Voos Literários

Mês Caio F. – Um arco-íris em meio a dias nublados

Flávia Cunha
19 de fevereiro de 2019

Fevereiro é mês de homenagem da coluna Voos Literários ao escritor e jornalista Caio Fernando Abreu. Já abordamos Caio F. como cronista e contista. A obra do Caio dramaturgo talvez não seja tão pop nas redes sociais mas representa uma parte significativa de seu legado. O autor tinha uma relação muito íntima com o teatro, tendo chegado a frequentar – sem concluir – o curso de Artes Dramáticas da UFRGS (o mesmo aconteceu com a faculdade de Letras).

Ainda muito jovem, Caio F. chegou a atuar nos palcos e tinha uma relação muito próxima com diretores, atores e grupos teatrais. Por isso, nada mais natural que seus textos fossem encenados em diferentes ocasiões. Caio escreveu predominantemente para o público adulto mas me deterei em um texto aparentemente ingênuo destinado às crianças: A Comunidade do Arco-Íris.

O espetáculo estreou em Porto Alegre em 1979, sob direção de Suzanha Saldanha. A Comunidade do Arco-Íris é um refúgio para a Sereia, a Bruxa de Pano, o Soldadinho, a Bailarina, o Mágico e Roque, um guitarrista de rock n’roll. Todos vivem em harmonia nesse local idílico em meio à Natureza.

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Apesar de ter passado a vida garantindo não gostar de crianças (a quem chamava de “crionças”), Caio conseguiu abordar com habilidade para o público infantil assuntos complexos como ecologia, democracia e guerra, inserindo-os dentro da trama de forma convincente.

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Um exemplo dessas sacadas do autor em fazer conexões da fantasia com o mundo real é o momento dos personagens  explicarem porque resolveram morar na Comunidade. A Sereia aproveita para fazer uma crítica à falta de cuidado de empresas com o descarte de resíduos no meio ambiente:

– Eu estava cansada da poluição. Vocês sabem, essas indústrias e fábricas que vivem derramando porcarias nos rios e mares. Os meus primos peixes, coitados, estavam morrendo todos. Eu vivia suja de óleo. […] Agora, aqui, moro numa lagoa limpinha e sem poluição nenhuma.”

O Soldadinho justifica sua saída do Reino dos Homens por preferir a paz:

– Porque eu não tinha vocação nenhuma pra guerra. E lá tem guerra o tempo todo. Bombas, tanques, as pessoas se matando, um horror. O meu sonho era ser jardineiro. Aqui eu posso ter meu regador e molhar as flores todos os dias. Melhor do que ficar matando gente por aí, não é?”

Outro momento do enredo em que Caio F. aproveita para abordar cidadania com a criançada é depois da confusão provocada pela chegada ao local de 3 agitados macacos, que pedem para morar na Comunidade, porque não aguentam mais a bagunça da cidade. Os moradores da Comunidade do Arco-Íris demoram para chegar a um consenso, até surgir uma ideia:

 

SOLDADINHO – Desculpe, mas tenho uma solução democrática.

BRUXA – Demo o quê?

SOLDADINHO – De-mo-crá-ti-ca. Todo mundo tem direito de dar sua opinião. A maioria vence. Vamos votar?

OS TRÊS [macacos] – Isso mesmo! Democracia, queremos a democracia!

MÁGICO – Acho que é a solução mais honesta.”

A sugestão, banal para nossos olhos do século 21, pode ser vista como um pouco subversiva, já que em 1979 ainda estávamos vivendo sob um regime ditatorial no Brasil e nem todos os adultos achavam que a democracia era “a solução mais honesta” para o país.

A Comunidade do Arco-Íris tem uma reviravolta interessante em seu desfecho, mas não vou estragar a surpresa para quem ficou interessado em sua leitura. A obra foi lançada recentemente em uma versão ilustrada mas também pode ser lida também no livro Teatro Completo.

De 1979 até os dias atuais, o texto para teatro infantil de Caio F. ganhou diversas montagens, demonstrando a importância das temáticas abordadas. E também, o quão pouco evoluímos, por exemplo, no descaso de empresas com o meio ambiente (vide o descaso da Vale que resultou na tragédia de Brumadinho, só para ficar no episódio mais recente). E a democracia, exaltada pelos moradores da Comunidade do Arco-Íris, vem sendo constantemente ameaçada em pleno 2019, com muitos militantes dos direitos humanos tendo que autoexilar-se, com medo de serem mortos como Marielle Franco. Em momentos de desesperança, resta-nos a aposta nas futuras gerações. E é por isso que textos como esse de Caio F. são indicados sem moderação para a criançada.

Para fechar o mês de homenagens a Caio Fernando Abreu, na semana que vem recordaremos um dos hábitos mais célebres do autor: a escrita de cartas para amigos e familiares.

Foto: Darren Lewis / Public Domain Pictures

 

Voos Literários

Mês Caio F. – Sobrevivendo ao mofo

Flávia Cunha
12 de fevereiro de 2019

Em fevereiro, a coluna Voos Literários está prestando uma homenagem ao escritor Caio Fernando Abreu, falecido em fevereiro de 1996. No primeiro texto, abordamos Caio F. como cronista. Porém, é impossível dissociar o autor do legado deixado por seus contos, em especial do livro Morangos Mofados, lançado em 1982. O nome da obra é uma referência a Strawberry Fields Forever, dos Beatles.

O livro é dividido em 3 partes, O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados (o conto-título em que um personagem solitário acredita ter uma doença grave, por sentir na boca um gosto acentuado da fruta mofada).

Um dos textos essenciais dentro desse livro é Os Sobreviventes, a história de dois ex-militantes do combate à ditadura militar no Brasil.

A partir do relato da personagem feminina, vemos todo o sonho de uma geração de jovens idealistas que tiveram que adaptar-se ao “sistema” para, assim, sobreviver.   Uma das primeiras pessoas a perceberem a qualidade literária da obra foi  a crítica literária e escritora Heloísa Buarque de Hollanda. O artigo Hoje Não é Dia de Rock publicado no Jornal do Brasil ainda na época do lançamento de Morangos Mofados foi tão emblemático que posteriormente foi incorporado a muitas reedições do livro.   No trecho abaixo, Heloísa destaca a importância do conto Os Sobreviventes dentro do conjunto de contos:

 Não há dúvida de que Caio fala da crise da contracultura como projeto existencial e político. […] Mas, insisto, a originalidade do seu relato nasce do partido que toma como autor e personagem. Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de “sobreviventes” (que dão nome ao conto-chave do livro). Aqueles sobreviventes “vagamente sagrados” de Marx, Marcuse, Reich, Castañeda, Laing: “Bolsas na Sorbonne, chás com Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun, little darling-, 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa sem conseguir engolir nem cuspir fora este gosto azedo na boca”.

 

A maior ironia talvez seja que nós, leitores brasileiros do século 21, estejamos, como os personagens do conto, tendo que lidar com militares no poder (ainda que agora seja pela via democrática das eleições). Como não ter um desencanto pelo momento atual? Como ter forças para seguir em frente?

Caio F. em sua sabedoria da década de 1980 de Os Sobreviventes, nos ensina:

[…] te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza […]”

Caio, tentaremos por aqui sobreviver da melhor forma possível. E seguiremos tentando lutar, com uma fé gigante em um futuro com mais Arte e menos armas.

Na semana que vem, a coluna Voos Literários fará um resgate de Caio Fernando Abreu como dramaturgo, a partir da análise de A Comunidade do Arco-Íris, uma peça teatral infantil com abordagem ecológica.