Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender a série Cidade Invisível (Parte 2)

Flávia Cunha
1 de março de 2021

Atenção: O texto contém spoilers do enredo da série Cidade Invisível

O apagamento dos povos indígenas da primeira temporada de Cidade Invisível foi abordado por aqui, na semana passada. Nessa segunda parte do texto, pretendo demonstrar o quanto a produção poderia ter sido ainda melhor se tivesse dado destaque à questão indígena. Para entendermos a importância dos povos originários para o folclore brasileiro, a Literatura pode ser um bom caminho. Afinal, as lendas e mitos, que são o principal destaque da série da Netflix, são muito presentes na cultura indígena. 

Preservação ambiental

Em primeiro lugar, é importante enfatizar como os relatos orais indígenas têm uma conexão evidente com a trama apresentada na série, por valorizarem a preservação da Natureza. Claro que, apesar de não haver ênfase à questão indígena, os personagens de Cidade Invisível acabam cumprindo a função de defensores da floresta. Mesmo o Boto, personagem folclórico mais conhecido por seduzir mulheres, aparece, no enredo, defendendo a permanência dos moradores na Vila Toré, localizada próxima à cidade do Rio de Janeiro, e alvo de especulação imobiliária.

Realidade mais ameaçadora

Porém, me parece que os roteiristas perderam uma boa chance de falar sobre as ameaças reais aos povos originários. Como sabemos, os indígenas são vítimas de evidente perseguição desde o início do governo Bolsonaro. Para fazer essa conexão, bastaria ter como centro de ação da série a Amazônia ou o Pantanal, onde a extração ilegal de madeira e o garimpo geram grandes conflitos. Essa contextualização à realidade brasileira poderia trazer ainda mais interesse internacional, já que muitos países estão atentos à preservação de aldeias e da cultura indígena. Imaginem o Curupira, por exemplo, interagindo com uma tribo indígena? 

Sugestões literárias

Enquanto seguimos no aguardo da segunda temporada de Cidade Invisível e na esperança de que haja mais protagonismo indígena, selecionamos algumas obras para melhor compreensão do folclore dos povos originários do Brasil.

Nós – Uma Antologia de Literatura Indígena

Dez autores de diferentes nações indígenas participam desta antologia. As histórias narradas nesta publicação vão da origem do mundo ao amor impossível. Os relatos demonstram a profundidade e diversidade de temas envolvidos na literatura de autoria indígena. Os autores são das nações Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Vozes Ancestrais – Dez Contos Indígenas 

A obra é de autoria do professor e escritor premiado Daniel Munduruku, pertencente à etnia indígena Munduruku. Nesta publicação, o autor coletou e transcreveu contos tradicionais de dez povos originários. O resultado é um apanhado de tradições e crenças, em histórias que falam sobre elementos da Natureza.

Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros

O livro foi escrito e ilustrado por Walde-mar de Andrade e Silva, a partir da vivência de 8 anos com indígenas da região do Xingu, no norte do Mato Grosso. No total, são 24 histórias, entre elas a que narra a lenda da Iara, uma das personagens presentes na série Cidade Invisível

Sehaypóri – O livro sagrado do povo saterê-mawé

A publicação é uma homenagem aos pajés dos saterê-mawê, povo indígena que habita a região do Rio Amazonas. O autor da obra, Yaguarê Yamã, é  professor, formado em Geografia em uma universidade de São Paulo, e atuante do movimento indígena no Amazonas. Sehaypóri foi selecionado pelo catálogo White Ravens para a Biblioteca de Munique e a Feira de Bolonha, um dos eventos de literatura infantojuvenil mais reconhecidos mundialmente.

Para conhecer outros títulos de literatura de autoria indígena, clique aqui. 

Imagens: Netflix/Divulgação

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Irlandês

Pedro Henrique Gomes
22 de novembro de 2019

Só o narrador compreende (quase) tudo de antemão em O Irlandês. Quem narra, dentro do filme, é o personagem de Robert De Niro, cujas ações enformam a trama. Por isso, a trajetória da vida de Frank Sheeran é o fio condutor de todos os acontecimentos do filme. Não é pouco, pois o recorte vai da Segunda Guerra Mundial, passa pela Revolução Cubana, pelo assassinato de Kennedy e pela Guerra do Vietnã, por Watergate, pela Guerra do Kosovo e invade o novo milênio. Mas a monumentalidade do filme de Martin Scorsese não é explicada por sua duração ou por seu plano de fundo histórico, mas pelo aproveitamento preciso de seus elementos dramáticos e pelas instâncias de sua narração. Em uma história atravessada por incontáveis formas de violência, tanto aquela que envolve a trama quanto a que lhe serve de subtexto (a “História”), O Irlandês está configurado, também ritmicamente, não para surpreender o espectador ou aprisioná-lo na espera pelo grand finale, mas para contorcer e explorar cada uma de suas sequências em igual medida de grandeza.

É precisamente nesse espaço mediado pela força que o personagem de Robert De Niro transita ao longo de todo o filme, e o faz com capricho. Cindido entre a necessidade de “ganhar a vida” e a procura por algo maior e mais virtuoso, Sheeran se insere num espaço que a princípio não é seu. Nunca poderia ser. Nascido logo após o fim da Primeira Grande Guerra, ele se tornou um veterano da Segunda. Lá aprendeu a ser impiedoso. De motorista de caminhão convertido em líder sindical e braço de direito de mafiosos, Sheeran constroi a sua trajetória de vida encurtando a vida de outros. A encenação de Scorsese lhe dá o tempo e o espaço necessários para que suas contradições e ambiguidades apareçam, saltando entre os vários tempos narrativos, pausando e acelerando os desdobramentos e incorporando os eventos externos ao próprio mal-estar e forma de consciência do protagonista-narrador, o narrador que confessa, que relata a sua vida de crimes que não comporta grandes ambições ou remorsos: remorso é ser preso ou morto (a figura cinematográfica histórica do gângster sempre causou um borramento nas fronteiras da justiça, instituição que é, grosso modo, a única a tomar corpo no filme como mediadora dos conflitos que, paradoxal que seja, geralmente se dão entre os próprios conglomerados mafiosos).

Apesar do tom melancólico que ecoa aqui e ali a partir de uma espécie de abandono que muitos dos travellings que o filme opera indicam, inclusive em seus planos iniciais e finais, o abrigo que Frank Sheeran encontra não está exatamente nos laços de sangue, mas nos laços do crime, que, como se sabe, não são sólidos. É também a esta ambiguidade das relações (mais que na “complexidade” dos personagens) de família e poder que Scorsese deposita o esforço dramático do filme.

O modelo narrativo de O Irlandês alterna tempos como que para reforçar a ideia de que o passado e o futuro são reféns do presente e se confundem nele e, embora siga a cartilha cronológica clássica, em que um acontecimento prepara o terreno para outro, também a subverte. Essa manipulação temporal da ação lhe confere uma medida de grandeza incomum, pois seria fácil se perder em meio a tantas entradas e saídas de personagens, tantos elementos para aguçar a dispersão do foco narrativo. Scorsese é fiel ao passo macabro que seu protagonista realiza e raramente sai dele para dar movimento à trama do filme – e o faz com a calma do monge e a sabedoria do xamã. Lá onde Os Bons Companheiros e Cassino investiam na tradição, vá lá, épica da máfia (as drogas, o sexo, a sede juvenil da conquista do poder), O Irlandês se assenta na sobriedade da luz, nos pensamentos já corroídos pelas dúvidas e vacilos contaminados pelo tempo e a experiência, o que faz dele um filme mais nublado e disposto a fazer circular as suas contradições – e as de seus personagens que envelhecem. É asfixiante.

Essa obsessão pelos detalhes da representação não é arbitrária e o panorama que ela forma é inseparável da brutalidade da encenação. Se todo o ideário do American Dream estava florescendo “lá fora”, se a política externa do país, por meio das guerras, confirmava sua sanha conquistadora, O Irlandês não se mantém alheio a isso, mas lhe reserva pouca comoção. Baseado no livro de I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, em que os relatos de Sheeran confessam as suas práticas, o filme de Scorsese, assim como O Lobo de Wall Street, é fiel na medida certa aos seus contornos e contextos e não sucumbe a sociologismos para justificar as ações daquilo que deseja representar. Scorsese é um grande narrador criado ao modo dos clássicos: não se trata somente de “filmar o real” passivamente, mas de transformá-lo em criação própria, dar-lhe uma forma nova e revigorada.

Se a mirada de Scorsese aponta agora para o fim de um ciclo particular de representação (que a sua geração já apresentara modificada em relação aos cineastas das gerações anteriores), coisa que o faz com elegância, existem sempre inúmeras formas de recuperar os seus motivos. A tarefa só fica um pouco mais árdua para os cineastas que se empenharão nela.

The Irishman, de Martin Scorsese (EUA, 2019). Com Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Harvey Keitel, Anna Paquin, Ray Romano, Bobby Cannavale.

Tão série

O Próximo Convidado Dispensa Apresentações

Geórgia Santos
4 de fevereiro de 2018

Antes de David Letterman encerrar a estada de 30 anos no comando do The Late Show, ele entrevistou o então presidente Barack Obama, em maio de 2015. Incerto do próprio futuro, perguntou quais os planos de aposentadoria do ainda jovem político.

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“Eu estava pensando, você e eu, nós poderíamos jogar dominó juntos, sei lá, ir até o Starbucks mais próximo”, disse Obama

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Bem, o entrevistador não esqueceu da sugestão. Com um dos conhecidos copos do Staburcks em primeiro plano e uma barba quase messiânica, telefonou ao ex-presidente e fez uma proposta. Aguardou. Compensou. Barack Obama é o primeiro entrevistado do novo projeto de Letterman no Netflix, My Next Guest Needs No IntroductionO Próximo Convidado Dispensa Apresentações. E, de fato, dispensa.

Alguns poucos reclamaram da empolgação de David Letterman ao entrevistar o ex-presidente. Não gostaram do que chamaram de bajulação. Não concordo. Aliás, discordo tanto quanto possível. O que se vê não é bajulação, e sim um homem grato por ter encontrado alguém por quem nutre imenso e verdadeiro respeito, como ele mesmo diz.

Ao longo de quase uma hora, Obama fala bastante, com a usual discrição. Prefere discutir o macro a entrar nas minúcias do novo governo. Mas esta não é uma entrevista qualquer. A conversa com o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos é permeada por uma pesada carga histórica e emocional. Letterman viajou à Selma, Alabama, para atravessar a ponte Edmund Pettus ao lado do deputado John Lewis, presente no Domingo Sangrento de 1965. Na ocasião, militantes do movimento pelos direitos civis realizaram um protesto pacífico para reivindicar o direito da população afro-americana ao voto. Foram recebidos com cassetetes, gás lacrimogêneo e sangue. Muito sangue.

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O jornalista perguntou a Lewis o que estava do outro lado da ponte, simbolicamente

E o ativista respondeu sem titubear: “Obama”

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E Obama sabe disso. Sabe que é fruto daquela luta. Sabe que sem Martin Luther Jr e a entrega e o sangue de milhares de outros ativistas, os Estados Unidos não teriam tido o primeiro presidente negro em 2008. Isso também é parte da preocupação do Democrata com a horizontalidade das políticas públicas e a diminuição da desigualdade.

 

Em poucos minutos, ele consegue explicar o problema da desigualdade crescente que assola o mundo. Mais do que isso, lança a pergunta fundamental a que devemos responder.

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Como fazer uma economia nesse ambiente tecnológico globalizado que seja boa para todos?

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Precisamos buscar essa resposta. Talvez a busca seja mais importante do que a resposta em si. A primeira temporada prevê seis episódios, lançados mensalmente. Além de Obama, serão entrevistados George Clooney, Malala Yousafzai, Jay-Z, Tina Fey e Howard Stern. Uau. Não sei quanto a vocês, mas eu estou muito ansiosa.

Tão série

Mindhunter – Para rever alguns conceitos

Geórgia Santos
27 de janeiro de 2018
MINDHUNTER

Na penitenciária de Vacaville, na Califórnia, Edmund Kemper  descreve como matou suas vítimas enquanto, amigavelmente, aperta a jugular de um agente do FBI. Concentrando os 140kg no indicador esquerdo, ele explica, sem alterar a voz, como sequestrou, matou e estuprou adolescentes. Sim, nesta ordem. Do alto de dois metros de altura, ainda conta como matou, decapitou e violentou a própria mãe. Sim, nesta ordem.

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Esta cena, retratada na imagem de capa, é a tônica de Mindhunter, a grata surpresa do ano passado e, na minha modesta opinião, uma das melhores séries de 2017. Confesso que, dentre tantos títulos do catálogo da Netflix, escolhi somente por causa da minha estranha obsessão com serial killers. Ou melhor, com suas histórias. Foi uma opção despretensiosa, mas que valeu a pena.

Nos anos 70, agente Holden Ford (Jonathan Groff), do FBI, se dedica a traçar um perfil psicológico para o então novo fenômeno dos assassinatos em série. A ideia é desenvolver um método que os ajude a compreender porquê a morte quando não há “motivo”. Para isso, eles passam a entrevistar assassinos já julgados e condenados a prisão perpétua ou ao corredor da morte. São todos personagens reais como o aterrorizante, estranho e simpático – sim, ele é – Ed Kemper (Cameron Britton).

A série foi criada por David Fincher  e é baseada em fatos reais. O roteiro foi adaptados do livro “Mindhunter: O primeiro caçador de serial killers americano”, de John Edward Douglas e Mark Olshaker. Douglas atuou como analista do FBI por 25 anos e foi pioneiro na elaboração de perfis psicológicos, tanto que o termo serial killer sequer existia. Apesar do realismo, Fincher não foge de uma boa dose de licença poética e suspense. São dez episódios de cerca de 40 minutos cada. Apesar da longa duração de cada capítulo, os ganchos típicos dos suspenses psicológicos prendem o espectador no sofá, com os olhos vidrados no espelho negro.

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O mais interessante, porém, é que não é uma série policial comum. Ao ponto de fazer com a gente reavalie todo um sistema interno de julgamento

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A produção da Netflix faz com que a gente abandone uma pré-concepção de que todo o crime é vazio, por maldade intrínseca. Não que não exista, mas a série é um exemplo concreto de que uma mente destruída por negligência e violência vai repetir os padrões que internalizou como normais. Afinal, não é produto de ficção. Não se engane, não é uma versão elaborada de Criminal Minds. Esqueça as grandes perseguições e os atos heróicos de Morgan e Hotchner. Mindhunter é um thriller sufocante e angustiante que nos faz questionar a própria existência e destino. Felizmente, a segunda temporada foi confirmada para 2018.

https://www.youtube.com/watch?v=7gZCfRD_zWE

Tão série

O fim da p*** do mundo

Geórgia Santos
20 de janeiro de 2018

No feriado do Ano Novo, minha prima e afilhada e antenada e adolescente de 15 anos me falou sobre uma estreia da Netflix programada para janeiro. The End of The F*** World (algo como O Fim da P*** do Mundo), uma série de humor negro sobre um adolescente psicopata que pretende deixar de matar animais para assassinar algo um pouco maior. Ela sabe que eu gosto de um sanguinho. Assisti ao trailer.

https://www.youtube.com/watch?v=vbiiik_T3Bo

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Amei. Aguardei. Assisti ao primeiro episódio, ao segundo, ao terceiro … ao oitavo. Amei. 

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Só não é uma comédia de humor negro, como promete. Apesar de alguns momentos hilários e de diálogos impregnados de sarcasmo, a série britânica é um suspense. E dos pesados. Com direito a tensão, sofrimento por antecipação, angústia e muito, muito sangue. Sangue nível Tarantino. Sangue. Baseada na HQ homônima de Charles S. Forsman, a história ainda apareceu em um curta-metragem antes de ser transformada em série pelo serviço de streaming. 

A trama envolve dois adolescentes perturbados por motivos diferentes. James (Alex Lawther) é um psicopata calado, apegado à sua faca de caça, que fritou a mão para tentar sentir alguma coisa e agora quer matar alguém, pra ver como é. Apenas. Alyssa (Jessica Barden) é uma rebelde arrogante que fala sem parar e tem uma forte tendência maníaco-depressiva, pendendo para uma ninfomania wanna be. Os dois fogem de casa sem rumo. Levam apenas o desdém pelas figuras de autoridade que tem em casa – justificado, diga-se de passagem.

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Eles são tão estranhos que beiram à perfeição. Eu oscilava constantemente entre querer dar um soco no estômago de cada um e pegar no colo para fazer um carinho

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É como se eles estivessem presos em uma sociedade da qual não fazem parte. São desajustados e é injusto que isso seja um problema. Em uma cena fantástica do primeiro episódio, Alyssa quebra o próprio celular em um ataque de fúria. A colega que estava sentada diante dela havia enviado uma mensagem em vez de conversarem como duas pessoas normais que dividem uma mesa durante o almoço. James também não tem celular. Os dois apenas observam essa sociedade torta sem empatia, sem pares. Eles vão vivendo, sem futuro, enfrentando o sistema insolente que se apresenta como a salvação quando os dois sabem que é o carrasco.

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Eles vão vivendo, nessa roadtrip imprevisível. Absolutamente triste e linda

Uma viagem de descobertas e fins

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A arquitetura da série acompanha a sofreguidão do roteiro. São oito capítulos de 20 minutos, fáceis de consumir de uma só vez. Ela é projetada para ser consumida assim. E para facilitar, a trilha sonora é impecável. Se a série fosse um biscoito, a trilha com Graham Coxon (Blur), Fleetwood Mac, Mazzy Star, Shuggie Otis e Françoise Hardy seria o leite. Sem contar nas inúmeras referências à cultura pop.

Confesso que quando minha prima e afilhada e antenada e adolescente me falou sobre essa série, não achei que fosse gostar tanto. Por mais que a premissa do sangue e da psicopatia me interesse, nunca tive muita paciência para ficções que abordam conflitos adolescentes. Mas no final das contas, é simplesmente uma ótima produção que mistura humor negro, violência e bizarrices surreais de maneira primorosa. É uma arte subversiva. Entrenenimento na sua melhor forma. 

Tão série

Master of None – Você precisa ver antes de o ano acabar

Geórgia Santos
26 de dezembro de 2017

No último episódio da primeira temporada de Master of None, da Netflix, um Dev (Aziz Ansari) engasgado após engolir uma tonelada metafórica de pontos de interrogação pede socorro a seu pai, Ramesh (interpretado pelo pai de Ansari, Shoukath). São muitos os porquês envolvidos em seus relacionamentos falidos e na crescente incerteza sobre o futuro profissional em uma carreira que parece definhar – os típicos fantasmas que saem debaixo das camas das crianças assustadas para assombrar todos os trintões desencontrados. Dev não consegue decidir. Não consegue decidir de quem gosta, qual é a mulher certa, o que ele quer fazer da vida. Ele não consegue arriscar. Ele não consegue decidir.

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Ramesh – “Você precisa aprender a tomar decisões, cara. Você é tipo aquela mulher sentada em frente à figueira, encarando os galhos enquanto a árvore morre.”

Dev – “Que mulher? Que árvore?”

Ramesh – “Sylvia Plath? A Redoma de Vidro? Tu nunca lê, tá sempre no youtube…”

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“Eu vi minha vida ramificando-se diante de mim como a figueira verde da história. Na ponta de cada galho, como um figo gordo e roxo, um futuro maravilhoso acenava e piscava. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos, outro era uma poetisa famosa e consagrada, outro era uma professora brilhante, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e outros vários amantes com nomes exóticos e profissões excêntricas, outro ainda era uma campeã olímpica. E, acima de tais figos, havia muitos outros. Eu não conseguia prosseguir. Encontrei-me sentada na forquilha da figueira, morrendo de fome, só porque não conseguia optar entre um dos figos. Eu gostaria de devorar a todos, mas escolher um significava perder todos os outros. Talvez querer tudo signifique não querer nada. Então, enquanto eu permanecia sentada, incapaz de optar, os figos começaram a murchar e escurecer e, um por um, despencar aos meus pés.”

Sylvia Plath , The Bell Jar. New York: Bantam Books, 1972.

A série gira em torno do paradoxo da escolha. Toda escolha tem uma consequência. E, como esclareceu Plath, toda escolha implica na anulação de outra. Talvez Dev continue não lendo Sylvia Plath, mas ele decidiu. Decidiu ir para a Itália aprender a fazer massa e, quem sabe, encontrar algumas das respostas.

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Na segunda temporada de Master of None, Dev já não é mais o mesmo. Arnold (Eric Wareheim), Denise (Lena Waithe) e Brian (Kelvin Yu) já não são mais os mesmos. Eles todos estão encarando a figueira

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E o resultado disso é ainda melhor é uma primorosa leitura da vida contemporânea. Dentre os dez episódios está uma homenagem ao filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica; uma celebração a Nova York em um episódio totalmente silencioso, produzido a partir da perspectiva de uma pessoa surda; um retrato (desastroso) da cultura do Tinder; outro episódio dedicado inteiramente à Denise, em que ela assume sua homossexualidade diante da família; além de referências à Bob Dylan e Vanilla Sky; questões de fé e tradição, muçulmanos comendo bacon.

E preso a essa roda viva está um Dev mais maduro, que se vê também como parte da engrenagem que critica. Ele continua apontando o racismo sempre que é confrontado com isso, mas também é flagrado repetindo padrões. Em um episódio, ele não reconhece seu maquiador, um homem negro, em um ato quase casual de racismo. Ele também falha em reconhecer no amigo o comportamento de um predador sexual. Sem contar na ficante racista, problema que ele só aponta depois de já ter transado com ela.

Allora, diz Dev constantemente. Aquela palavra que a gente usa para preencher o espaço vazio da conversa, que sai automaticamente, sem pensar. Allora, com todos os defeitos, Dev está tentando. E nós? Estamos? Em termos evolutivos, 2017 foi um ano nulo. Retrocedemos no que tange à política e ao convívio social, como se nunca tivéssemos avançado daquele estágio de Homo Habilis – e olhe lá.

Allora, está na hora de parar de encarar a figueira e, finalmente, escolher um figo. E assistir Master of None pode ajudar, definitivamente. Ah, e tem o John Legend tocando piano. Allora…

 

Foto: Divulgação

 

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Jogo Perigoso

Pedro Henrique Gomes
3 de novembro de 2017

O jogo aludido pelo título nacional de Gerald’s Game, a bem dizer, dura muito pouco tempo. Casal de anos, Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie Burlingame (Carla Gugino) vão para uma casa distante de qualquer contato externo para retomarem o desejo um pelo outro, que parece adormecido. Gerald propõe imobilizá-la na cama utilizando algemas e toma alguns remédios para ganhar o ímpeto que lhe falta na vida cotidiana, e com a mulher com a qual partilha seus desejos. Ela, visivelmente constrangida, aceita, de início, a brincadeira. Acontece que o ato não se consuma. Após um desentendimento com os critérios do jogo, que oscila entre o desejo e o abuso, Gerald tem um ataque cardíaco fatal: está morto. Jessie fica então algemada num local totalmente isolado onde seus gritos não se farão ouvir.

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O jogo então passa da ação física para a ação mental

Jessie, sozinha, alucina

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Mike Flanagan, diretor de Jogo Perigoso, tem apreço pelo silêncio, inclusive visual, de sua encenação. Seu filme anterior, Hush (outro filme puramente mental, já que muitos sentidos faltam à protagonista), também se passa em um cenário isolado, também privilegia amplificar suas matérias de expressão a partir de uma figuração sóbria e de sets notavelmente discretos. É, ao que parece, esse o estilo do seu cinema. Ele tem, diga-se, boa noção do espaço onde busca instalar o medo, a estrutura da tensão e a dramaturgia, muito simples, que lhe convém. As evidências apontam para um cineasta pragmático (um tipo de pragmatismo narrativo que não existe em Stephen King, por exemplo, autor da obra na qual o filme se baseia; King é um escritor de floreios, de parênteses, de digressões).

O aprisionamento de Jessie, dadas as circunstâncias em que se deu, a faz retornar a memórias antigas, mais ou menos resolvidas, no entanto ainda certamente dolorosas. É na própria família que ela conhece a monstruosidade de um abusador – algo que vai carregar em seu olhar receoso diante das brincadeiras sexuais do marido. Incapaz de reagir agora, frágil demais para relutar quando criança é o que nos mostra a montagem dos acontecimentos que se dá em pelo menos três instâncias: o que ocorre de fato, o que ela imagina acontecer e o que é memória.

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As marcações que a estrutura narrativa do filme organiza apelam para ampla redundância discursiva

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A sanha explicativa, adotada no quarto final do filme, acaba sendo fatal ao encerramento dramático e, ao que me parece, até emocional: ela rompe com o aspecto figurativo que ele havia criado até boa parte de sua história, rompe com o ritmo de seu desenvolvimento, apressando-se em fornecer sentido ao mistério, a fazer passar a sua mensagem como um crente com seu livro sagrado.

O que faz desandar a sua habilidade de conduzir o mistério disparado inicialmente é sua narração altamente coercitiva – o seu Mal de Alzheimer narrativo: quer se fazer entender com absoluta rigidez, forçando explicações verbais (orais) tranquilamente dispensáveis uma vez que já estavam inscritas no filme visualmente – ou o contrário. Das duas, uma: ou Flannagan não confia na força das imagens que cria ou não confia nos espectadores que cultiva.

Gerald’s game, de Mike Flanagan, EUA, 2017. Com Carla Gugino, Bruce Greenwood, Carel Struycken, Chiara Aurelia.

Tão série

Três maratonas para curtir durante as férias de julho

Geórgia Santos
8 de julho de 2017

As férias de julho estão aí, trazendo com elas o friozinho do inverno. E nada combina melhor com o inverno do que passar horas em frente à televisão – embaixo de um cobertor, claro. E comendo pipoca, óbvio. Por isso, pensamos em três maratonas para curtir durante as férias. São séries que estrearam no último mês no Netflix e que acomodam essa necessidade urgente de deixar a marca do bumbum no sofá.

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House of Cards

Já discutimos a nova temporada de House of Cards por aqui, e como se uma indicação não bastasse, aqui vai a segunda. Tem estômago para encarar um político de moralidade dúbia dando um jeitinho na legislação e contornando a Constituição para permanecer no poder? Não, eu não estou falando do Temer, só do casal Underwood. A maratona é perfeita para as férias de Julho, afinal, frieza é o que não falta. Prepara o cobertor!

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Orange Is The New Black

A nova temporada começa três dias após a morte de Poussey Washington (Samira Wiley), é de partir o coração. Mas mais do que isso, as detentas abordam temas que tem permeado a nossa realidade durante uma rebelião, como o movimento Black Lives Matter. A gente vê, através das grades da Penitenciária de Litchfield, o preconceito do nosso mundo enquanto mulheres tentam encontrar sua voz. É possível verVale cada minutinho, cada grão de pipoca.

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GLOW

Toda a exuberância da década de 80 transborda em GLOW – Gorgeous Ladies of Wrestling. Em tradução livre, Damas Maravilhosas da Luta. A série retrata os desafios de Ruth Wilder (Alison Brie), uma atriz cuja última chance em Hollywood é participar de um programa de TV sobre luta feminina. Collants, drogas, meias de lurex e mais um monte de coisas inapropriadas e engraçadas. A trama toda é baseada em uma história real, de um programa real.

Tão série

Arrested Development está de volta (em 2018)

Geórgia Santos
18 de junho de 2017

Nesta semana visitei Balboa (a ilha e a península), na Califórnia. O lance é que não tem como não lembrar de Arrested Development ao ver essa placa, pois é lá que grande parte da série se passa.

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Mas o lance mais lance, mesmo, é que o serviço de streaming Netflix confirmou a tão esperada quinta temporada da série para 2018 e para nooooooooossa alegria. O retorno desse (já) clássico da TV americana mantém o estilo e o formato, já que o criador original, Mitchell Hurwitz, está de volta. Além disso, o elenco regular é exatamente o mesmo das temporadas anteriores.

Arrested Development gira em torno de Michael Bluth (Jason Bateman) e sua (mais do que) excêntrica família. Ele é o primogênito de George Bluth Sr. (Jeffrey Tambor), notório por fraudar absolutamente tudo o que é possível em seus empreendimentos imobiliários e ser preso já no primeiro capítulo, e Lucille (Jessica Walter), uma socialite egocentrica e péssima mãe que oscila entre ser superprotetora e super negligente. Michael ainda é pai solteiro e cria, sozinho, o filho George-Michael (Michael Cera). Sim, o nome dele é esse.

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O desafio desse cara é manter os negócios funcionando após a prisão do pai e tentar impedir que a família mimada gaste o que eles já não tem.

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Após as contas da família e da empresa serem congeladas, ele percebe o quanto seus estranhos irmãos George Oscar Bluth II (Will Arnett), Buster Bluth (Tony Hale) e a irmã Lindsay Funke (Portia de Rossi) gastam. Sem contar no bizarro cunhado, Tobias (David Cross) que teve sua licença de psiquiatra cassada e agora persegue carreira no teatro (e toma banho de short jeans). Os dois tem uma filha, Maeby (Alia Shawkat) – que em inglês soa como Talvez.

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“Foi indicada a 25 Emmy Awards e venceu seis, aclamada pela crítica”

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Originalmente, Arrested Development foi ao ar por três temporadas na Fox, entre 2004-2006. Apesar de nunca ter alcançado grandes índices de audiência, a série se tornou referência como uma das melhores de todos os tempos. Tanto que foi indicada a 25 Emmy Awards e venceu seis, aclamada pela crítica. Hoje é uma das queridinhas do público cult, tanto que a Netflix resolveu contratar o elenco para uma quarta temporada em 2013. E agora, cá estamos no aguardo da próxima etapa.

Em um comunicado no mês passado, Hurwitz disse que “em conversas com executivos da Netflix, nós todos sentimos que histórias sobre uma família narcisista e de comportamento errático no ramo imobiliário – e seus desesperados abusos de poder – não são representadas adequadamente na TV”, em uma clara e cômica referência à família Trump.

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“Eu sou tão agradecido a eles por esse sonho se tornar realidade e poder trazer os Bluths de volta à vida, George Sr., Lucille e as crianças; Michael, Ivanka, Don Jr., Eric, George-Michael, e quem eu estou esquecendo? Ah, Tiffany. Eu disse Tiffany?”

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Se ainda não viu Arrested Development, todas as temporadas estão disponíveis na Netflix.

Catraqueanas

Amor e desilusão na Distribuição de conteúdo por assinatura

Gustavo Mittelmann
27 de fevereiro de 2017

No último texto, falei sobre o comodismo dos usuários mobile e como isso estava resultando em um formato vertical para os anúncios em vídeo nas redes sociais. Bom, preciso fazer a ressalva de que somos preguiçosos, mas exigentes. E essa segunda característica, algumas vezes, pesa mais. O exemplo mais claro dessa dominância, senti na minha própria pele através dos serviços de assinatura.

É possível fazer uma ressalva dentro da ressalva? Bom, o texto é meu, então… liberdade poética: na verdade nunca fui preguiçoso em se tratando de garimpar filmes, álbuns e literatura para baixar de forma obscura (por pura falta de oferta oficial). Mas, assim como cada um de vocês, também fui seduzido pela facilidade nascida com os distribuidores de conteúdo por assinatura. Abracei o comodismo nas diversas embalagens em que me foi oferecido.
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“Considero uma troca justa: o aplicativo poupa meu esforço de busca na grande rede, e, por por facilitar minha vida, recebe mensalmente uns reais do meu bolso”

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Com essa fórmula, o Netflix se transformou no queridinho da galera. Existe ônus? Existe, claro. Não encontro lá tudo que gostaria de ver; há uma curadoria do conteúdo disponível, seja por entraves com um ou outro estúdio, seja por qualquer outro motivo. Não vem ao caso. O que importa, de fato, é que as restrições são compensadas com opções de qualidade e investimento sério até mesmo em produções próprias. Eu fecho o mês achando que fiz um ótimo negócio.
Essa mesma sensação de compensação ganha decibéis de realidade cada vez que a estrada é longa e o churrasco pede trilha sonora. É como ter desenvolvido um superpoder musical, de escutar praticamente tudo que eu quiser na hora que quiser. O Spotify só tem um desafeto aqui em casa, e não é o Apple Music, que não faz nada além de gerar meia dúzia de playlists temáticas. A mágoa fica por conta do iPad e seus 160gb de músicas engavetadas para o esquecimento.
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A Amazon me traiu

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Mas já me senti enganado, traído e desconsolado por quem eu menos imaginava. Amazon, sua falsa! Anos passei invejando os americanos com seus kindles e ar pseudo-intelectual nos parques e metrôs. Sim, essa coluna toda é para tratar, de forma quase terapêutica, da minha desilusão e das feridas abertas pelo Kindle Unlimited. Me atirei de cabeça logo que o serviço passou a ser oferecido no Brasil. Esperando, ávido, por novos títulos para matar a minha demanda reprimida.
Com o passar dos meses, no entanto, essa espera foi se transformando em abatimento até que não me restou outra chance senão abandonar precocemente um relacionamento que nascera repleto de sonhos de um futuro juntos. Não me restara dúvidas de que eu tinha caído por uma bonitinha mas ordinária assinatura. Uma bonita embalagem, de boa família, mas recheada de folhetins sabrinescos, autoajudas de quinta categoria e meia dúzia de clássicos escolares. Cerca de 50 mil títulos em português para fazer volume apenas. Tudo que era bom, que era lançamento ou que era interessante de fato, eu tinha que comprar fora do plano Unlimited.
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“Abandonei a comodidade da relação por me sentir feito de idiota”

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Tive uma recaída na rede. Passei a buscar tudo que não encontrava no meu relacionamento Kindle: bons livros de grandes autores e editoras respeitáveis, e revistas dos mais variados temas e procedências. Abandonei a comodidade da relação por me sentir feito de idiota. Amazon, o problema não sou eu, é você.
Escuta o que vou te dizer pra não acabar os dias sozinha: mais importante que o tamanho do acervo é o entretenimento que proporciona. Investe um tempinho, paga uns bons drinks e usa esse mesmo papinho que tu usou comigo pra convencer as editoras que é mais vantajoso pra todos ganhar no volume de vendas, encorpar o sistema de assinatura mensal com conteúdo gratuito e se tornar uma referência de fato e por merecimento, do que ganhar um pouco mais por vendas avulsas e esparsas em um país sem o hábito de leitura. Quem sabe, daí, rola um revival entre nós.