Igor Natusch

No Brasil, ser patriota é odiar o povo brasileiro

Igor Natusch
5 de fevereiro de 2020
(Brasília - DF, 09/12/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro, se despede ao término do almoço.rFoto: Marcos Corrêa/PR

O patriota brasileiro pode ser definido a partir de uma característica muito curiosa: ele adora odiar seu próprio povo. Para grande parcela dos valorosos brasileiros de bandeira adesivada no carro e camiseta verde e amarela, o povo brasileiro é formado por vagabundos, preguiçosos, incompetentes e bandidos em potencial.

Os valores desejáveis para uma nação forte e poderosa não estão entre nós, mas em outros lugares, e tudo seria muito melhor se nosso povo letárgico, burro e animalizado seguisse esses lindos exemplos – ou mesmo se sumisse de vez, dando espaço para braços realmente dispostos a trabalhar por um grande país.

Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro concorda, ao menos parcialmente, com esse enunciado. Afinal, retuitou para seus milhões de seguidores um vídeo de Alexandre Garcia, no qual o jornalista (um dos mais empolgados puxa-sacos do atual governo) teoriza, de forma irônica, sobre como seria lindo o Brasil se nosso povo de molengas submissos fosse trabalhador, sério e concentrado como os japoneses.

 

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Sim, no fim das contas é isso aí mesmo: o Presidente da República concordando publicamente com quem diz que o povo brasileiro não presta para nada. Curioso caso de um nacionalista que ama o povo dos outros e despreza o próprio
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(Sim, todos sabemos que provavelmente foi o tresloucado Carlos Bolsonaro, filho do presidente e dono das senhas das redes sociais do pai, quem postou a estupidez. Mas a verdade é que isso muda pouco o argumento: continua sendo um endosso a um discurso rasteiro sobre a população brasileira, vindo de gente muito próxima ao topo do poder.)

Esse patriotismo à brasileira que acha que xingar brasileiros de vagabundos é ser patriota é ridículo, é claro. Mas não é exatamente difícil de entender. Afinal, o amor à pátria aqui se confunde com coisas bem mais profundas: o racismo e o ódio a gente pobre.

No Brasil, o que define a cidadania é o que se tem, desde tempos imemoriais. Ser bom é ser dono, é ter algum tipo de propriedade sobre o Brasil – ou, pelo menos, ser (ou achar que é) amigo de quem a tenha. Aos que não têm quase nada, cabe a sina de sempre ficar com um pouco menos – e quando já se tirou tudo que se pode levar embora com as mãos, resta esvaziá-los também da capacidade de gerar coisas novas, de serem um povo pelos próprios termos, de existir sem pedir licença.

A cultura do povo não é a cultura brasileira: é a cultura do povão. Os desmatamentos não são consequência de um modelo predatório e assassino de capitalismo: são o gesto ignorante de quem não tem o que comer. A crise econômica não é falta de emprego: é falta de imaginação de quem não consegue ser empreendedor e fica esperando que os patrões deem tudo de mão beijada. Se os pobres brasileiros nada têm, é porque nada produzem; se vivem com fome, é porque são preguiçosos esperando que o sustento caia do céu, prontos a vender o voto pelas esmolas de um programa assistencial qualquer.

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Em última análise, o patriota à brasileira representado na fala nojenta de Alexandre Garcia não ama o Brasil: na verdade, se acha dono dele, enquanto recursos, território e conceito. E faz questão de dizer que os não-donos do Brasil não são nada, não podem ser nada, jamais serão coisa alguma. Mesmo que isso seja uma mentira deslavada
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A patriotada, nesse contexto, nada mais é que um recurso retórico, um argumento sonoro repetido por elitistas preconceituosos enrolados na bandeira nacional. O Brasil dessas pessoas só existe no espelho de casa, nos próprios delírios de ascensão social – ou nas gordas contas bancárias de quem usa o verde e amarelo para seguir sem riscos no topo da pirâmide. Alexandre Garcia, porta-voz fiel desse raciocínio excludente até os ossos, ofereceu a ração confirmatória da vez. E Jair Bolsonaro – um misto de presidente, entreguista patológico e avatar de todos os preconceitos de uma nação que cansou de festa e resolveu odiar – faz o que pode para cometer o desaforo supremo: o de um governante que ri e despreza a desgraça aqueles que foi eleito para governar.

Foto: Marcos Corrêa/PR

Geórgia Santos

Sobre bunda e política

Geórgia Santos
31 de julho de 2017

 

Vivo nos Estados Unidos há alguns meses por conta de uma pesquisa de doutorado na área da Ciência Política. Isso fez com que, naturalmente, eu passasse a conhecer movimentos que não nos são familiares no Brasil. Alguns interessantes, outros menos; alguns produtivos, outros desprezíveis. Faz parte. Um deles é o Alt-Right, conhecido como uma espécie de direita alternativa e que ficou “famoso” no mundo ao endossar a candidatura de Donald Trump com fervor.

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De maneira superficial, pode-se dizer que na base do seu pensamento está o nacionalismo e a supremacia branca, ou europeia como gostam de denominar com eufemismo desavergonhado. Eles defendem o nacionalismo branco

Uau! – só que não

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Fiquei intrigada e decidi pesquisar mais sobre qual é a desses caras. A verdade é que apesar do nome “moderninho” e do trocadilho batido com a tecla “alt”, esse povo representa o que há de mais antigo e retrógado do mundo. São basicamente racistas e preconceituosos, são homofóbicos, islamofóbicos, TUDOfóbicos. Com frequência, seus interesses se misturam aos do neonazismo. Delícia.

Richard Spencer é considerado um dos líderes da Alt-Right. O comediante W. Kamau Bell conversou com ele no programa United Shades of America (algo como “Tons Unidos da América”, tons se referindo aos diferentes tons de pele) e foi absolutamente brilhante. A conversa é bastante esclarecedora para quem não está familiarizado com o movimento.

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Mas afinal de contas o que tudo isso tem a ver com bunda,

dona Geórgia?

Perdão por este nariz de cera, como chamamos no jornalismo. Mas é importante para dar contexto. Acontece que durante minhas pesquisas sobre esses caras, encontrei um texto em que um ser humano falava que os Estados Unidos estavam dando um testemunho de mediocridade a partir do momento em que os americanos estavam deixando os SEIOS de lado e preferindo as BUNDAS. Sim, é isso mesmo.

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Ele dizia que POR CULPA DA ESQUERDA, o país estava ficando cheio de imigrantes latinos e de negros, e que isso estava fazendo com que os homens passassem a gostar mais de BUNDAS do que de SEIOS e que isso era sinal de decadência.

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Vocês acreditam nisso? Eu não vou colar o link aqui porque me recuso a dar mais audiência para um imbecil desses. Mas o argumento dele se organiza em torno do fato de que homens ricos, sofisticados e DE BERÇO preferem os seios das mulheres. E homens pobres e sem modos preferem a bunda, porque são primitivos e era como as mulheres atraíam os homens quando ainda não éramos Homo Sapiens Sapiens. Logo, se a preferência nacional se tornar a bunda, será um testemunho de decadência.

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Agora me diz se pode um negócio desses?

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Eu juro que comecei a rir. Aquilo era tão absurdo, tão vulgar, tão grotesco e tão pequeno que simplesmente não valia a pena. Isso que nem mencionei o quanto isso é agressivo com as mulheres, né. Mas pensei que era só um maluco berrando sozinho na internet e pronto.

Qual não é minha surpresa quando vejo um JORNALISTA da REDE GLOBO DE TELEVISÃO, conceituadíssimo (por muitos, não por mim), escrevendo isso:

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Então cá estamos, lendo que os americanos são mais evoluídos porque gostam de seios e os brasileiros merecem as merdas que acontecem com eles porque gostam de bunda

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Isso foi escrito por um jornalista do mainstream, fora do submundo dos Alt-Right na internet – e curtido por MILHARES DE PESSOAS;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que acha que o aquecimento global é uma farsa porque faz frio no sul do Brasil;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que acha que precisamos revisar a idade penal;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que ficou chocado com os “maus modos” das senadoras que protestavam contra a reforma trabalhista;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que diz que Direitos Humanos é pra defender bandido;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que debochou DO LATIM do relator da denúncia contra Temer – e cometeu um erro ao fazê-lo;

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Isso foi escrito por um comentarista político e econômico da Rede Globo, âncora de telejornais da Globo News e que é seguido por mais de 250mil pessoas

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Então cá estamos, lendo que os problemas políticos e sociais que os brasileiros enfrentam todos os dias é culpa da bunda. E isso, claro, é culpa da esquerda. Agora me digam se não tá tudo errado nesse mundo. Ou com esse cara, pelo menos.

Foto: Pixabay