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BSV Especial Coronavírus #40 “Nosso Capitólio” invadido em 2022?

Geórgia Santos
13 de janeiro de 2021
No episódio desta semana, como será o nosso capitólio invadido em 2022?

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No último dia seis, apoiadores de Donald Trump adentraram o Capitólio, a casa do legislativo dos Estados Unidos, para impedir que o Congresso aceitasse o resultado do pleito que elegeu o democrata Joe Biden como o novo presidente. Os manifestantes foram incitados pelo próprio Trump, que disse que foi roubado. Ou melhor, que MENTIU que houve fraude na eleição.

Mas não termina por aí, porque o episódio inédito na história da política dos Estados Unidos andou dando ideias a Jair Bolsonaro.

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O presidente do Brasil disse que se a eleição não for no papel em 2022, se ainda houver urna eletrônica, aqui “pode acontecer pior” que nos EUA
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O problema é que enquanto Bolsonaro se preocupa com 2022, o coronavírus avança no Brasil, deixando um rastro de mais de 200mil mortos e poucas perspectivas de vacina no curto prazo. O ministro da saúde, Eduardo Pazzuelo, é a cara da tragédia. Segundo ele, vamos nos vacinar “no dia D, na hora H”.

Para discutir esses e outros assuntos participam as jornalistas Geórgia Santos e Flávia Cunha e os jornalistas Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

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Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #40 “Nosso Capitólio” invadido em 2022?
Reportagens Especiais

(Mais) protestos conservadores na era pré-pós-Trump: invadindo o Capitólio

Colaborador Vós
9 de janeiro de 2021

Por David S. Meyer*

O esforço caótico de insurreição no edifício do Capitólio mostrou que mais 14 dias é tempo demais para Donald Trump continuar a servir como presidente.

Como prometido, [em seis de janeiro] Trump apareceu cedo para falar em um comício organizado em apoio às suas acusações infundadas de que a eleição presidencial fora roubada. Na maior parte, o discurso reprisou a recitação de realizações imaginadas e inimigos acumulados, conhecidos de suas aparições de campanha. Mas a lista de inimigos ficou maior, agora incluindo o ex-procurador-geral William Barr; o vice-presidente Mike Pence; o líder da maioria no Senado, Mitch McConnell; e a congressista Liz Cheney. Seus pecados: não apoiar Trump agressivamente o suficiente e, então, apegar-se demais às normas da governança constitucional.

Trump (de novo, falsamente) alegou uma vitória eleitoral esmagadora, reclamou sobre ser enganado e exigiu que seus seguidores lutassem para mantê-lo no cargo. Ele proclamou que jamais reconheceria a derrota e anunciou que marcharia com eles até o prédio do Capitólio para impedir o Congresso de aceitar os resultados do Colégio Eleitoral. Então, Trump voltou para a Casa Branca.

Os apoiadores seguiram em frente e, de alguma maneira, formaram uma coluna que passou pelos bloqueios ao redor do Capitólio e invadiram o prédio. (Pelo menos um vídeo circulando parece mostrar a polícia removendo as barricadas para convidar os insurgentes a entrarem.) Você teria que voltar a 1814, quando os britânicos invadiram (sem guitarras) para encontrar algo remotamente semelhante. Ironias abundaram enquanto os caras que marchavam para apoiar vidas azuis lutavam com a polícia.

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Trumpianos subiram correndo os degraus do Capitólio e avançaram pelos corredores, reivindicando o plenário da Câmara e do Senado, ocupando o Statuary Hall, invadindo escritórios, vasculhando mesas, quebrando vidros e saqueando – tirando selfies por todo o caminho
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Embora seja provável que pelo menos alguns dos vândalos tenham planejado a incursão, parece que muitos dos insurgentes apenas se deixaram levar pelo momento. Houve pouca coordenação aparente depois que o pessoal da segurança evacuou os membros do Congresso, nem qualquer consideração de uma mensagem comum.

Havia manifestantes em trajes estranhos, uma variedade de bandeiras brandidas (veja a bandeira confederada abaixo, quase cobrindo o que tenho certeza que é um retrato de John C. Calhoun, o principal teórico político da secessão do sul para preservar a escravidão), bonés MAGA [Make America Great Again, algo como Faça a América Grande de Novo, em tradução livre], mas não muitas máscaras em deferência a uma pandemia global.

O acesso aparentemente fácil dos vândalos ao prédio e sua capacidade de interromper o funcionamento do governo nacional levantaram questões óbvias sobre o policiamento. Os tuiteiros foram rápidos em perceber que bloqueios, prisões, espancamentos e estrangulamentos, gás lacrimogêneo e tiros vieram muito mais lentamente para este grupo de manifestantes brancos do que para disciplinar os manifestantes do Black Lives Matter no verão passado, quem dirá para o ocasional motorista negro, ou corredor, consumidor ou dorminhoco.

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O esforço tardio de Trump para promover a ordem pública veio com um vídeo de um minuto no qual ele reiterou suas queixas insustentáveis ​​sobre a eleição e declarou seu amor pelos insurgentes antes de encorajá-los a voltar para casa
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A coordenação da segurança pública estava, na melhor das hipóteses, dispersa, em parte devido a uma administração disfuncional e desinteressada, em parte como resultado da estranha governança de Washington DC. Observe que foi o Pence quem chamou a Guarda Nacional, embora o vice-presidente não tenha autoridade para fazê-lo. Demorou horas para uma coleção de agências de segurança pública evacuar o prédio e, lentamente, as áreas do entorno.

Os líderes do Congresso anunciaram que se reuniriam novamente e aceitariam os resultados assim que o prédio fosse limpo e, presumivelmente, quando o gás lacrimogêneo também fosse removido. Eles estavam determinados a não dar aos insurgentes nem mesmo o sopro de uma vitória para reivindicar. Parece que pelo menos alguns dos membros abandonaram seus planos de contestar os votos de alguns dos estados indecisos.

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As reportagens, nesta fase, não importa o quão sérias e bem-intencionadas, provavelmente não são totalmente fidedignas, então estamos esperando para obter uma história mais completa e esclarecer as implicações, mas aqui estão alguns palpites:

A insurgência vai desafiar ainda mais a fé de pelo menos alguns políticos republicanos no presidente, exacerbando uma divisão crescente no partido;

A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e os líderes do Senado McConnell e (agora!) Schumer tentarão coordenar alguma forma de remover – ou pelo menos calar – Trump para evitar mais danos. (O Twitter congelou temporariamente sua conta);

O Congresso – e as legislaturas estaduais – vão reforçar barricadas e aparelhar as forças policiais e de segurança, tornando mais difícil para as pessoas confrontarem – ou mesmo entrarem em contato com – seus representantes;

Talvez haja um apoio mais urgente para a criação de um estado em Washington DC – um governador poderia fazer coisas para proteger a ordem pública que o prefeito não poderia;

Talvez haja um pouco mais de suporte para uma modesta regulamentação de armas – dependendo do que acontecer a seguir;

Estamos vivendo um capítulo estranho e perturbador da história Americana. Eu ficaria bem em pular as últimas páginas e chegar a algo diferente.


Originalmente publicado no site Politics of Protest, sob o título (More) conservative protest in the pre-post-Trump era: storming the Capitol.

*David S. Meyer
Autor de The Politics of Protest: Social Movements in America
Professor de Sociologia e Ciência Política na Universidade da Califórnia, Irvine

 

Voos Literários

Crise no Oriente Médio: 5 indicações de leitura

Flávia Cunha
11 de janeiro de 2020
“Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo.”

Bolsonaro, Jair, em janeiro de 2020.

A frase do excelentíssimo presidente da República refere-se a livros didáticos distribuídos em escolas públicas. Porém, essa declaração acaba podendo ser aplicada de forma mais abrangente no que se refere a ações do atual governo, com evidentes demonstrações de falta de apreço à Cultura. 

Bolsonaro deveria ler mais para, por exemplo, ampliar seu parco vocabulário. O mesmo pode se dizer a respeito do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que volta e meia assassina a norma culta e escreve com erros de ortografia (o último foi “imprecionante), o que pode (e deve) ser perdoado em pessoas com menos escolaridade mas que não pode ser considerado normal em alguém em um cargo como esse.

Dia do Leitor

Em 7 de janeiro, comemora-se no Brasil o Dia do Leitor, esse ser incompreendido por Bolsonaro, que gosta de livros “com muita coisa escrita” e considera a leitura uma atividade lúdica.  Porém, nem sempre podemos nos refugiar no terreno prazeroso da ficção. Pois 2020 começou com um conflito entre Estados Unidos e Irã, uma tensão que deixa o mundo inteiro em alerta. Para os leitores que dedicam seu tempo a informar-se através da imprensa, nem sempre há um relato mais aprofundado sobre o que ocorre no Oriente Médio e sua relação com o governo norte-americano. (No Jornal da Globo, a apresentadora chegou a comentar que seria interessante explicar para os telespectadores detalhes sobre a Revolução Iraniana de 1979 “porém não havia tempo para isso”).

Por essa razão, fiz uma seleção de 5 livros para tentar entender melhor um tema tão complexo:

O Xá dos Xás – Ryszard Kapuscinki

Sinopse: Nos anos 1950, com o repentino aumento do preço do petróleo, o Irã embarcou em um extraordinário processo de modernização. Foram importados armamentos, carros, aviões, tudo o que para o xá era sinônimo de desenvolvimento. Em 1979, no entanto, seu projeto de “Grande Civilização” ruiu: sob o impacto de manifestações populares e a pressão dos religiosos xiitas, o reinado despótico de Mohammed Reza Pahlevi chegou ao fim. Para narrar o processo de ascensão e queda do último xá do Irã, Kapu’sci’nski lança mão de uma técnica mista, em que entram narrativa histórica, crônica jornalística e escrita de ficção. Sem entrevistar representantes do novo governo ou adentrar o palácio onde viveu o xá, o autor busca no homem comum o significado profundo da cultura, da religiosidade e da revolução iraniana. Nesta brilhante cobertura, o jornalista-escritor põe em prática sua convicção de que “todos os livros sobre as revoluções […] deveriam começar com um capítulo com tons psicológicos, em que se descrevesse o momento em que um homem sofrido e apavorado repentinamente derrota o terror; o instante em que ele deixa de sentir medo”.

A Crise no Islã – Bernard Lewis

Sinopse:  Bernard Lewis examina as raízes históricas do ressentimento que uma parcela dos adeptos do islamismo nutre com relação ao que qualifica como “mundo infiel”. Partindo da fundação da religião muçulmana pelo profeta Maomé, o autor traça, de maneira crítica, uma linha do tempo que percorre a era dos califas, o Império Otomano, a ameaça representada pelos cruzados, a dominação colonial europeia e a intensificação dos conflitos entre Oriente e Ocidente nos últimos tempos. Em texto sucinto, Lewis concentra-se em particular nos acontecimentos do século XX que estão na origem dos violentos confrontos atuais: a formação do Estado de Israel, a Guerra Fria, a Revolução Iraniana, a Guerra do Golfo e o 11 de setembro. A crise do Islã interpreta a ascensão da doutrina wahhabi (fundada no século XVII e que prega o retorno ao islã “puro” e “autêntico” de Maomé) como forma de deturpar e manipular o comportamento religioso tradicional na região. O espelho do fundamentalismo radical não é necessariamente a sociedade ocidental, diz o autor, mas todos aqueles que se abrem para o estilo de vida moderno e as tradições democráticas. Como política e religião são inseparáveis no islamismo, não é de estranhar que jovens muçulmanos se mostrem tão ansiosos por cumprir a obrigação da jihad (ou “guerra santa”) e se submetam até ao suicídio em nome da fidelidade ao passado.  “Admiravelmente sucinto. Fornece uma visão ampla, em meio a tanto imediatismo e eruditismo confuso. Lewis nos prestou a todos, muçulmanos e não-muçulmanos um serviço inestimável.” The New York Times Book Review “Uma contribuição oportuna e provocadora ao atual debate sobre as tensões entre os mundos ocidental e islâmico.” Business Week”Inestimável.  Repleto de insights históricos excepcionais, presumíveis em um dos principais estudiosos do islamismo.”  The Wall Street Journal

A Revolução Iraniana – Osvaldo Coggiola

Em uma região conturbada desde tempos imemoriais, o Irã da segunda metade do século XX honra a tradição e abriga situação explosiva: uma monarquia, autointitulada herdeira dos vetustos imperadores persas, debate-se, espremida entre a autocracia, a corrupção e os anseios modernizadores. Completando o quadro dramático, a presença crescente do fundamentalismo islâmico e a não disfarçada intervenção das potências ocidentais – sempre obcecadas pelas enormes reservas petrolíferas do país – acarretam a tensão geopolítica prenunciadora de típicos cenários contemporâneos.

A “revolução dos aiatolás” é, assim, exemplar. Mais do que conflito localizado, é fruto das variáveis definidoras de nossa época e expõe os perigos e os desafios que enfrentamos.

O Enigma da Revolta: Entrevistas Inéditas sobre a Revolução Iraniana – Michel Focault

Sinopse:  Caso você esteja em dúvida se já leu essas entrevistas de Michel Foucault a respeito da revolução iraniana, podemos reassegurar: a resposta é não. Elas não foram incluídas nos Ditos e Escritos, pois apareceram só em 2013, em árabe, e em 2018, parcialmente, numa revista francesa. Assim, são conversas em tudo inéditas. Tiveram que esperar mais de três décadas para se tornarem acessíveis ao público em geral. Seu interesse é duplo. Por um lado, depois de toda a celeuma provocada pelas “reportagens de ideias” escritas por Foucault por ocasião de suas duas viagens ao Irã, em 1978, o filósofo esclarece o sentido de seu interesse pela sublevação iraniana, desfazendo mal-entendidos, desinformações e malevolências (de que ele teria apoiado a implantação da teocracia!). Por outro lado, nelas esclarece sua concepção de revolta, sublinhando que expor-se à morte é um gesto irredutível a qualquer explicação histórica. Ademais, fala sobre o que entende por “espiritualidade política”, dando à expressão um sentido particular, mais vinculado à experiência da modificação de si (“tornar-se outro do que se é”) do que à instituição religiosa. Portanto, mais aparentada a Bataille, Blanchot e Ernst Bloch do que à visão de um aiatolá. Nessas conversas tocantes, temos acesso às ideias de Foucault na época sobre a natureza da resistência, do poder, da vontade, da religião, da experiência, do sujeito, sobre Sartre, os “novos filósofos” – de golpe, é todo um panorama mental que se descortina, de uma riqueza e atualidade extraordinárias. De quebra, um belo ensaio de Christian Laval fecha este livro instigante, organizado por Lorena Balbino.

Persepólis – Marjane Satrapi

Sinopse:  Marjane Satrapi tinha apenas dez anos quando se viu obrigada a usar o véu islâmico, numa sala de aula só de meninas. Nascida numa família moderna e politizada, em 1979 ela assistiu ao início da revolução que lançou o Irã nas trevas do regime xiita – apenas mais um capítulo nos muitos séculos de opressão do povo persa.
Vinte e cinco anos depois, com os olhos da menina que foi e a consciência política à flor da pele da adulta em que se transformou, Marjane emocionou leitores de todo o mundo com essa autobiografia em quadrinhos, que só na França vendeu mais de 400 mil exemplares.
Em Persépolis, o pop encontra o épico, o oriente toca o ocidente, o humor se infiltra no drama – e o Irã parece muito mais próximo do que poderíamos suspeitar.

Imagem:  Pavel Karásek/Pixabay
Gustavo Chagas

Quid pro quo

Gustavo Chagas
19 de dezembro de 2019

A expressão latina quid pro quo significa a ação de dar uma coisa em troca de outra. No vivíssimo português, o sentido da frase ancestral se transformou graças a um livro farmacêutico levava esse nome. Com orientações para aplicar um princípio medicinal em vez de outro, com os mesmos efeitos, a publicação levou a culpa pelas confusões cometidas por seus leitores. Cada erro de receita sustentava o que virou o tão nosso quiprocó.

Coube ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos trazer o original latino de volta à pauta. O presidente Donald Trump, denunciado na Câmara dos Representantes por abuso de poder e obstrução do Congresso, responderá a um processo de impeachment no Senado.

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O motivo? Quid pro quo!

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Trump teria oferecido, ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, liberar recursos retidos na área militar. Em troca, o hóspede da Casa Branca pediu uma atenção especial à suspeita de envolvimento de Hunter Biden (filho do ex-vice e atual pré-candidato democrata à presidência, Joe Biden) em um esquema de corrupção empresarial no país do leste europeu.

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Na pura essência das letras, _quid pro quo_!
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No início de dezembro, Donald Trump anunciou sanções a Brasil e Argentina pela desvalorização do real e do peso diante do dólar. Segundo o presidente dos Estados Unidos, os dois latino-americanos se aproveitavam deliberadamente do peso e do poder da verdinha. Como punição, taxas sobre o aço e o alumínio produzidos por aqui. O presidente Jair Bolsonaro disse ter uma linha aberta com o colega do norte, mas não houve correspondência. E antes já tínhamos ficado a ver navios no caso da OCDE, quando Trump preferiu apoiar a adesão de Argentina e Romênia no grupo dos ricos.

Na nossa nova diplomacia, com Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e America first, Bolsonaro bem que queria firmar um quid pro quo com Trump. Mas só dando e sem receber nada em troca, apenas nos sobrou o quiprocó.

 

Image by OpenClipart-Vectors from Pixabay

Gustavo Chagas

A Bolívia e a Organização dos Governos Americanos

Gustavo Chagas
14 de novembro de 2019

A semana boliviana foi amplamente discutida pela imprensa brasileira. Depois de muita indecisão de alguns, parece que, finalmente, chegou-se à conclusão de que houve golpe militar contra Evo Morales. O singelo pedido do comandante das Forças Armadas para que o presidente renunciasse foi atendido mesmo depois de ele aceitar a realização de novas eleições diante das evidências de fraude no pleito anterior.

Evo Morales ficou acuado, não só politicamente. Teve de deixar o país se esgueirando entre espaços aéreos fechados até o México

A violência já vista nas ruas ganhou níveis cada vez maiores. Prisões injustificadas, ataques incendiários, agressões em praça pública marcaram o movimento que tinha como pretexto restabelecer a democracia da Bolívia. Um estranho grupo que mistura o extremismo militar com o fundamentalismo religioso (Rá!) tomou conta do poder. Uma senadora, Jeanine Áñez, reclamou para si a vaga da presidência e vestiu a faixa amparada pela Bíblia, pelos homens de farda e pela falta de quórum.

É bem verdade que Evo atropelou a regra do jogo ao forçar suas reeleições com manobras sobre manobras. O correto seria escolher um sucessor e deixar a decisão final nas mãos do povo. Mas não deixa de ser óbvio que não é (ou não deveria ser) a força militar a decidir como ou quem vai liderar a transição, da forma como está acontecendo, e pior: sem a certeza de que vai haver transição.

Tendo claro o que houve na Bolívia, vamos para fora dela

A América do Sul assumiu uma postura interessante nas relações exteriores. O tão temido aparelhamento ideológico de outrora com outrem agora dá as cartas da diplomacia no continente sem constrangimentos. Para substituir a comunista Unasul, tomada pelo Foro de São Paulo, inventou-se o Prosul, de Macri, Piñera, Bolsonaro e companhia. A nova organização, de tendência liberal-conservadora (com toques de olavismo), iria reunir os interesses dos países do continente. Mas até quando? Macri já está fazendo as malas da Casa Rosada e Piñera não sabe se termina sua estadia em La Moneda.

A negociação e a conciliação ficam em segundo plano, enquanto lideranças aproveitam as crises alheias para obter ganho político para a ideologia. Jeanine Áñez, a Guaidó boliviana, já foi reconhecida como presidente pelo Brasil de Bolsonaro. Certamente não será reconhecida pela Argentina de Fernández. Como fica?

As opiniões de governo assumiram o lugar de posições de estado. A Organização dos Estados Americanos, que deveria ser a voz da ponderação, cedeu aos gritos dos mais fortes, dizendo que não houve golpe senão os de Morales. Na reunião do grupo, Estados Unidos e Brasil apoiaram o resultado do golpe. Chile e Peru, comandados por líderes de centro-direita, ficaram constrangidos em endossar a clareza bolso-trumpiana. Já países com presidentes de esquerda ficaram a ver navios na Bolívia que não tem mar. Uruguai e México criticaram a inaceitável pressão militar.

Sem estados e movida pelos interesses de governos de plantão, a OEA poderia trocar de nome para OGA. A Organização dos Governos Americanos vige até segunda ordem (garantida, sempre que necessário, com a força dos quartéis).

Nós US

A renda ficou muito cara

Sacha
4 de abril de 2018

A inflação é uma praga que atinge não só o bolso do brasileiro. A crise que se passou em 2008 não deixou um canto do mundo livre de seus efeitos, mais tarde ou mais cedo. Depois de uma queda meteórica no mercado imobiliário no Ocidente, os preços têm voltado a níveis insustentáveis nas zonas de maior atividade econômica. Nos Estados Unidos hoje, em nada se nota tanto os efeitos da crise como na moradia.

Uma década perdida

Se está caro arrendar uma casa tanto no Rio de Janeiro quanto em cidades como Vancouver, São Francisco, ou Londres, o que há por trás disso? É preciso começar com a crise de 2008 e os efeitos no mercado financeiro.

Há uma década, a construção era financiada em grande parte por linhas de crédito pedidas aos bancos. Esses mesmos bancos em grande número faliram na crise financeira, levando à cessão da atividade de construtoras. Os bancos que restavam dificultaram o acesso a crédito.

Sem projetos, as construtoras começaram a encerrar ou especializar em projetos de luxo que pudessem pagar as contas. A bola de neve foi descendo durante anos, deixando muitas cidades com uma década inteira (ou mais) de construção perdida.

As populações, entretanto, não esperavam as construtoras recuperarem as condições. Entradas em plena recuperação econômica, essas cidades tornaram-se pólos migratórios sem que tivessem a capacidade de acolher todos que queriam habitá-las.

Não é por acaso que as cidades mais baratas para se viver são as mesmas que têm permitido a construção de capacidade adequada ao crescimento de emprego na última década.

O deslocamento de populações antigas às mãos de recém-vindos com mais dinheiro é o que se tem chamado gentrificação. Algumas cidades, já sentindo essa pressão, tentaram legislar proteções contra o fenômeno. Em cidade alguma isso tem resultado da forma desejada. Em alguns casos, a situação até foi agravada.

Com espaço limitado e pouca ação tomada para deixar lugar para todos, os mais privilegiados ganham. Os preços continuam a subir apesar de qualquer esforço. É o caso de toda a Califórnia, especialmente a área da Baía de São Francisco.

Não há uma causa única

Aqui não há nenhum mistério. O princípio de oferta e procura é bastante simples: quando existe um bem pelo qual há pouca oferta e muita procura, o preço sobe. E os preços subiram muito. As cidades e estados tampouco souberam construir habitação social o suficiente para as necessidades da população. Esta é a base dos males de comprar ou arrendar uma casa hoje em dia.

Isto se aplica tanto em casos extremos como na Espanha, quanto em áreas menos afetadas, como nas cidades da região chamado o Sun Belt (Cinturão do Sol) americano. Mas não explica tudo.

O ponto em comum de toda a explicação é o desejo de controlar e bloquear o crescimento populacional das cidades. Os motivos são vários para bloquear o crescimento. Argumentos superficiais defendem uma melhoria em qualidade de vida ou escolas públicas. Outros são mais discretos. Entre eles é o desejo de preservar o preço imobiliário por esta via artificial. Assim, enriquece-se quem já teve o privilégio de comprar casa no lugar e tempo certo.

As cidades americanas sofrem de um câncer de zoneamento excessivo

Outro fator agravante, eminente na Califórnia, é o zoneamento restritivo das cidades. O zoneamento dita os usos dos edifícios, permitindo a atividade comercial ou industrial, a residência, usos agrícolas e etc. Também dita a forma que podem tomar os edifícios. Isto é, restringe ou não o tamanho dos edifícios e determina se podem ser juntos ao estilo urbano ou somente separados ao estilo suburbano. Usos mistos são raros e frequentemente relegados a diferentes tipos de atividade comercial: torres parcialmente ocupadas por hotéis e escritórios, por exemplo.

Concebido como forma de regular os usos do território de um município, o zoneamento tem sido aplicado para bloquear crescimento de qualquer elemento indesejado nas cidades americanas. As origens do zoneamento remontam à época de integração e o movimento para direitos civis. Esta é a mesma época do processo de fuga dos brancos dos centros das cidades.

O zoneamento começa como uma forma discreta, entre muitas, de restringir o acesso de pessoas negras e outras inúmeras minorias às comunidades preferidas pelos brancos de classe média até alta.

Isto se efetua principalmente por meio de restringir a construção de casas em grande número. Esquece qualquer tipo de construção densa, como apartamentos ou condomínios, onde pessoas menos afortunadas podiam viver.

Uma vez designada uma área atrativa para se viver, ordenanças e ação civil completam o processo de negar a concessão de casas às minorias indesejadas. Chegou a tal ponto na Califórnia que algumas cidades sequer permitiram licenças para a construção de mais do que uma dúzia de casas novas durante a última década, enquanto a crise imobiliária se agravou nas suas respectivas áreas metropolitanas.

Uma nova política emergente quer corrigir esta falha

Nos últimos anos, tem surgido um movimento político que se centra na questão de ter casa para todos. Na legislatura californiana, várias iniciativas ganharam tração nos últimos três anos para facilitar o livramento de mais vivendas. Agora, um projeto-lei pretende forçar os municípios do estado a permitirem tipologias densas em torno de transporte público. Há candidaturas de vereadores em São Francisco focadas em transformar a cidade numa que constrói mais casas para acalmar os preços astronómicos na cidade. Assim se vai espalhando não só pela Califórnia, mas o país inteiro.

Toda a gente já começou a dar-se conta de que a renda está demasiada cara. Agora falta pôr em prática soluções para uma situação uma década atrasada.

Nós US

Trumpism Doesn’t Win Everything

Sacha
15 de novembro de 2017
(pode ler este artigo em português aqui)

Let there be hope for the difficult political times we’re going through. It had seemed that all the rules of the game were turned on their head. The 2017 election, however, showed that politics isn’t (yet) a lost cause.

This month’s elections showed that Trump is not immune to his historically unpopular presidency and the effects it has on his party. In a number of states, Democrats made large gains in local and statewide races. This was especially the case in Virginia, where they have nearly flipped one house of the state legislature—unthinkable leading up to the election.

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The results were in line with polling expectations

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Given last year’s losses, however, Democratic supporters were nervous about the possibility of further surprises. Instead, they made gains in friendly states like Virginia and inroads in more difficult places like Georgia, Montana, and South Carolina. Far from retreating further, the party appeared to solidify its position ahead of the 2018 midterm elections.

In Virginia’s governor race, the Republican candidate attempted to use Trump-style media tactics while maintaining a more reasonable profile in campaign rallies. That strategy backfired. If the new rules of the game were supposed to be Trump-style sensationalism at all costs, it appears at least the voters in Virginia didn’t fall for it. For all his flaws, the Democratic candidate managed to win by roughly 9 percentage points.

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The formula wasn’t a perfect elixir

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Politics, like most social sciences, is about sussing out trends over time as opposed to one-off revolutions of facts. What we know in American politics is that the president’s party is usually at a disadvantage in midterm and special elections. We also know that how low a president’s approval rating sinks tends to correlate with how well the opposition is poised to do in the next round of elections. As a sort of official testing ground, these elections proved that even in the era of Trump, that holds true.

That a bombastic campaign of populist cliches and scaremongering didn’t manage to succeed on Virginia voters should call into question what exactly made the formula work for Trump. The Republican Party is facing stiff challenges in upcoming elections. Whether it should embrace Trumpism and go full steam ahead on that particular brand of toxic populism, or change course to account for more popular public policy, is now more open a question than ever.

Image: Ben Shafer
Nós US

Não espere de pé para a Casa Branca cair

Sacha
13 de julho de 2017
(you can read this article in English here)

Esta semana parece ter-se confirmado o caso de colusão da campanha Trump. Ninguém menos que o filho do presidente, Donald Trump Jr., divulgou uma série de emails em que se revela disposto a receber informações ilícitas sobre Hillary Clinton vindas de agentes russos. Sem sequer considerar o que havia por trás da oferta de informação, Trump Jr. responde com um simples “adoro isso.” Adorou tanto que não lhe importava a negligência de ética em aceitar o que foi apresentado. Adorou tanto que nem tentou esconder a troca. Entre o tanto barulho após o tweet revelador, há quem o classifique como alta traição. Agora só falta ver quais serão as repercussões legais.

Voltamos uns passos. Embora a revelação dos emails seja uma evidência clara de conluio, o caso ainda não tem processo judicial pendente. Até a publicação da íntegra dos emails, a informação foi vazando à imprensa pouco a pouco. De tal modo que Trump Jr. se viu obrigado a tentar controlar os danos possíveis, publicando a informação incriminatória de vez. Por uma campanha centrada num escândalo do servidor privado dos emails de Hillary, este escândalo resulta mais surreal ainda.

Num Congresso tão ineficaz como vem sendo, não há margem para contemplar o abandono total do projeto

 

Muitos representantes republicanos negavam a ligação entre Trump e a Rússia antes do caso dos emails. Reservavam comentários sobre o caso para informação nova e concreta. Agora tendo-a em mão, muitos ainda recusam a proclamar sobre as possíveis ligações Trump-Rússia. Eis o problema.

Caso confirmado, este escândalo seria uma violação de ética e comportamento político sem precedentes nos Estados Unidos. Nem Watergate chegou a ser tão flagrante quanto o que vemos agora. Ainda assim, o estabelecimento republicano continua hesitante. O motivo? Não querem desacelerar o já lento ritmo de legislação.

Visto que o ciclo político aponta para uma perda provável do controle absoluto da legislação nas eleições de 2018, os republicanos não estão dispostos a interferir na oportunidade única que têm para passar os seus projetos de lei mais importantes. O procedimento de destituição do presidente não só parava a atividade do executivo, senão toda a agenda legislativa. Num Congresso tão ineficaz como vem sendo, não há margem para contemplar o abandono total do projeto. Nem quando a evidência se empilha.

Imagem: John evans