Voos Literários

Motociatas, o conservadorismo brasileiro sobre rodas

Flávia Cunha
13 de julho de 2021

Motociatas parecem ser o fenômeno bolsonarista de 2021. Já é a quinta vez que o presidente sem partido Jair Bolsonaro usa desse recurso: a convocação de integrantes de motoclubes para passeios exibicionistas. No último final de semana, a motociata foi realizada em Porto Alegre, cidade de onde escrevo esse texto. E, talvez pela proximidade geográfica com tamanha estupidez,  esta manifestação sobre rodas me entristeceu mais do que as outras.

Pensando de forma racional, a adesão ao ato em apoio a Bolsonaro foi ínfima, se comparada a manifestações de repúdio ao presidente. Porém, a verdade é que depois de tantas denúncias de irregularidades na condução da pandemia, parece um contrassenso que ainda existam pessoas demonstrando apoio a este governo. E por quê motociclistas estariam dispostos a isso?

O histórico do motoqueiro rebelde

Para começo de conversa, os apoiadores de Bolsonaro pertencem a associações, os chamados motoclubes. Esses grupos estabeleceram-se com mais força no Brasil em 1980 e 1990, muitas décadas depois de o motociclismo ter se consolidado nos Estados Unidos. Porém, foi a ficção a responsável por reforçar, no imaginário popular, a figura do motociclista como um rebelde em busca de liberdade e de uma vida fora dos padrões. Além disso, alguns episódios de violência também contribuíram para marginalizar o movimento. Olhando a superfície, parece não haver uma relação entre quem usa a moto como um estilo de vida e o bolsonarismo, tão imbuído de conservadorismo e falsa moral.

Masculinidade hegemônica

Mas, ao pesquisarmos o comportamento da maioria dos integrantes dos motoclubes brasileiros, passamos a entender melhor a existência das motociatas pró-Bolsonaro. No livro Isso é coisa pra macho – Masculinidades e Encontros Motociclísticos, o mestre em Antropologia Social Kleber Lopes da Silva reflete sobre os modelos conservadores presentes nos motoclubes mais tradicionais, citados em seu texto como “M.C.”:

“Estes modelos abarcam em sua essência comportamentos que ditam o conservador e o tradicional pautados em uma masculindade heteronormativa, a valorização de atributos socialmente reconhecidos como masculinos, como a racionalidade, a virilidade e mesmo a violência, são performatizados o tempo todo, base conceitual para composição dos M.C. tradicionais e para a maioria dos encontros de motociclistas. Os semblantes fechados, os braços cruzados, sempre em pé com olhares desconfiados, fazem parte dos comportamentos, principalmente, dos integrantes dos M.C. tradicionais que frequentam os encontros.” 

Bolsonarismo e Fascismo

Além disso, não podemos deixar de destacar o simbolismo fascista do uso de motos em manifestações políticas. Sem dúvida, o mais famoso ícone do conservadorismo sobre rodas é Benito Mussolini. Dentro dessa perspectiva, um livro que nos ajuda a entender esta relação é A linguagem fascista, de Carlos Piovezani e Emilio Gentile. Na obra, são comparados os discursos de Mussolini e Bolsonaro, contextualizados aos cenários políticos da Itália e do Brasil, com a devida perspectiva histórica.

 Já o livro Bolsonarismo: teoria e prática, organizado por Carlos Savio Teixeira e Geraldo Tadeu Monteiro, destaca a relação entre Bolsonaro e Donald Trump. Vale lembrar que o ex-presidente norte-americano contou com o apoio de motociclistas conservadores desde sua posse.

Motoboys antifascistas

Por fim, é importante assinalar a diferença entre os motociclistas apoiadores de Bolsonaro e os motoboys. Ao contrário de quem usa motos de luxo para passeio, os trabalhadores são, em sua maioria, contrários ao governo. Já abordamos o tema nesta coluna aqui

Para demonstrar essa diferença de alinhamento ideológico, uma ação alternativa foi realizada em Porto Alegre durante o ato pró-Bolsonaro. Motofretistas distribuíram refeições e arrecadaram cestas básicas, ajudando quem passa dificuldades durante a pandemia. Enquanto isso, o presidente transitiva pela capital gaúcha com seus apoiadores sem um objetivo específico, apenas parecendo celebrar os milhares de mortos pela covid-19.

Imagem: Isac Nóbrega/Fotos Públicas

Voos Literários

Uma reflexão sobre Antifa – O Manual Antifascista

Flávia Cunha
6 de junho de 2020

As manifestações a favor da democracia no Brasil trouxeram à tona o conceito do antifascismo. As bandeirinhas antifas tomaram conta das redes sociais e logo houve um movimento de parte da esquerda para criticar a troca de cores ou questionar se determinadas pessoas são mesmo antifascistas. Percebendo a minha falta de conhecimento teórico a respeito do assunto, fui pesquisar a literatura disponível a respeito. E o livro Antifa – O Manual Antifascista, lançado no Brasil em 2019 pela editora Autonomia Literária, me pareceu a obra ideal para quem quer obter informações confiáveis e descomplicadas sobre um tema tão atual. O autor é Mark Bray, um historiador que foca suas pesquisas na área de direitos humanos, terrorismo e radicalismo político na Europa Moderna e um dos organizadores do movimento Occupy Wall Street. 

EM BUSCA DE RESPOSTAS

De cara, já obtive resposta para a minha principal dúvida: o que nos torna antifascistas? De acordo com o autor, basta sermos contrários a ideais fascistas, como nacionalismo, supremacia branca e misoginia. Sendo assim, fica fácil flagrarmos os antifas de fachada. Quem relativiza o racismo e não enxerga o racismo estrutural, está fora. Os defensores do machismo como vitimização das mulheres, também. Xenófobos, idem.

E O SIMBOLISMO DA BANDEIRA?

Com a palavra, Mark Bray:

Alguns grupos antifas são mais marxistas, enquanto outros são mais anarquistas e antiautoritários. Nos EUA, a maioria tem sido anarquista ou antiautoritário desde o surgimento da antifa moderna sob o nome de AntiRacist Action (Ação Antirracista, ou ARA) no final dos anos oitenta. Até certo ponto, a predominância de uma facção sobre a outra pode ser percebida pelo logotipo na bandeira do grupo: se a bandeira vermelha está na frente do preto ou vice-versa (ou se ambas as bandeiras são pretas). Em outros casos, uma das duas bandeiras pode ser substituída pela bandeira de um movimento de libertação nacional ou uma bandeira negra pode ser emparelhada com uma bandeira roxa, para representar a antifa feminista, ou uma bandeira rosa para a antifa queer etc. Apesar de tais diferenças, os antifas que entrevistei concordaram que essas distinções ideológicas costumam ser incluídas em um acordo estratégico mais abrangente sobre como combater o inimigo comum.”

REALIDADE BRASILEIRA

No prefácio à edição brasileira da obra, escrito pelos pesquisadores Acácio Augusto e Matheus Marestoni, há o alerta de que o livro foi escrito refletindo a realidade norte-americana e europeia, a partir de 71 entrevistas feitas com integrantes do movimento antifascista. Porém, não há dúvidas que o assunto é pertinente para os brasileiros:

“No Brasil, por exemplo, muito tem se debatido nos últimos meses sobre Jair Bolsonaro ser ou não fascista. Todavia, a denominação é a que menos importa, pois sabemos que, no limite, o fascismo é a última razão de qualquer política de Estado. Além disso, no caso do recém-eleito presidente do Brasil, ele apenas expressa e vocaliza questões comuns que características próprias da sociedade brasileira média: a misoginia, o racismo tropical e o nacionalismo ridículo submisso à influência dos EUA nos países da América do Sul. Então, Bolsonaro é um fascista e o bolsonarismo é uma versão tropical da alt-right planetária.”  

ANTIFASCISMO COTIDIANO

Seguindo na leitura de Antifa – O Manual Antifascista, no capítulo 6 podemos ter dicas práticas de como combater o fascismo tropical, principalmente em tempos de pandemia, quando muitos têm receio de sair às ruas. Outra dúvida sanada é sobre a obrigatoriedade do enfrentamento físico com fascistas:

“A grande maioria das táticas antifascistas não envolve nenhuma violência física. Os antifascistas realizam pesquisas sobre a extrema-direita on-line, pessoalmente e, às vezes, por meio de infiltração;  empurram os meios culturais para repudiá-los, pressionam chefes para demiti-los e exigem que casas noturnas cancelem shows, conferências e reuniões;  eles organizam eventos educacionais, grupos de leitura, de treinamento, torneios esportivos para arrecadação de fundos; eles escrevem artigos, folhetos e jornais, pregam cartazes e fazem vídeos; eles apoiam refugiados e imigrantes, defendem os direitos reprodutivos e enfrentam de forma constante a brutalidade policial. 
Mas também é verdade que alguns deles quebram a cara de nazistas e não se desculpam por isso.” 

O tema do antifascismo também foi abordado em um episódio especial do podcast Bendita Sois Vós.

Imagem: Editora Autonomia Literária

 

Voos Literários

Manifesto antifascista

Flávia Cunha
20 de dezembro de 2019

Precisamos falar sobre o avanço do reacionarismo no Brasil e, por mais pífia que tenha sido em termos de adesão, sobre a manifestação de integralistas saudando as ideias ultraconservadoras de Plínio Salgado, realizada há poucos dias em São Paulo. É importante, em primeiro lugar, ressaltar as semelhanças da Ação Integralista Brasileira com o nazismo e o fascismo. Para isso, recorro à análise do renomado crítico literário Antonio Candido, no prefácio da primeira edição do livro O Integralismo de Plinio Salgado, de autoria de J. Chasin, lançado em 1978, apenas três anos após a morte do controverso líder político. Candido não tem dúvidas da proximidade ideológica entre o movimento brasileiro e o extremismo nazifascista:

“Com efeito assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade. No principal livro que escreveu como definição do movimento Plinio Salgado deixa tudo isso evidente. Ataca a liberal-democracia e diz que o integralismo será a democracia verdadeira. Reconhece afinidades com o socialismo, mas vê nele o perigo máximo contra a sociedade, negando-lhe o caráter revolucionário que, alega, caberia ao integralismo (exatamente como diziam Mussolini e Hitler sobre os seus movimentos).” 

Antonio Candido prossegue, nessa introdução, com a comparação do integralismo com o nazifascismo e minimiza as peculiaridades brasileiras do movimento integralista, que seriam mais na forma do que no conteúdo ideológico:

“De fato, a Ação Integralista·Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme; nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaros), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de flechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado ‘Anauê’. Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral.”

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Passado modernista

Candido cita o nacionalismo exacerbado dos integralistas e considero importante ressaltar o passado literário de Plínio Salgado. Antes de desenvolver seu ideário político conservador, ele foi um poeta parnasiano. Porém, aos poucos, foi se identificando com a estética do modernismo e chegou a lançar um manifesto modernista em 1927 chamado A Anta e o Curupira. No mesmo ano, lança O curupira e o carão, em colaboração com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo. Em 1926, já havia publicado o romance O Estrangeiro, considerado o primeiro do gênero de estética modernista.  Era um desafeto de Oswald  de Andrade dentro do movimento modernista, pelas ligações de Oswald com o comunismo e ideias libertárias. Aparentemente, Plínio Salgado apropriou-se de alguns elementos do modernismo, como a exaltação da cultura nacional, para criar seu ideário político. Em 1933, lança o livro O Que é O Integralismo. No ano seguinte, é alçado a chefe nacional do partido Ação Integralista Brasileira.

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Ligações com o  nazifascismo

Para quem ainda duvida da proximidade das ideias de Plinio Salgado com o nazismo, é bom destacar que nesse período dos anos 30 a AIB chegou a dividir sedes com o Partido Nazista em cidades catarinenses e recebia dinheiro do governo fascista italiano. Era um movimento majoritariamente branco e classe média, composto principalmente por descendentes italianos e germânicos. Apesar dos líderes integralistas dessa época publicamente rejeitarem o racismo e antissemitismo, há registro de espancamentos de negros por parte de integrantes da AIB. Um dos casos mais emblemáticos de violência racial ocorreu após uma manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, em 1936, quando militantes agrediram centenas de negros.

Os integralistas foram freados pela ditadura de Getúlio Vargas, que extinguiu os partidos políticos em 1937. Plínio Salgado acabou sendo exilado em 1939 e só retornou ao Brasil em 1945, com o fim do Estado Novo. Então, fundou o Partido de Representação Popular (PRP), procurando esconder o passado fascista e apresentando as ideias integralistas como alinhadas à democracia. Concorreu à presidência em 1955, tendo obtido 8% do total de votos. De 1958 até 1964, é deputado federal pelo PRP. Antes disso, em 1962 é um dos oradores da Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, contra o presidente João Goulart. Plínio Salgado apoiou o regime militar e, com a introdução do sistema bipartidário, acaba integrando-se à Arena, partido de direita, onde obtém mais dois mandatos como deputado federal, antes de sair da vida pública.

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Respingos no presente

Percebemos então que os elementos ultraconservadores do integralismo estão mais próximos do que podemos imaginar da nossa política atual, já que os resquícios da ditadura militar ainda reverberam no Brasil reacionário do século 21. Por isso, precisamos ficar atentos a mais um partido conservador tentando ingressar na política brasileira atual. A Ação Integralista Brasileira, que em nada nega as ideias de Plinio Salgado, pretende participar das eleições de 2020. Será que as ligações históricas com o nazismo não deveriam ser razão suficiente para barrar a restauração desse partido?  

Para fechar com uma inspiração literária, resgato o trecho de uma crônica de 1943 de Jorge Amado, publicado no livro póstumo A Hora da Guerra. No texto, o escritor baiano, um comunista declarado, demonstra sua aversão ao integralismo a partir de um incidente registrado na época no Nordeste brasileiro:

“No Ceará encontraram, enterradas num buraco, camisas e insígnias integralistas. Enterradas, porém não destruídas. O dono de tais enfeites verdes estava evidentemente embaraçado, sem saber o que fazer deles no momento. Por outro lado não estava disposto a queimá-los certo de que camisas e insígnias ainda viriam a ter utilidade. Eis aí um exemplo claro, a atitude integralista no Brasil, a atitude fascista nos países onde se desenvolve a guerra contra o Eixo: esconder as camisas e insígnias, guardá-las bem guardadas, esperando o momento em que possam voltar a reluzi-las ao sol meridiano. Esse acontecimento do Ceará não é uma coisa isolada é apenas o símbolo de um fenômeno mundial.”

No final dessa crônica, Jorge Amado defende a ideia de que as camisas verdes integralistas apodrecerão nos esconderijos, pois nunca mais serão usadas. Imaginem o desgosto do escritor, falecido em 2001, se ficasse sabendo de integralistas nas ruas do Brasil novamente. É pelo nosso futuro e pela memória de quem lutou contra os conservadores desde o início do século 20 é que bradamos:

Fascistas, não passarão!

Sugestão de leitura antifascista: A Revoada dos Galinhas Verdes, de Fúlvio Abramo, que mostra a batalha entre integralistas e esquerdas na São Paulo da década de 1930.

Imagem: Reprodução/Internet