inflação alta – especialmente de alimentos – e o fim do auxílio emergencial
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Essa conjuntura provoca uma série de incertezas, especialmente para os brasileiros mais frágeis economicamente e que começam o ano sem saber exatamente quais as possibilidades de trabalho e sem saber se terão os R$600, os R$300 reais ou nada.

Soma-se a isso uma crise política, a incapacidade do governo de Jair Bolsonaro de lidar com a pandemia e a demora do Brasil em institucionalizar a vacinação e temos, de fato, uma tempestade perfeita.

Para tentar entender essa conjuntura econômica, nós vamos conversar com o economista Ely José Mattos, professor da PUCRS, sobre a inflação e a importância do auxílio emergencial. Nós ainda conversamos com a educadora financeira Cintia Senna e com o presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Junior, sobre como a educação financeira pode ajudar, inclusive, a população de baixa renda.

Mas a educação financeira também tem seus limites. E aí entra o trabalho de pessoas como a Raquel Grabauska, que, diante dessa epidemia de empobrecimento, criou o projeto solidário CQM+, que ajuda pessoas em vulnerabilidade social em Porto Alegre.

Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #37 A vida sem auxílio
Reportagens Especiais

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira”

Geórgia Santos
10 de dezembro de 2019

Por Flávia Cunha e Geórgia Santos

Nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica incluem o que se conhece por violência patrimonial, que ocorre quando o parceiro utiliza o dinheiro para controlar a mulher. No Brasil não há dados compilados sobre o crime previsto na Lei Maria da Penha, mas a transformação do papel da mulher na sociedade mostra que a educação financeira pode ser um passo importante para a superação de um relacionamento abusivo e usada como prática de combate à violência patrimonial


Ela sempre sonhou com aquele apartamento. Não que ela tivesse passado dificuldades na infância, mas aquele imóvel era a projeção de uma vida confortável para a família que ela havia construído. Era lindo. Grande. Tinha 137 m², três quartos, dois banheiros, sala ampla e churrasqueira. Isso sem falar no condomínio com piscina, salão de festas, playground, espaço kids, salão de jogos e quadras esportivas. O sonho de sempre da administradora Maria* custava aproximadamente R$ 1 milhão. O dinheiro não seria um problema. A família havia atingido um patamar financeiro estável já que o marido era um profissional da área da saúde com rendimentos muito acima da média nacional de todos os trabalhadores ocupados, que em 2019 está RS2.234. Mas o preço que ela pagaria seria infinitamente mais alto que o valor monetário. O apartamento tão desejado viraria palco de brigas e discussões frequentes – muitas delas presenciadas pelas duas filhas pequenas do casal. O apartamento dos sonhos abrigaria, então, um casamento recheado de traições, abuso psicológico, humilhações. Um casamento em que o dinheiro desempenhava um papel central de controle.

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria
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Em 2017, o casamento de 12 anos acabou após uma violenta discussão dentro das dependências do edifício de alto padrão. “Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria. Na iminência de uma agressão física, um dos seguranças do prédio interferiu e evitou que algo pior acontecesse. A polícia chegou a ser chamada ao local e o agora ex-marido devolveu as chaves, contrariado. Saiu fazendo xingamentos. Maria não via assim à época, mas ela era vítima de um relacionamento abusivo.

 

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

O estopim para o final do relacionamento foi uma mistura entre traição e descaso como pai. “Eu tinha visto no celular dele muitas mensagens marcando encontros com diversas mulheres, algumas falando de mim de uma forma nada respeitosa. Ali foi a gota d´água. Ele recém havia voltado de uma viagem e mal tinha entrado em contato conosco, apesar de a nossa filha mais velha ter ficado hospitalizada durante uma semana. Depois, descobri que ele estava com outra mulher no Rio de Janeiro, enquanto eu estava aqui cuidando da família”. Ela também recorda que o marido não agia como se fossem realmente um casal, em que os bens seriam divididos. “Dizia que eu não teria direito a nada. Sempre teve esse tipo de chantagem psicológica para tentar evitar a separação”, lamenta.

A psicóloga Daniela Zanetti, especialista em terapia de casal e família, explica que a chantagem emocional e a manipulação podem fazer com que muitas mulheres tenham dúvidas se estão realmente em um relacionamento abusivo. “É preciso estar atento aos sinais, principalmente o controle e o ciúme excessivos, camuflados de amor e cuidado”, enfatiza. Ela destaca que a tecnologia pode ser usada como uma forma tóxica de fiscalização constante, por meio de aplicativos com GPS que monitoram os passos da parceira. “O ideal é não dar espaço para esse tipo de comportamento, já que um relacionamento saudável pressupõe confiança”, aconselha Daniela.

 

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VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

No caso de Maria, mais do que estar em um relacionamento abusivo, ela ainda sofria com a violência doméstica. Ela não sofreu nenhum tipo de agressão física ou sexual, mas ela foi vítima de outros tipos de violência: psicológica, moral e patrimonial. Segundo a Lei Maria da Penha, a primeira é entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e que tenha por objetivo, entre outras coisas, controlar a vítima mediante ameaça, constrangimento, humilhação, insultos e ridicularização. Enquanto a violência moral diz respeito às ações que configurem calúnia, difamação ou injúria. Já a violência patrimonial, segundo o texto, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”

Maria percebe que o dinheiro sempre desempenhou um papel central no relacionamento com o ex-marido. Ele nunca quis, espontaneamente, proporcionar uma vida confortável para as próprias filhas, por exemplo. Ele reclamava de cada gasto. Roupas infantis, brinquedos e mensalidades escolares eram tratados como uma exploração por parte de uma mulher gananciosa e pouco confiável. Por outro lado, entendia que sua única responsabilidade era a financeira, tanto que era um pai ausente emocionalmente e pouco disposto a se envolver nos cuidados com as filhas e nas tarefas domésticas. “Se chegava em casa e a janta não estava pronta, me humilhava na frente das crianças”, recorda. Quando ela descobria traições, a reação do marido era sempre a mesma: dizer que não era importante, que ficaria tudo bem e convidá-la para ir a um shopping para comprar um presente ou dizer que faria uma transferência bancária generosa. “Para ele, o dinheiro comprava tudo.”

A psicóloga Daniela Zanetti explica que, em casos como o de Maria, também é comum o homem sugerir que a mulher largue o emprego ou tenha uma atividade profissional com menos carga horária do que o usual, fazendo com que a remuneração da parceira seja a menor dentro do relacionamento. “É uma forma de o controle se estabelecer. Em um primeiro momento, o discurso é de cuidado e preocupação, para que a mulher tenha mais tempo livre para se dedicar para a família, por exemplo.” De acordo com a especialista, o abusador espera essa nova dinâmica se estabelecer para, então, reclamar da falta de dinheiro e do fato de ser o principal provedor da casa. “É um discurso ambivalente, que oscila entre momentos de agressividade e demonstrações de afeto, desestabilizando a parceira.” Em relacionamentos tóxicos, despesas familiares são tratadas como uma forma da mulher “se aproveitar” do marido.

O Brasil ainda carece de dados no que tange à violência patrimonial. Não há informações sobre o número de casos no país. O Dossiê Mulher 2018 (ISP/RJ), do Instituto Patrícia Galvão, é o que temos de mais concreto. O documento indica as mulheres foram as maiores vítimas do crime no Estado do Rio de Janeiro em 2017. O principal tipo foi o dano, que aparece em 50,4% dos casos, seguido da violação de domicílio (41,8%) e da supressão de documentos, 7,8%. Além disso, o texto mostra que 43,3% dos casos ocorreram na casa da vítima, por namorados, maridos ou ex-companheiros. Se forem somados os pais, padrastos, parentes e conhecidos, o número chega a 59,9%.

A fundação americana Purple Purse, que se dedica a quebrar o ciclo de violência por meio do empoderamento financeiro indica que, nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica envolvem abuso financeiro. “Acontece todos os dias e não discrimina. Afeta todas as classes, raças e comunidades. E homens são vítimas também.” Para testar a solidariedade dos americanos, a organização produziu um vídeo em que uma mulher esquece uma bolsa roxa (purple purse em inglês) em um táxi. Assim que um novo passageiro entra no veículo, o telefone celular está dentro da bolsa começa a receber mensagens ameaçadoras, supostamente do parceiro. Em seguida, a mulher liga para próprio aparelho em busca de seus pertences. O vídeo abaixo mostra alguns dos casos em que as pessoas se preocuparam com o bem-estar da dona da bolsa roxa.

A Purple Purse recomenda ficar alerta aos primeiros sinais. Como qualquer violência doméstica, a violência patrimonial começa com um padrão abusivo de comportamento, usado para controlar e intimidar a parceira. É uma conduta que começa de forma sutil, progride com o tempo. Além da chantagem emocional e das ações listadas pela psicóloga Daniela Zanetti, a organização ainda indica que há outras maneiras pelas quais o companheiro pode tentar assumir o controle dos recursos financeiros da mulher. As principais delas são: restringir os gastos diários; desviar recursos da esposa; impedir o acesso às contas bancárias; sabotar a educação e o emprego da parceira; excluir a mulher do planejamento financeiro; e criar dívidas.

Fontes: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família / Lei Maria da Penha

Para quem olha a situação de fora, pode parecer impossível que uma mulher não se afaste de alguém que a agrida diariamente. Que a faça sofrer. Que a humilhe e insulte constantemente. Mas a violência patrimonial paralisa. Não bastassem chantagens emocionais e as constantes ameaças, a supressão de documentos e a limitação de acesso aos recursos financeiros do casal deixam a mulher isolada e sem ter a quem recorrer. No website da fundação Purple Purse, os visitantes são convidados a assumir o papel da vítima em uma situação de violência doméstica durante uma experiência de realidade virtual chamada Trapped – Descubra por que vítimas de violência doméstica não podem sair de casa.

Nós decidimos fazer o teste. Assim que a experiência começa o visitante assume o papel de uma mulher de 33 anos que é dona de casa, tem filhos e é casada desde o final da faculdade. Nos últimos anos, o estresse do trabalho, segundo o texto, transformou o temperamento do parceiro de ciumento para controlador até que chegou ao ponto da agressão física. Ela já não se sente mais segura na própria casa. Neste momento, a pessoa pode escolher entre sair ou permanecer. Nós clicamos no botão que indicava a saída e prontamente surgiu a dúvida: para onde você vai? Uma das opções era família, e foi a que nós escolhemos. Em seguida, surgiu o seguinte texto: 65% das americanas não acreditam que sua família saberia se elas estivessem em um relacionamento financeiramente abusivo. A experiência continua e é aterrorizante.

Você pode ver como funciona aqui – apenas tenha cuidado, pois pode ativar gatilhos

Foto: Reprodução

“As pessoas acham que você pode simplesmente sair; que você pode simplesmente se levantar e ir. Não é sempre assim”, diz Susan, em um dos depoimentos disponíveis no site. “Nós ficamos juntos por dois anos e eu levei dois anos para me afastar dele. Não era claro para mim o quão profundo havia sido o abuso financeiro”, completou Krista. Mas para Ana a violência era muito clara. Ela já havia apanhado do namorado incontáveis vezes quando decidiu terminar a relação. Mas ele não aceitou. Além de espancá-la, recusava-se a sair do imóvel que ela tinha comprado sozinha, com muito esforço. Só o fez quando ela decidiu chamar a polícia, mais de um ano depois. Ainda assim, ele espreitava a casa à noite na tentativa de intimidá-la. Foram anos até que ela pôde sentar na sacada sem medo.

Maria também tinha receio de romper com aquele relacionamento, apesar das infidelidades e da ausência de demonstração de afeto para ela e as crianças. Ela tinha medo de não conseguir manter o padrão de vida e de prejudicar financeira e emocionalmente as filhas. E essa é, de fato, uma das principais preocupações das mulheres que sofrem com a violência patrimonial, elas tem medo de não conseguir pagar as contas, receiam passar por dificuldades extremas e sofrem com a possibilidade de não poder sustentar os próprios filhos.

A saída de um relacionamento abusivo não é simples nem rápida. Algumas mulheres não tem a quem recorrer, estão alienadas dos amigos e familiares e sem acesso a recursos financeiros. Há mulheres que não tem para onde ir. Há mulheres sem emprego, cuja única fonte de renda era o marido. Mesmo assim, a psicóloga Daniela Zanetti insiste que é preciso procurar ajuda profissional, antes de qualquer coisa. Se a mulher tiver condições financeiras, deve procurar um terapeuta. No caso de mulheres vulneráveis, a orientação é procurar ajuda de uma assistente social, que fará o encaminhamento adequado. “O psicólogo dará o apoio necessário para a mulher começar a reagir àquela situação”, garante Daniela Zanetti. A profissional explica que cada paciente tem suas particularidades, tanto no tempo para se dar conta dos danos provocados por uma relação tóxica quanto para recuperar a autoestima e independência emocional. “Depois desse fortalecimento é que podemos trabalhar, durante a terapia, em questões mais práticas.”

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

A psicóloga ressalta que o principal nesse momento de fragilidade é a mulher não ter vergonha de suas atitudes e decisões, caso tenha se afastado de amigos e familiares em função de um casamento que revelou-se abusivo. “Ter uma rede de apoio é fundamental para essas mulheres”. Passado o início desse processo de cura, a fundação Purple Purse ainda orienta que a mulher procure informações sobre educação financeira.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA

No caso de vítimas de violência doméstica, a educação financeira pode ser o passo definitivo para encerrar um ciclo de violência patrimonial que tem uma raiz profunda na sociedade patriarcal em que as mulheres não são educadas para lidar com o dinheiro. E é muito mais que planejamento. Consiste numa série de ações que tem por objetivo diminuir despesas, aumentar ganhos e, eventualmente, investir e acumular recursos. Ou seja, é um conjunto de práticas que minimizam os riscos no que diz respeito à situação financeira com escolhas conscientes e planejadas.

Com isso em mente, a educadora financeira Leila Ghiorzi e a advogada Gabriela Souza pensaram a oficina “Dinheiro também empodera: como o autocuidado financeiro pode proteger as mulheres da violência doméstica”, em Porto Alegre.

“Nós vivemos em uma sociedade muito machista e patriarcal e isso faz com que tenha, sim, uma bagagem diferente com relação aos gastos”,  disse Leila. Ao homem, cabe o fardo de ser o responsável pelo sustento de uma família, à mulher, cabe o fardo de ser submissa e dependente financeiramente. “Isso é construído socialmente. A questão de o homem ter que arcar com tudo vem de uma época em que a mulher não podia trabalhar e do mito que a mulher é interesseira. Essa é uma herança de quando a única forma de ascensão social da mulher era casar com um homem rico. Era a única forma, porque não podia sair da casa dos pais sem casar, não podia trabalhar, então era única a opção. Mesmo que isso significasse passar por certas humilhações e violências pra manter o casamento”, explicou. E, como vimos anteriormente, é fato que muitas relações ainda se sustentam porque, se o casal se separar, a mulher não tem como se sustentar financeiramente.

Isso não significa que as mulheres gastem mais, não há evidências que comprovem esse fantasia sustentada por muitos machões. Por outro lado, as mulheres pedem mais ajuda. E essa é uma porta importante para conectar a educação financeira à quebra do ciclo da violência doméstica.

Leila conta que já atendeu diversas mulheres que procuraram ajuda para organizar a vida financeira e que não percebiam que estavam sendo vítimas de violência patrimonial. E as situações eram as mais variadas, inclusive casos em que a mulher ganhava mais dinheiro mas era o companheiro quem gerenciava os recursos da casa – e não por uma opção dela. Na oficina, essa porta fica ainda mais aberta, pois é um espaço seguro de compartilhamento. “Acontece muito de alguém ouvir uma história e dizer: “Ah, eu já passei por isso e não tinha me dado conta que era violência.” Por isso a fundação Purple Purse recomenda que, após a ajuda psicológica, a educação financeira seja o primeiro passo para se livrar de uma relação abusiva e da violência patrimonial.

Mas não é um processo simples. Leila diz que não há um modelo estanque a ser seguido por todas as mulheres, até porque a violência patrimonial ocorre com mulheres de todas as classes, mas há alguns passos que por onde se pode começar. Primeiro a pessoa precisa procurar orientações sobre como reorganizar as finanças, fazer um mapeamento da própria condição e um levantamento dos danos. Se houver muitas dívidas, Leila sugere que se procure a Central de Mediação de superendividamentos, na Justiça Estadual. Depois disso, é possível tomar medidas mais simples. “É importante que a pessoa entenda que o dinheiro é limitado. Não dá pra fazer tudo. Então, tem que direcionar para aquilo que faz sentido. Por exemplo, não tem porque pagar tarifa bancária quando há bancos digitais com contas gratuitas”, explica Leila. Então, a primeira recomendação é procurar um banco que não cobre tarifas para a manutenção da conta. Além disso, seguindo uma recomendação da Purple Purse, é importante que essa conta seja individual, para que nenhuma outra pessoa tenha acesso. A seguir, é recomendado que faça um pente fino nas contas fixas. “Liga para as operadores, tenta reduzir as contas de internet, TV, celular, vê o que é preciso manter e o que não é. O segredo é identificar as áreas em que não faz sentido gastar”, explica Leila. Por fim, conforme as finanças forem se reorganizando, é importante guardar dinheiro para uma reserva de emergência. “O ideal é que se tenha, pelo menos, o suficiente para viver por três meses”.

Fonte: Leila Ghiorzi, educadora financeira / Purple Purse Foundation

A educação financeira não é, obviamente, a solução para todos os problemas. Especialmente em um país como o Brasil, em que muitas mulheres, além da violência, são acossadas pela desigualdade e pelo racismo, que também são formas de violência. Especialmente em um país em que o machismo ainda está entranhado nas relações sociais. Mas a ideia de entender a educação e a inclusão financeiras como ponto de partida para a transformação pode ser potente.

E Maria é um exemplo disso. “Eu posso estar mais apertada financeiramente por ter assumido mais despesas, mas estou muito mais feliz e tranquila. E as minhas filhas também. Consegui reduzir o que era supérfluo sem prejudicá-las.” Passados dois anos da separação, o apartamento dos sonhos é alvo de uma disputa extrajudicial e a pensão alimentícia das filhas ainda não foi acertada. “Todo mês, eu preciso negociar os valores a serem pagos. Percebo que é uma forma de tentar manter o antigo controle e poder, mas isso não me afeta mais. Espero conseguir passar o imóvel para o nome das minhas filhas. Ele já comprou outro apartamento, então lugar para morar não é um problema para ele.”

Ela também conseguiu se recuperar emocionalmente. Pouco depois da separação, começou um novo relacionamento. Um namoro em que o dinheiro não é o mais importante e em que as demonstrações de afeto e cuidado para ela e as filhas fazem parte do dia a dia. Olhando para trás, a sensação é de alívio. “A gente não sabe como pode terminar uma relação tão doentia, com uma pessoa que acha que pode comprar tudo, que considera o dinheiro mais importante do que o afeto.”

* Os nomes e profissão foram trocados a pedido das entrevistadas.

Foto de capa: Montagem / Geórgia Santos