Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender a série Cidade Invisível (Parte 2)

Flávia Cunha
1 de março de 2021

Atenção: O texto contém spoilers do enredo da série Cidade Invisível

O apagamento dos povos indígenas da primeira temporada de Cidade Invisível foi abordado por aqui, na semana passada. Nessa segunda parte do texto, pretendo demonstrar o quanto a produção poderia ter sido ainda melhor se tivesse dado destaque à questão indígena. Para entendermos a importância dos povos originários para o folclore brasileiro, a Literatura pode ser um bom caminho. Afinal, as lendas e mitos, que são o principal destaque da série da Netflix, são muito presentes na cultura indígena. 

Preservação ambiental

Em primeiro lugar, é importante enfatizar como os relatos orais indígenas têm uma conexão evidente com a trama apresentada na série, por valorizarem a preservação da Natureza. Claro que, apesar de não haver ênfase à questão indígena, os personagens de Cidade Invisível acabam cumprindo a função de defensores da floresta. Mesmo o Boto, personagem folclórico mais conhecido por seduzir mulheres, aparece, no enredo, defendendo a permanência dos moradores na Vila Toré, localizada próxima à cidade do Rio de Janeiro, e alvo de especulação imobiliária.

Realidade mais ameaçadora

Porém, me parece que os roteiristas perderam uma boa chance de falar sobre as ameaças reais aos povos originários. Como sabemos, os indígenas são vítimas de evidente perseguição desde o início do governo Bolsonaro. Para fazer essa conexão, bastaria ter como centro de ação da série a Amazônia ou o Pantanal, onde a extração ilegal de madeira e o garimpo geram grandes conflitos. Essa contextualização à realidade brasileira poderia trazer ainda mais interesse internacional, já que muitos países estão atentos à preservação de aldeias e da cultura indígena. Imaginem o Curupira, por exemplo, interagindo com uma tribo indígena? 

Sugestões literárias

Enquanto seguimos no aguardo da segunda temporada de Cidade Invisível e na esperança de que haja mais protagonismo indígena, selecionamos algumas obras para melhor compreensão do folclore dos povos originários do Brasil.

Nós – Uma Antologia de Literatura Indígena

Dez autores de diferentes nações indígenas participam desta antologia. As histórias narradas nesta publicação vão da origem do mundo ao amor impossível. Os relatos demonstram a profundidade e diversidade de temas envolvidos na literatura de autoria indígena. Os autores são das nações Mebengôkre Kayapó, Saterê-Mawé, Maraguá, Pirá-Tapuya Waíkhana, Balatiponé Umutina, Desana, Guarani Mbyá, Krenak e Kurâ Bakairi.

Vozes Ancestrais – Dez Contos Indígenas 

A obra é de autoria do professor e escritor premiado Daniel Munduruku, pertencente à etnia indígena Munduruku. Nesta publicação, o autor coletou e transcreveu contos tradicionais de dez povos originários. O resultado é um apanhado de tradições e crenças, em histórias que falam sobre elementos da Natureza.

Lendas e Mitos dos Índios Brasileiros

O livro foi escrito e ilustrado por Walde-mar de Andrade e Silva, a partir da vivência de 8 anos com indígenas da região do Xingu, no norte do Mato Grosso. No total, são 24 histórias, entre elas a que narra a lenda da Iara, uma das personagens presentes na série Cidade Invisível

Sehaypóri – O livro sagrado do povo saterê-mawé

A publicação é uma homenagem aos pajés dos saterê-mawê, povo indígena que habita a região do Rio Amazonas. O autor da obra, Yaguarê Yamã, é  professor, formado em Geografia em uma universidade de São Paulo, e atuante do movimento indígena no Amazonas. Sehaypóri foi selecionado pelo catálogo White Ravens para a Biblioteca de Munique e a Feira de Bolonha, um dos eventos de literatura infantojuvenil mais reconhecidos mundialmente.

Para conhecer outros títulos de literatura de autoria indígena, clique aqui. 

Imagens: Netflix/Divulgação

Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender Cidade Invisível (Parte 1)

Flávia Cunha
21 de fevereiro de 2021
Atenção: O texto contém spoilers da série Cidade Invisível

Cidade Invisível, da Netflix, é um sucesso no Brasil e em outros 60 países. Mas também gerou controvérsia ao não dar destaque aos povos originários no roteiro, elenco e equipe de produção. O fato gerou críticas de lideranças e ativistas indígenas. A releitura do folclore brasileiro realmente dá poucas explicações sobre a origem de personagens como Saci, Iara, Curupira e Boto. Mas a Literatura pode ser um bom caminho para compreender melhor as lendas e mitos citados na série e ir além no assunto.

Oportunidades perdidas

E havia possibilidades no roteiro para mais explicações ao público a respeito do tema. Um exemplo disso são as cenas de Luna com o livro de folclore, que poderiam ter sido usadas como uma forma de detalhar as lendas do Saci e do Curupira. Ao invés disso, houve a opção por um lugar-comum de mostrar a conhecida história da armadilha para prender o Saci. Além disso, o livro usado como elemento cenográfico também mostra desenhos de um saci negro, sem nenhum tipo de esclarecimento a respeito. Porém, vale lembrar que essa é a versão mais consagrada do personagem, em função de adaptações como a do Sítio do Picapau Amarelo. Por outro lado, não há qualquer menção no roteiro de que a lenda do Saci foi criada pelos guaranis, no Sul do Brasil. Incorporando, depois, elementos da cultura africana. Essa origem é consenso entre os pesquisadores, como podemos ver aqui.

Origens pouco conhecidas

Já o Curupira é um dos mitos mais antigos do Brasil, tendo relatos escritos a respeito de sua história desde 1560. Sua origem é, indiscutivelmente, indígena. Assim como a Iara e o Boto, que são lendas criadas por tribos da Amazônia. Como esses personagens em Cidade Invisível foram parar no Rio de Janeiro? Pelo menos até agora, não sabemos.  

Mas também há críticas injustas. Como ao fato de a Cuca não ser caracterizada como um jacaré. Essa confusão é gerada pelas adaptações televisivas do Sítio do Picapau Amarelo. Porém, de acordo com o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, a descrição física da cuca não é um consenso dentro das origens ibéricas da lenda. Conforme a publicação, ela seria uma versão feminina do bicho-papão. Além disso, suas histórias variam de acordo com a região brasileira. Em Pernambuco, é descrita como uma mulher velha e feia, uma espécie de feiticeira. O que parece unânime é que dificilmente a Cuca seria uma mulher linda e sedutora como Alessandra Negrini, mas a atuação (e beleza) da atriz compensam sua escolha no elenco.    

Tutu Marambá

Com essas ressalvas, estou longe de dizer que não houve pesquisa na produção de Carlos Saldanha (criador de sucessos de animação como A Era do Gelo e Rio) e para o roteiro assinado  por Carolina Munhoz e Raphael Draccon. Tanto é que a série traz à tona as lendas de Tutu Marambá e Corpo-Seco, personagens pouco conhecidos do grande público. Eles são mencionados no Dicionário do Folclore Brasileiro, uma das publicações mais consagradas no país sobre o tema, que teve a primeira edição em 1954. Luís da Câmara Cascudo aponta que Tutu é um assombrador de crianças, uma espécie de bicho papão citado em cantigas e acalantos infantis, como a Cuca. De acordo com Cascudo, “há vários tutus espantosos, tutu-zambeta, tutu-marambá, tutu-do-mato.” Sua transformação em porco do mato tem origem no folclore da Bahia. 

Corpo Seco

Já o vilão Corpo Seco é “um homem que passou pela vida semeando malefícios […] Ao morrer, nem Deus nem o Diabo o quiseram, e a própria terra o repeliu enojada de sua carne, e um dia, […] da tumba se levantou [….] vagando e assombrando os viventes na calada da noite.” É um mito de origem europeia, a partir da crença de que cadáveres de seres humanos amaldiçoados não seriam desfeitos pela terra. Por isso, o corpo ficaria seco. Como são almas penadas, vagam pelo mundo, atormentando os vivos. Sendo assim, ainda é um mistério porque o Corpo Seco da série é um perseguidor de seres míticos, ao invés de ser um inimigo dos seres humanos.

Mérito inegável

Os produtores da série ainda não se pronunciaram sobre as críticas à falta de representatividade indígena . Torço para que a segunda temporada de Cidade Invisível traga mais elementos que expliquem as origens das lendas brasileiras. De qualquer forma, há o mérito indiscutível de despertar o interesse geral sobre o assunto. E, para mostrar que os mitos e lendas brasileiros vão muito além do apresentado na série, na semana que vem trarei algumas sugestões de leitura. Selecionei livros de autoria indígena ou de pesquisadores que tiveram contato direto com tribos indígenas. Aguardem!

Imagens: Netflix/Divulgação