Voos Literários

#ditaduranuncamais

Flávia Cunha
2 de abril de 2019

Há 55 anos, o Brasil ingressava em um período cruel de sua história, com os militares tomando o poder à força, com tanques nas ruas e apoio de parte da classe média e alta e da grande mídia. A partir de 1º de abril de 1964, iniciou-se um período de exceção no Brasil, com a cassação de direitos políticos de opositores; restrição de liberdades individuais; censura às artes e aos meios de comunicação; e uma série de outras medidas autoritárias, inclusive prisões extrajudiciais, o fim do habeas corpus, tortura, assassinatos e desaparecimentos . A tortura de militantes de esquerda durante a Ditadura é fato histórico. Afinal, os métodos utilizados pelos militares para silenciar quem se opusesse ao regime estão fartamente documentados e estudados pelo meio acadêmico.

Porém, nesses tempos de pós-verdade e fake news, temos parte da sociedade tentando encobrir e reinventar o passado

Querem até tornar o dia do golpe militar em uma data festiva, como se houvesse realmente algo a ser comemorado.  Nesse cenário, o Vós e a coluna Voos Literários aderem à campanha #ditaduranuncamais. Em momentos como esse, mais do que nunca, é preciso honrar a História e a memória para evitar que atrocidades como a Ditadura Militar voltem a acontecer. Por isso, além das manifestações nas ruas, foram compartilhadas nas redes sociais livros e filmes com relatos sobre os 21 anos sem civis no poder no país, entre 1964 e 1985. 

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Um homem torturado, um homem morto

Destaco aqui o livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar. A investigação feita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles conta a trajetória de Frei Tito, um religioso que preferiu combater a ditadura com a força das ideias e da justiça social. “Na Universidade de São Paulo, onde participava ativamente do movimento estudantil, Tito chegou a ter momentos de dúvida e de incerteza sobre a possibilidade de conciliar Marx e Cristo. Assim como Tito, outros frades foram encarcerados porque eram considerados  ‘terroristas’ por terem feito a ‘opção preferencial pelos pobres’ pregada pelo Concílio Vaticano II. Eram ‘subversivos’ por praticarem um Evangelho que tenta transformar o mundo. Eram ‘perigosos’ porque pregavam a liberdade e a igualdade. O ‘ópio do povo’ estava do outro lado, do lado da Igreja conservadora que não entendia aquele combate.”

Frei Tito foi preso, junto com outros religiosos, dentro do convento em que achava que sempre teria segurança. Os militares queriam Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), e usaram os frades para isso. Ele foi levado algemado para a prisão, na madrugada de 4 novembro de 1969:

Eram três horas da manhã. O provincial trocou de roupa diante de um policial armado, com a metralhadora apontada. Ao descer as escadas, viu frei Tito descendo já algemado, ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este cercara o prédio de madrugada, dando início à “Operação Batina Branca”, que consistia na invasão do Convento das Perdizes e na prisão dos dominicanos. No claustro, o policial fez o provincial aguardar por alguns minutos, encostado na parede, de mãos para trás. Fleury deu ordem aos policiais para colocarem frei Tito no camburão dos presos. Frei Domingos foi no carro do delegado, juntamente com frei Edson. Receberam ordem de sentar-se no banco traseiro da viatura, entre dois policiais armados de metralhadoras. Fleury foi no banco da frente, ao lado do motorista. Além de Tito, foram levados o dominicano italiano Giorgio Callegari e frei Sérgio Lobo.

Ao prender Tito, Fleury lhe disse: — Com gente da tua estirpe não temos piedade nenhuma. Somos pagos para isso. Sabemos que você tem muito para contar. Se não quiser falar, será pior. Te torturaremos. No Deops, o delegado havia enfileirado todos os presos num corredor. Frei Domingos só reconheceu frei Ivo Lesbaupin pela camisa. O rosto estava totalmente deformado pela tortura. 

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Batismo de Sangue

A história também está contada no livro de memórias Frei Betto, um dos frades da Ordem dos Dominicanos presos na mesma operação. Batismo de Sangue – que também virou filme, dirigido por Helvécio Ratton (2006) – é um dos relatos mais importantes e tocantes sobre os horrores da ditadura e conta a história dos Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo. Todos foram terrivelmente torturados, mas o caso do Frei Tito é o mais emblemático e revoltante:

Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. […] Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia obre o cimento frio e sujo. […] Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria agüentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

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Frei Tito nunca se recuperou 

Frei Tito não morreu naquele momento, mas também não sobreviveu. Além das marcas deixadas pela tortura física, as feridas emocionais sofridas nunca foram curadas. Cinco anos depois, já exilado na França, ele foi encontrado morto. A causa apontada foi suicídio.  Sobre seu destino, escreveu o psquiatra Jean-Claude Rolland, em trecho do  livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar:

Tito de Alencar foi submetido a torturas de tal forma cruéis, não somente do ponto de vista físico, mas também no nível psíquico, foi tão humilhado, que algo nele estava efetivamente morto. Na aparência, ele estava vivo, mas de fato era apenas um sobrevivente. Não há dúvida de que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas”

Por esse e muitos outros motivos: Ditadura Nunca Mais! Tortura Nunca Mais!

Geórgia Santos

O dia da mentira

Geórgia Santos
1 de abril de 2019

Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram. 

O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos. 

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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico

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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia.  Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.

 

Algumas mentiras da ditadura

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1. “A ditadura no Brasil foi branda”

Convencionou-se chamar a Ditadura Militar brasileira de “ditabranda” porque, segundo as pessoas que se apoiam nesse termo, foi um regime menos cruel e sanguinário que outras ditaduras latino-americanas, como as instituídas na Argentina e Chile, por exemplo. O termo foi utilizado, inclusive, em editorial do jornal Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009. 

Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura. 

O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas. 

OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.

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2. “A educação era melhor”

Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).

Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.

Também com relação ao ensino superior os números da democracia são superiores. Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. No mesmo período, o número de matrículas cresceu 4,75 vezes.

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3. “A saúde funcionava”

Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.

O saneamento básico, fundamental quando o assunto é saúde, também era um problema.  No início da década de 1980, o percentual de lares com acesso à agua potável não chegava a 60%, agora, esse número está perto de 100%. 

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4. “Não havia corrupção no Brasil”

É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.

O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.

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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”

João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.

O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.

Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango. 

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6. “A população queria a ditadura”

Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava. 

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7. “O Brasil cresceu”

É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre. 

Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.

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Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.

Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.

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8. “Só morreram vagabundos”

Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenas  durante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.

Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.  Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.


OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.

 

Foto de capa original: Arquivo / Estadão Conteúdo