Pedro Henrique Gomes

No luxo dos veludos

Pedro Henrique Gomes
31 de maio de 2020

Um mar amorfo de bestialidades quase neutraliza a discussão sobre outras coisas nos tempos que correm. O governo Bolsonaro é desprezível, autoritário e corrupto. Precisa acabar. Seus séquitos apoiadores financeiros vivem muito bem no luxo dos veludos. Mas a crueldade dos monstros sanguessugas não pode paralisar-nos e é preciso reagir. Uma forma imprescindível de reação é a manutenção da quarentena para quem tem condições e pode mantê-la. No momento, a quarentena é a luta armada de 2020.

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Em meio a tudo isso, os filmes me aquecem. Certamente a sessão mais memorável deste maio que está prestes a se esgotar, levando com ele a vida de muita gente, espalhadas nos muitos brasis que temos no Brasil, ao descompasso do desprezível conjunto de abomináveis senhores da morte que dizem nos governar, enfim, eu dizia que a sessão mais marcante dessa quarentena, até aqui, foi a de A Casa e o Mundo (Índia, 1984), de Satyajit Ray. Curioso que, como em boa parte da obra cinematográfica do cineasta indiano, a casa, isto é, o espaço interior (ambiente dos dramas corriqueiros e cotidianos, mas também espaço para onde converge uma série de problemas do mundo, pois indissociáveis) existe pois há um fora dele, o exterior. Os espaços em Ray têm contornos e, ao mesmo tempo, respeitam aqui a intimidade da câmera clássica. Ele tem, no entanto, a malícia que faz do seu cinema uma viagem atenta ao conjunto de valores em vigor no espaço do qual ele fazia parte.

A história de A Casa e o Mundo é uma história conjugal, passada em Calcutá, e ela toma forma inteiramente no espaço doméstico. Estrutura dramática habitual em Ray, é possível conhecer o mundo com aquilo que ele nos dá a ver por meio de suas imagens e é necessário se inserir nesse mundo a partir de uma série de decisões (morais, absolutamente).

Bimala é casada com um homem intelectual, rico e liberal, e se vê encantada pelo amigo do marido que ele próprio insiste em lhe apresentar, contrariando a tradição. A tensão que se cria é exatamente resultado disso, consequência de crises constantes da tríade de personagens protagonistas, e comporta todos os conflitos, hesitações e vacilos possíveis naquele registro. Não há existência passiva no conjunto de ações assumidas pelos três, e suas decisões movem a trama. O narrador não deseja esconder as pistas, os motivos dos seus personagens. Ao contrário, ele espera que o espectador os decodifique. Nesse sentido, a razão de Ray opera de modo distinto a de um Bergman, Ozu ou de Fellini, por exemplo, que operam mais no mistério.

Satyajit Ray era um observador engenhoso e responsável. Audacioso, em A Casa e o Mundo ele não só “comenta” a cultura oficial, mas a interpreta compreendendo suas verdades mais íntimas – e suas falsidades também, seus vespeiros e suas contradições. Parece ser a melhor forma de fazer cinema político.

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Vale acompanhar as redes da Mostra de Cinemas Africanos. A Mostra coordena o Cine África, que está promovendo debates também com uma galera muito qualificada para falar sobre os filmes africanos. Espia a programação aqui. Além do Cine África, segue até o dia o 7 de junho o We Are One – A Global Film Festival, e o pessoal da Mostra publicou uma página com as exibições dos filmes africanos que integram a programação do festival, que são disponibilizados no YouTube.

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #4 Por que o povo sai de casa?

Geórgia Santos
16 de abril de 2020

Apesar da COVID-19 continuar circulando por aí e a todo vapor, há quem diga que o tal do coronavírus vírus está indo embora do Brasil. Leia-se: Jair Bolsonaro. 

Não podemos afirmar o quanto as manifestações do Presidente da República impactam na tomada de decisão das pessoas que resolvem sair de casa. Mas o fato é que a cada dia que passa, o isolamento diminui. Em Porto Alegre os parques estavam cheios no final de semana e, em São Paulo, epicentro da crise, nova carreata, com direito a manifestação – com meme do caixão e tudo.

As pessoas também podem estar cansadas do isolamento, afinal, é desgastante ficar preso em casa. Esse pode ser um motivo bastante forte para sair por aí. Mas há, ainda uma terceira camada além do presidente e do emocional, a desinformação. Algumas figuras negacionistas que se dizem amparadas pela ciência tem tido cada vez mais espaço para destilar ideias de jerico.

E nós, jornalistas, temos responsabilidade nisso também. Porque mesmo que os riscos da crise sejam amplamente divulgados e mesmo que haja insistência nisso, há quem se dedique a ouvir as vozes contrárias. Dois lados  em uma pandemia era tudo o que a gente precisava.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flavia Cunha, Igor Natusch, Tércio Saccol e o convidado Marcelo Nepomuceno. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #2 Dia da mentira

Geórgia Santos
3 de abril de 2020

Primeiro de abril é o dia da mentira. Para Jair Bolsonaro, todo dia é primeiro de abril. Primeiro de abril em 64, com o golpe militar que prometia trazer a democracia de volta. Dia da mentira em 2020, em que o presidente da república minimiza a pandemia de coronavírus, que já fez milhares de vítimas no mundo todo. Acrescenta-se a isso o fato de que ele continua estimulando as pessoas a saírem de casa e está consolidada a distopia que a gente só lia em livro ou via em filme.

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Para o povo brasileiro também, todo dia é primeiro de abril
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Porque parece que todo dia é dia de cair em uma pegadinha nova. ?Na noite de 31 de março, Jair Bolsonaro fez um pronunciamento (quase) comedido sobre o coronavírus. O mais próximo do decente que vimos nos últimos tempos. Mas em primeiro de abril já estava fazendo a alegria do picadeiro montado para sua claque em Brasília. O juízo não durou 12 horas.

Por isso, ouvimos a médica infectologista Ana Lúcia Didonet Moro, que fala sobre os erros e acertos das autoridades brasileiras. Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox