Pedro Henrique Gomes

O Jovem Karl Marx

Pedro Henrique Gomes
16 de fevereiro de 2018

O Jovem Karl Marx mantém vaga a cadeira disponível para que uma cinebiografia honrosa do filósofo alemão possa enfeitar as nossas memórias. O filme de Raoul Peck é altamente contraditório no mau sentido, isto é, não no sentido de como a filosofia de Marx pensava o processo da história. Peck filmou uma estátua, não um homem. Não necessariamente por idolatrar Marx, pois não parece ser esse o caso, mas antes por não penetrar o seu pensamento e, neste processo, revelar um Marx menos repleto de jargões. Dificilmente este filme articula a ideia de uma encenação econômica a uma montagem novelística (que parecem ser propostas do cineasta), pois está baseado num ritmo estranho ao próprio objeto de sua investigação.

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Os primeiros contatos com Engels, apenas modestamente criativos tal como filmados, impossibilitam que os personagens estejam à altura de suas ideias

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Embora o didatismo seja uma escolha evidente da narração, Peck conduz seu filme movendo situações por atropelos para encaixar flashes das principais (as mais virais) ideias de Marx. Não resolve muito: a gênese do jovem Marx não está lá senão como encarnação publicitária do gênio revolucionário que ele significa para a esquerda mundial, apesar da grande caracterização pessoal que August Diehl dá a seu personagem, como grande ator que é. Publica-se a lenda.

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É período pleno da Revolução Industrial e lá está tudo o que ela representou e representa: as máquinas aumentam a produtividade do trabalho, produz-se mais riqueza social, mas esta produtividade aniquila os trabalhadores que enfrentam longas jornadas por salários miseráveis e que esta riqueza não fica com eles

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Engels, Marx, Proudhon, Stirner e outros estão vendo o que Adam Smith e David Ricardo não puderam ver tão claramente pois o objeto de suas pesquisas ainda estava em transformação. O filme expõe estes contatos, as divergências, as ideias teóricas de cada um apenas rapidamente para conseguir estabelecer um corpo básico de sequências, o que é tanto sua força quanto sua fraqueza. Força, pois há um nítido esforço de representar um período central da produção intelectual de Marx dos mais complexos (o da escrita de A Ideologia Alemã, 1845/46, e do Manifesto Comunista, 1848), que talvez pela própria impossibilidade da representação seja disperso e frenético. Fraqueza, pois este frenesi empresta a Marx uma frivolidade cartunesca e, paradoxal que seja, idealista.

Por óbvio, estão lá as críticas aos jovens hegelianos, aos anarquistas (da corrente de Proudhon), aos próprios socialistas; discursos mais ou menos efusivos contra a burguesia, os alentos quantos aos processos revolucionários, a organização de alguns de seus principais textos, a vida familiar com Jenny (sobre quem, aliás, se poderia fazer uma bela peça cinematográfica), enfim, vários momentos constitutivos da trajetória do jovem Marx.

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Acaba que, diante de tudo o que o filme quer mostrar, muito da força de O Jovem Karl Marx seja apenas picotado, fique de rebote daquilo que a ânsia em construir o mito deseja priorizar

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Em observação, parece relevante dizer que a expressão dos conceitos e das ideias de Marx são matérias de duro resgate – e o filme muito bem se esquiva de trazer para o cinema um Marx profeta. Se sempre o foram para os marxistas (e talvez principalmente para eles) e para seus detratores célebres (que em grande parte o leram mal), como não haveriam de ser para um singelo cineasta?

Le Jeune Karl Marx, de Raoul Peck, França/Alemanha/Bélgica, 2017. Com August Diehl, Stefan Konarske, Hannah Steele,Vicky Krieps, Olivier Gourmet.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Eu não sou seu negro

Pedro Henrique Gomes
3 de março de 2017

James Baldwin iniciou o projeto de um livro, Remember This House (1979), que não concluiu, no qual pretendia contar a história dos Estados Unidos através da figura de três amigos seus, notadamente Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Em comum, além da militância pelos direitos civis dos negros americanos, Baldwin chama atenção ao fato de que os três, nos anos 1960, foram assassinados antes mesmo dos 40 anos – ele morreria aos 63 anos, na França, para onde se mudou em 1948. Eu não sou seu negro, dirigido por Raoul Peck, é construído inteiramente a partir de fragmentos dos manuscritos deixados por Baldwin.

“Não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram”

Negro, escritor, militante e orador habilidoso. O texto salienta a sofisticação do pensamento do seu pensamento, a poesia crua de sua prosa, expõe suas contradições de jovem, revela as angústias dos anos de maturidade. Baldwin é muito persuasivo e é algo como isto: não descarreguem as suas responsabilidades sobre nós, o problema do racismo não é simplesmente dos negros, em essência é dos brancos, pois vocês o criaram. O genocídio indígena e a escravidão negra não foram invenções dos negros. O filme chama atenção para as divisões de classe no seio da sociedade americana: “o branco é uma metáfora do poder”.

Peck costura a narração, na voz de Samuel L. Jackson, com imagens de grandes filmes do cinema americano. Baldwin, atento também ao cinema, comenta alguns deles, sua herança, seu imaginário, seus heróis. Não havia representação do negro (nem do índio) no cinema americano senão como elementos de vilania ou a partir de um ponto de vista aristocrático. Não era possível o reconhecimento do negro no cinema. Baldwin cresceu envolvido por essa cultura.

O filme de Raoul Peck é consciente do poderoso material que tem em mãos e não o despeja sobre seus espectadores. Sua narração é pausada, cantada letra por letra em sonoridade irrepreensível, o filme é minucioso nesse sentido puramente estético do rigor documental, tão rigoroso que chega a ser um tanto engessado e apegado ao “televisionismo” da montagem. Ao mesmo tempo, a produção de Baldwin como escritor tratava, não com menor força, de sexualidade, de pressões sociais, em suma, da homossexualidade – Baldwin era homossexual. O filme menciona isso apenas lateralmente através de um relatório do FBI, o que é estranho, pois confiar ao estado policial e racista a descrição de uma particularidade fundamental de seu personagem ameaça (ainda bem que não consegue, graças a ele mesmo) retirar um pedaço dele. Não foi o recorte escolhido pelo cineasta, no entanto.

Outra questão que se imputa negativamente ao filme de Peck, sem surpreender, é um “olhar” semelhante ao que grande parte da crítica (ocidental) despejou (com muita violência, diríamos) sobre os cinemas africanos durante boa parte dos seus anos de formação, a partir de 1960. Em resumo, esperavam que os cineastas dos países africanos “não abandonassem as suas raízes”, que “criticassem o colonialismo” e o seu continuador exatamente perverso, o neocolonialismo pós-independência.

Era preciso ser radical, diziam. O bem aventurado imaginário colonizador (eurocêntrico; nestes casos, em grande parte o francês) pretendia um certo cinema africano: aquele que eles gostariam de ver. Os cineastas africanos queriam outra coisa – ou pelo menos algumas outras coisas, mas não há espaço para remontar este debate agora. É claro que ao salientar isso não se interrompe as críticas ao filme, apenas se questiona uma modalidade específica de juízo valorativo que parece querer um tipo de filme adequado aos seus desejos, esquecendo o filme tal como ele foi concebido.

I am not your negro, de Raoul Peck, França/EUA. Com James Baldwin, Martin Luther King, Malcolm X, Medgar Evers, Dick Cavett, Samuel L. Jackson, Henry Belafonte.