Voos Literários

Caio F. e a epidemia silenciosa de Aids em 2019

Flávia Cunha
6 de dezembro de 2019

Entre os galhos da mangueira carregada espio a lua minguante sobre a Guanabara, lobiswoman esfaimada na curva das tormentas. Fumo além da conta, tenho umas febres suspeitas, certos suores à noite, muito além deste verão sem fim. Uns gânglios, umas  fraquezas, sapinhos na boca toda, será? Tenho lido coisas por aí, dizem, sei lá. Não duro muito, acho.”

Li esse trecho do conto Noites de Santa Tereza, do livro Ovelhas Negras, com a voz embargada, pela emoção e um pouco de vergonha, para cerca de 50 pessoas que participavam junto comigo do 1 Caio F Walking Tour. Minha modesta intenção com a leitura do trecho era conectar a obra do autor com um dos objetivos do evento: alertar para a epidemia silenciosa de Aids em Porto Alegre. Especialistas apontam que a geração atual, ao contrário da de Caio Fernando Abreu, pouco se preocupa com o vírus HIV. O escritor, como mostra esse conto datado de 1983, já estava alerta para a doença, mesmo que seu diagnóstico positivo tenha acontecido muitos anos depois. 

Precisamos falar sobre Aids em pleno século 21, porque a capital gaúcha ocupa atualmente o primeiro lugar no número de mortes pela doença no Brasil. e o segundo lugar no número de casos de Aids no Brasil (31,8 a cada 100 mil habitantes). Confira mais informações sobre a campanha Aids é Fato aqui.

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Para lembrar Caio F., com amor e engajamento social

O autor, que sempre dizia que queria ser amado pelo que tinha escrito, recebeu muito amor durante a caminhada pelas ruas da cidade que gostava de chamar de Gay Port. O evento, promovido pela ONG Minha Porto Alegre, pelo Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) e Fórum Ong Aids do Rio Grande do Sul, teve uma curadoria cuidadosa tanto na seleção de textos quanto nos locais escolhidos para as paradas de leitura dos trechos e explicações das relações de Caio F. com determinadas ruas e locais da capital do Rio Grande do Sul. 

O ponto de encontro foi a Livraria Baleia, no centro histórico, onde Amanda Costa, astróloga e amiga do escritor, recordou como conheceu Caio e falou, com propriedade, sobre a presença da astrologia em seus textos. Amanda publicou o livro 360 Graus: inventário astrológico de Caio Fernando Abreu, uma excelente leitura para quer desvendar a obra do escritor em profundidade. De lá, saímos em uma caminhada em direção ao Teatro de Arena, onde a designer Zi Bonotto, da Minha Porto Alegre, começou a conduzir a atividade. Nesse ponto, ela lembrou a trajetória de Caio como ator e dramaturgo. Na Esquina Maldita, ponto próximo ao campus central da UFRGS, foi abordada a relação de Caio com os bares do local, muito frequentado por estudantes, classe artística e militantes políticos na década de 70. 

No Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, falou-se das saudades que ele tinha dos plátanos do parque quando estava morando em São Paulo. Onde era o Cine Baltimore, foi destacada a relação do autor com o cinema, presente em sua obra, em citações diretas a filmes e na construção dos enredos, criados como um roteiro de filme, com as locações cuidadosamente analisadas e citadas.

Sobre a relação de Caio com a boemia do bairro Bom Fim, Amanda Costa recordou do conto O Rapaz Mais Triste do Mundo que, de acordo com ela, passa-se no Lola, um dos bares mais emblemáticos da Avenida Osvaldo Aranha na década de 80/90. O conto foi publicado no livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso:

O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas – à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo – pelo balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e espio, ele se movimenta – magro, curvo, molhado – entre as pessoas enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora vestido de cinza, ele parece todo branco. O homem pede uma cerveja no balcão, depois se perde outra vez no meio das gentes.”

Leia o conto completo aqui

Para completar a caminhada em homenagem à Caio Fernando Abreu, o ponto final foi o café Piperita, na rua João Telles, próximo ao Ocidente, bar representativo da boemia dos anos 80 que Caio fez parte. Lá, Amanda Costa falou mais um pouco sobre o amigo e, para finalizar a homenagem, a atriz Deborah Finocchiaro fez a leitura dramática de dois textos do escritor. Também foi feito no local um alerta: o conservadorismo do atual governo está fazendo com que retorne-se ao velho preconceito e o estigma para os portadores de HIV.

Deborah escolheu para homenagear o escritor o texto Zero Grau de Libra (confira o texto completo aqui) e também a crônica Verão de Julho, publicada no livro A Vida Gritando nos CantosO texto é um sopro de otimismo ao recomendar que “a partir deste ano (sem graça) de 87, fica decretado que todo mês de julho (mas pode ser junho, agosto, pode ser sempre, quando as almas andarem escuras e as pessoas não se amarem mais) haverá dez ou quinze dias de sol (dependendo do peso da barra a ser aliviado) e luz para que todos enlouqueçam um pouco de prazer.”

E prossegue:

[…] o vírus da Aids será enjaulado, permitidas as paixões devastadoras, os suspiros amorosos, permitidos os amassos, as paqueras e todas as suas consequências – desde que gostosas. Aconselhável vadiar pelas praças, respirar o cheiro de pipoca das esquinas, olhar vitrines, acreditar em Deus, sorrir para desconhecidos, acender todas as luzes da casa à noite.[…] Dançar valsa e rock and roll, andar de bicicleta, pular corda, girar o bambolê, procurar ovnis no céu, alimentar cachorros vagabundos. Tudo isso e muito mais será permitido e recomendável nesses dias em que palavras como crise, inflação e recessão serão sumariamente riscadas dos dicionários, bem como demitidos seus proferidores. Votar para presidente é permitido. 

Serão assim os verões de julho, de agora em diante. Que fique registrado em ata, Que se cumpra, que dure dentro e fora de cada um. Amém. “

Desejo ao leitores um lindo verão, que pode ser quando nossos corações precisarem, com a benção de Caio F. Mas sigamos enfrentativos, como ele gostava de dizer, para que a prevenção à Aids seja divulgada – educação sexual é importante para que o uso do preservativo seja natural desde o início da vida sexual de todos – e também para repudiar o preconceito com quem é HIV positivo. Sigamos na luta, porque o conservadorismo não pode vencer!

Fotos: Reprodução/Facebook

 

 

 

Voos Literários

Mês Caio F. – A herança maldita da Ditadura

Flávia Cunha
5 de fevereiro de 2019

A coluna Voos Literários fará de fevereiro um mês para reverenciar o legado do escritor, jornalista e dramaturgo Caio Fernando Abreu. Gaúcho com projeção nacional e internacional (com edições especiais de seus livros para pelo menos 18 países além do Brasil), Caio F. como gostava de assinar em suas correspondências pessoais, partiu desse plano no já distante 25 de fevereiro de 1996. Escritor e cronista que acompanhava o seu tempo mas com o talento de mostrar-se eterno em suas reflexões, a obra de Caio é um prato cheio para podermos fazer comparações com o momento atual.

Se vivo fosse, não seria difícil imaginarmos como seus textos seriam enfrentativos (termo que ele gostava muito de usar) em relação à conjuntura sociopolítica brasileira do século XXI, com tanto conservadorismo, caretice e hipocrisia no ar.

Mas ao invés desse exercício de “acheologia”, prefiro mergulhar em um texto de Caio F. escrito na retomada do período democrático, após a ditadura militar que durou de 1964 a 1985. No panorama atual, em que figuras importantes do governo federal defendem cada vez mais sem pudores o revisionismo histórico em relação ao golpe militar, é importante analisarmos com cuidado o teor da crônica Um Prato de Lentilhas, que integra a excelente coletânea A Vida Gritando nos Cantos.

No texto publicado originalmente pelo Estado de São Paulo em 18 de fevereiro de 1987, o Caio-cronista faz um apelo aos governantes para que prestem atenção na situação crítica enfrentada pelo povo naquele período:

[…] Senhores comandantes desta coisa pobre, louca, doente e suja que nem sei mais se pode se chamar ‘Brasil’, vossas excelências sabem o que anda acontecendo nessa terra? Parece que não. Os senhores nunca andam nas ruas? Não veem a cara das pessoas? […] Está escrito na cara dessas pessoas brasileiras que elas não têm um futuro, não têm onde morar. [….] Em qualquer país decente (eu disse decente), um ser humano já nasce com sua segurança garantida, é só viver. Aqui, a gente tem que arrancar – no braço, no dia a dia, o mínimo essencial para não morrer. […] Suponho que alguém (alguns) deve ser responsável pelo que acontece na vida prática do povo, na vida objetiva material. São os senhores? Então eu to cobrando meus direitos. Porque não tá dando nem pra comer, nem pra vestir, nem pra morar, e muito menos pra sonhar. […] E não venham nos pedir paciência. Estamos muito machucados, muito explorados e enganados pra ter essa coisa mansa chamada paciência Era Brecht que dizia: ‘Trazei primeiro um prato de lentilhas/ porque moral somente após comer.’ […] Quero meu futuro. Quero meus sonhos. […] Pra quem – desde que roubaram a minha juventude em 1964 –  eu posso reclamar?”

Após a leitura desse trecho da crônica, você aí pode argumentar: mas Caio Fernando Abreu estava se referindo ao governo Sarney, não tem nada a ver com a ditadura militar… Porém, assim como muitos atribuem a crise financeira enfrentada por Temer pós-impeachment de Dilma e agora por Bolsonaro à “culpa do PT, herança do PT”, como não pensar que o mesmo ocorreu a partir de 1985 com a saída dos militares do poder? O Brasil não era uma potência econômica com governantes fardados e virou um caos financeiro imediatamente após a entrada dos civis no governo. Por mais que os revisionistas de plantão tentem negar, a ditadura militar deixou como herança não apenas um rastro de tortura e censura, mas também uma dívida grande que foi enfiada goela abaixo dos brasileiros junto com a sonhada democracia. Meu conselho para quem encontrar pelo caminho alguma viúva da ditadura é mostrar textos como esse de Caio F., em que a desilusão pós-regime militar é palpável e inegável.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários analisará o teor contemporâneo do mais cultuado livro de Caio F., Morangos Mofados.  

Foto: Reprodução/Internet