Igor Natusch

Um STF amigo do rei não é capaz de proteger a democracia

Igor Natusch
14 de março de 2018

Ninguém precisa simpatizar com o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para concordar com ele sobre o patético encontro da presidente do STF, Cármen Lúcia, com o presidente da República, Michel Temer. Segundo ele, o papo informal entre ambos, ocorrido no último final de semana, causa “perplexidade“. Está certo: é de deixar qualquer um perplexo, mesmo.

Claro que os nomes máximos do Executivo e do Judiciário podem (muitas vezes devem) se encontrar para discutir questões de interesse nacional. Mesmo que o presidente tenha contra si acusações graves e enfrente uma inédita quebra de sigilo bancário durante o mandato, ele ainda é o presidente e tem obrigações que exigem uma interlocução com o Supremo.

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O que não dá para engolir é que isso seja feito sem a liturgia que um encontro entre poderes exige – e que se mostra ainda mais indispensável em uma situação de incerteza profunda sobre os rumos da nação.

 

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Quem não gostaria de sentar na sala de estar da ministra Cármen Lúcia e discutir questões de seu interesse em um ambiente informal, talvez desfrutando de café recém-passado e bolinhos de chuva? Terão os advogados do ex-presidente Lula, que tanto pleiteiam uma definição sobre o cumprimento de penas em segunda instância, a perspectiva de uma acolhida tão calorosa? A Sepúlveda Pertence, integrante da defesa de Lula e igualmente interessado nos desdobramentos na alta corte, Cármen Lúcia dedicou a formalidade de um encontro de gabinete, ao final de uma manhã de meio de semana, sem salamaleques ou intimidades exageradas.

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Está totalmente correta, é claro. Errada esteve antes, ao aparecer sorridente ao lado de Michel Temer dentro da própria casa.

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Aliás, a insistência de Cármen Lúcia em não pautar a resolução sobre o imbróglio em torno do cumprimento de penas de segunda instância merece um parênteses. Finge firmeza, a ministra, ao dizer que não se dobra a pressões, que evita um comportamento casuístico. Não é igualmente casuístico deixar de discutir uma questão absolutamente central para a segurança jurídica do País, apenas para não causar a impressão de estar favorecendo uma figura pública? Não será preocupante (para não dizer catastrófico) deixar uma incerteza dessas pendendo sobre todos, manter um cenário onde ninguém sabe direito se o condenado em segunda instância ainda pode recorrer em liberdade ou não, apenas porque se quer bancar o jogo do sério com os defensores do pré-candidato?

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Não é firmeza: é teimosia, e talvez possa ser coisa pior. Coloca o Brasil em uma panela de pressão, de forma perigosa e potencialmente insustentável.

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Quando a presidente do STF recebe o mandatário da Nação em sua casa, fora do horário de expediente, para um dedo de prosa a portas fechadas, está passando um recado horroroso para os brasileiros. E está reforçando a leitura coletiva de que o Supremo é um clube de amigos, severo apenas com os que estão do lado de fora, caloroso e sorridente com os integrantes de seu círculo de poder. Ou alguém é ingênuo ao ponto de achar que a troca de ideias entre Cármen e Temer tratou somente da intervenção no Rio e da situação dos presídios, sem entrar no tema do inquérito sobre as propinas da Odebrecht, que envolve diretamente o presidente?

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Se os temas eram formais e republicanos, o que impedia a discussão durante o expediente? Ou será que a agenda da presidente do Supremo é cheia de coisas mais importantes do que conversar com o líder do Executivo, ou vice-versa?

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Uma alta corte que, de guardiã da Constituição, transformou-se em editora e reescritora da mesma, ao ponto de abrir margem para coisas juridicamente complicadíssimas, como achar que trânsito em julgado pode acontecer antes de todas as esferas recursais estarem esgotadas. Um STF que, ao invés de ser uma constância em tempos difíceis, transformou-se em ator da crise, em uma força que intensifica conflitos e amplia a sensação geral de incerteza e desalento. Uma casa que julga para um diferente do que julga para outro, ao ponto de submeter a própria Cármen Lúcia a um dos momentos mais vexatórios de sua carreira jurídica, que vai à imprensa antecipar juízos e opinar sobre questões em aberto sem constrangimento, que reveza a agilidade de um puma com a lerdeza de um caramujo dependendo de quem está na berlinda.

Quem poderá, diante de semelhante lista de problemas, dizer que o STF é confiável, que sobre os seus não paira dúvida, que é possível contar com ele para ser a rocha sólida em tempos de caótica fluidez? E que democracia poderá sobreviver quando não se confia naquela que deveria ser a voz serena, que se faz ouvir apenas quando tudo o mais fraqueja, que protege a lei maior como bem mais precioso? O que nos resta quando o STF não se constrange em aparecer como amigo do rei, colocando a estabilidade e a própria Justiça em risco?

Foi nesse cenário, e em nenhum outro, que Cármen Lúcia acenou sorridente ao lado de Michel Temer no fim de semana. Pelo jeito, até os ateus terão que pedir que Deus proteja o Brasil, porque essa tarefa o STF não dá pinta de que vá cumprir.

Foto: TV Globo/Reprodução