Geórgia Santos

O dia da mentira

Geórgia Santos
1 de abril de 2019

Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram. 

O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos. 

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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico

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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia.  Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.

 

Algumas mentiras da ditadura

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1. “A ditadura no Brasil foi branda”

Convencionou-se chamar a Ditadura Militar brasileira de “ditabranda” porque, segundo as pessoas que se apoiam nesse termo, foi um regime menos cruel e sanguinário que outras ditaduras latino-americanas, como as instituídas na Argentina e Chile, por exemplo. O termo foi utilizado, inclusive, em editorial do jornal Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009. 

Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura. 

O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas. 

OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.

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2. “A educação era melhor”

Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).

Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.

Também com relação ao ensino superior os números da democracia são superiores. Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. No mesmo período, o número de matrículas cresceu 4,75 vezes.

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3. “A saúde funcionava”

Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.

O saneamento básico, fundamental quando o assunto é saúde, também era um problema.  No início da década de 1980, o percentual de lares com acesso à agua potável não chegava a 60%, agora, esse número está perto de 100%. 

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4. “Não havia corrupção no Brasil”

É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.

O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.

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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”

João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.

O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.

Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango. 

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6. “A população queria a ditadura”

Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava. 

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7. “O Brasil cresceu”

É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre. 

Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.

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Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.

Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.

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8. “Só morreram vagabundos”

Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenas  durante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.

Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.  Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.


OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.

 

Foto de capa original: Arquivo / Estadão Conteúdo

Geórgia Santos

Eu perguntei ao meu avô sobre a ditadura

Geórgia Santos
31 de março de 2019

Recomendaram-me perguntar ao meu avô sobre o período que se iniciou em 1964. Não foi diretamente. Eu li em um daqueles cards mequetrefes que se proliferam em redes sociais como larvas do mosquito da dengue em água parada. Em um deles, de tom esverdeado e bem sem graça, lia-se o seguinte:

“Não acredite no seu avô gente boa, honesto e trabalhador de 80 anos, que viu tudo acontecer antes, durante e depois de 64, e até hoje diz que foi ótimo! Acredite no seu professor maconheiro de história, de 35 anos formado na USP, que mora com a mãe e diz que foi horrível demais!”

Depois da provocação colegial, foi a vez de um dos filhos do excelentíssimo senhor presidente da República desafiar os cidadãos brasileiros. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) não apenas celebrou o 31 de março de 1964, data do golpe, como agradeceu aos militares.

“Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”

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Eu perguntei

Essa bobagem de mandar perguntar para o avô é apenas uma nova versão de negação da História, de negação da ciência. Ignora-se a factualidade, as evidências, os registros. Tudo vira subjetivo e, de repente, relega-se o fato à opinião. Mesmo assim, eu perguntei.

Meu avô, o seu Orozimbo, é um homem de 85 anos e muito simples, apesar de bastante vaidoso. A vida aconteceu e a educação formal foi pouca. O que não o impede de ser muito inteligente e, principalmente, consciente. O vô é um cara curioso, ele não gosta de não saber das coisas. Então ele pergunta, pergunta muito. Sobre a internet; sobre política; sobre novas formas de fazer jornalismo, para entender meu ofício; sobre minha tese de doutorado; sobre outros países; novas experiências. Mas ele também tem muito a contar.

Nunca viajou de avião, mas conta com orgulho de quando andou de helicóptero na época em que serviu ao Exército Brasileiro, no início dos anos 1950. Ele tem várias fotos daquele período em que ele parecia ser mais alto e, definitivamente, mais magro. Dos tempos em que era caminhoneiro e motorista de ônibus, sobram contos sobre todos os cantos desse país. Ele conhece o Brasil muito melhor do que qualquer outra pessoa da família que tenha milhas e milhas acumuladas em companhias aéreas. Com relação à política, nunca se encolheu, e a escolha pelo MDB desde muito cedo deixa isso bastante claro. Ainda assim, eu perguntei.

Mas não perguntei agora, sob o comando do projeto de capitãozinho. Havíamos conversado sobre isso há muitos anos e tocamos no assunto de novo no período da eleição. Eu disse a ele que o candidato que liderava as pesquisas dizia que a Ditadura tinha sido boa.

“E tem gente que acha bonito, vô. Tem gente dizendo que a Ditadura tinha que voltar.” [Ele fez uma careta estranha, meio que duvidando.]

“É verdade, pergunta pra mãe. Esse cara diz que a época da Ditadura era melhor e as pessoas acham que é verdade.” [Ele olhou pra minha mãe, que estava preparando a salada de batata com maionese para o churrasco de domingo. Ela assentiu e disse, “é verdade, pai.”]

“Tô te falando. Na verdade agora eles tão dizendo que não tinha Ditadura, que os militares salvaram o Brasil, que tudo naquela época era melhor.”

Foi quando ele disse

“Olha, a minha vida era boa, eu não tinha nenhum problema, mas também não tenho agora se tu for olhar. Mas não era assim pra todo mundo. Pergunta pro [nome da pessoa] como era, das vezes em que ele apanhou ou que não deixavam ele fazer reunião. E isso que eu tô falando de cidade pequena. Imagina em cidade grande. Não se podia falar contra. Nada, nada, nada. Quem falava, pagava. Só que as pessoas fingem que era tudo normal. Elas esquecem que tem coisas que a gente não mistura. Exército é Exército, política é política. E lugar do Exército não é no governo. Tudo tem seu lugar. Eu não tinha problema, mas não é porque não aconteceu nada comigo que tava tudo certo. As coisas não são assim, é errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.”

Como eu disse, meu avô é um homem simples e isso se expressa na forma como ele falou daquele período. Mas nada poderia ser mais cristalino. Não se podia falar nada contra. Lugar do Exército não é no governo. É errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode. 


Na última segunda-feira (25), o general Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência da República, informou que Jair Bolsonaro havia determinado “comemorações devidas” no dia 31 de março, data em que se iniciou o golpe em 1964. Dois dias depois, mudou o tom e disse que a ideia era “rememorar”, não comemorar. Bolsonaro mudou o tom, mas as comemorações entusiasmadas dos filhos dão o tom da celebração. Além disso, vídeo apócrifo que nega o golpe de 64 foi distribuído em canal de comunicação do Planalto. A Secretaria de Imprensa diz que o governo não produziu o material e nem sabe quem o fez, mas distribuiu mesmo assim.

A iniciativa não tem precedentes na América Latina. Na Argentina, o dia 24 de março é feriado, mas dedicado a lembrar e celebrar as vítimas da Ditadura civil-militar (1976-1983). O Dia da Lembrança pela Verdade e a Justiça reúne, todos os anos, manifestações contra um dos regimes mais sangrentos do período. No Chile, o dia 11 de setembro marca o golpe do General Augusto Pinochet e o bombardeio do Palácio de La Moneda, que deu início à Ditadura (1973-1990) e culminou com a morte do então presidente, Salvador Allende. Não é feriado, mas as escolas tem jornada reduzida e há homenagens. Mas não à Pinochet. Há entrega de flores em homenagem a Allende. No Paraguai, ninguém ousa celebrar o início da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) no dia 4 de maio. Recentemente, o ditador paraguaio, conhecido pela crueldade e, inclusive, acusações de pedofilia, foi elogiado por Bolsonaro, que o chamou de “homem de visão, um estadista”. No Uruguai, o dia 27 de junho é reservado para a memória das vítimas da Ditadura (1973-1985) do país. No Brasil, vivemos presos a um delírio coletivo provocado por amnésia recente. Só pode. Porque segundo meu avô gente boa, honesto e de 80 anos, a ditadura não era boa.