Pedro Henrique Gomes

Idrissa Ouedraogo: história e memória

Pedro Henrique Gomes
2 de março de 2018

É de uma precisão cortante a obra que nos legou o cineasta Idrissa Ouedraogo, morto em 18 de fevereiro. Nascido em Burkina Faso, Ouedraogo reinventou um cinema que ainda inventava a si próprio. Apesar de Burkina Faso ter iniciado uma política nacional voltada ao desenvolvimento das artes locais que permitiu bom desenvolvimento do cinema em comparação com os demais cinemas africanos, Idrissa Ouedraogo é um dos poucos cineastas do país que conseguiu fazer mais do que um ou dois filmes.

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Nesse cenário, ele teve sólida e reconhecida obra, nacional e internacionalmente, a partir dos anos 1980, quando começa a filmar

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Seus filmes tiveram penetração mundial e, mais importante, visibilidade nos países africanos. Ele instruiu, isto é, filmou a África para os africanos e nela encontrou também as suas obsessões temáticas e estéticas. São as tradições e as transições que a vida coloca diante dos indivíduos as questões que mais lhe interessavam filmar.

Eis um cineasta que vislumbrou uma linguagem particularmente africana (um debate frequente), diante de todas as dificuldades que atravessavam e persistem nas periferias cinematográficas no mundo. A África ocidental francófona subsaariana é, como foi sempre, um território em disputa pelos imaginários, pelas identidades nacionais, os processos de descolonização que explodiram nos anos 1960 e, finalmente, o neocolonialismo. Uma vez livres da invasão colonialista formal, era preciso reconstruir a memória, traçar uma história da memória.

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Idrissa as filmou (suas memórias pessoais) ao mesmo tempo em que fornecia as bases para a consolidação de outras, engendrou uma experiência visual que não se acomodou em ser simplesmente política como muitas vezes se exigiu dos cineastas e demais artistas africanos

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Ele reconheceu, eu diria até de forma pioneira, que a luta pela restituição das identidades nacionais, para além dos esforços de independência econômica, política e cultural, é travada também por imagens e por palavras, pois é preciso discutir a questão das línguas africanas por meio do cinema. Estas questões são muito bem colocadas pelo escritor queniano Ngugi Wa Thiong’o, em artigo publicado no livro Cinemas no Mundo – África: indústria, política e mercado, organizado pela Alessandro Meleiro (Ed. Escrituras).

Ouedraogo foi um cinéfilo e seus filmes mais conhecidos, Yaaba e Tilaï, são expoentes da coerência de seu estilo: um gosto profundo e um interesse claro por preencher o silêncio com a alma dos indivíduos que filmava. É uma relação espiritual e material, uma conexão entre a terra e os céus, os vivos e os mortos. E que não se acaba.

Neste sábado, 03, a Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, programou uma homenagem ao cineasta, às 19h30, onde eu comentarei o legado de Ouedraogo após a exibição de Yaaba (1989), um de seus grandes filmes. Será uma sessão especial!