Voos Literários

Como a Literatura pode ajudar a entender Cidade Invisível (Parte 1)

Flávia Cunha
21 de fevereiro de 2021
Atenção: O texto contém spoilers da série Cidade Invisível

Cidade Invisível, da Netflix, é um sucesso no Brasil e em outros 60 países. Mas também gerou controvérsia ao não dar destaque aos povos originários no roteiro, elenco e equipe de produção. O fato gerou críticas de lideranças e ativistas indígenas. A releitura do folclore brasileiro realmente dá poucas explicações sobre a origem de personagens como Saci, Iara, Curupira e Boto. Mas a Literatura pode ser um bom caminho para compreender melhor as lendas e mitos citados na série e ir além no assunto.

Oportunidades perdidas

E havia possibilidades no roteiro para mais explicações ao público a respeito do tema. Um exemplo disso são as cenas de Luna com o livro de folclore, que poderiam ter sido usadas como uma forma de detalhar as lendas do Saci e do Curupira. Ao invés disso, houve a opção por um lugar-comum de mostrar a conhecida história da armadilha para prender o Saci. Além disso, o livro usado como elemento cenográfico também mostra desenhos de um saci negro, sem nenhum tipo de esclarecimento a respeito. Porém, vale lembrar que essa é a versão mais consagrada do personagem, em função de adaptações como a do Sítio do Picapau Amarelo. Por outro lado, não há qualquer menção no roteiro de que a lenda do Saci foi criada pelos guaranis, no Sul do Brasil. Incorporando, depois, elementos da cultura africana. Essa origem é consenso entre os pesquisadores, como podemos ver aqui.

Origens pouco conhecidas

Já o Curupira é um dos mitos mais antigos do Brasil, tendo relatos escritos a respeito de sua história desde 1560. Sua origem é, indiscutivelmente, indígena. Assim como a Iara e o Boto, que são lendas criadas por tribos da Amazônia. Como esses personagens em Cidade Invisível foram parar no Rio de Janeiro? Pelo menos até agora, não sabemos.  

Mas também há críticas injustas. Como ao fato de a Cuca não ser caracterizada como um jacaré. Essa confusão é gerada pelas adaptações televisivas do Sítio do Picapau Amarelo. Porém, de acordo com o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, a descrição física da cuca não é um consenso dentro das origens ibéricas da lenda. Conforme a publicação, ela seria uma versão feminina do bicho-papão. Além disso, suas histórias variam de acordo com a região brasileira. Em Pernambuco, é descrita como uma mulher velha e feia, uma espécie de feiticeira. O que parece unânime é que dificilmente a Cuca seria uma mulher linda e sedutora como Alessandra Negrini, mas a atuação (e beleza) da atriz compensam sua escolha no elenco.    

Tutu Marambá

Com essas ressalvas, estou longe de dizer que não houve pesquisa na produção de Carlos Saldanha (criador de sucessos de animação como A Era do Gelo e Rio) e para o roteiro assinado  por Carolina Munhoz e Raphael Draccon. Tanto é que a série traz à tona as lendas de Tutu Marambá e Corpo-Seco, personagens pouco conhecidos do grande público. Eles são mencionados no Dicionário do Folclore Brasileiro, uma das publicações mais consagradas no país sobre o tema, que teve a primeira edição em 1954. Luís da Câmara Cascudo aponta que Tutu é um assombrador de crianças, uma espécie de bicho papão citado em cantigas e acalantos infantis, como a Cuca. De acordo com Cascudo, “há vários tutus espantosos, tutu-zambeta, tutu-marambá, tutu-do-mato.” Sua transformação em porco do mato tem origem no folclore da Bahia. 

Corpo Seco

Já o vilão Corpo Seco é “um homem que passou pela vida semeando malefícios […] Ao morrer, nem Deus nem o Diabo o quiseram, e a própria terra o repeliu enojada de sua carne, e um dia, […] da tumba se levantou [….] vagando e assombrando os viventes na calada da noite.” É um mito de origem europeia, a partir da crença de que cadáveres de seres humanos amaldiçoados não seriam desfeitos pela terra. Por isso, o corpo ficaria seco. Como são almas penadas, vagam pelo mundo, atormentando os vivos. Sendo assim, ainda é um mistério porque o Corpo Seco da série é um perseguidor de seres míticos, ao invés de ser um inimigo dos seres humanos.

Mérito inegável

Os produtores da série ainda não se pronunciaram sobre as críticas à falta de representatividade indígena . Torço para que a segunda temporada de Cidade Invisível traga mais elementos que expliquem as origens das lendas brasileiras. De qualquer forma, há o mérito indiscutível de despertar o interesse geral sobre o assunto. E, para mostrar que os mitos e lendas brasileiros vão muito além do apresentado na série, na semana que vem trarei algumas sugestões de leitura. Selecionei livros de autoria indígena ou de pesquisadores que tiveram contato direto com tribos indígenas. Aguardem!

Imagens: Netflix/Divulgação

Tão série

Will and Grace está de volta – e ainda é relevante

Geórgia Santos
29 de junho de 2018

O retorno de Will and Grace depois de onze anos fora das telas foi uma grata surpresa. Por outro lado, também foi uma surpresa estranha. Porque é absolutamente estranho perceber que 20 anos depois da estreia, eles continuam relevantes. No primeiro episódio, o quarteto fantástico está jogando Celebridade na sala do apartamento de Will com um texto que não nos permite esquecer que estamos em 2018.

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Will: Ele é um homem mas envelheceu como lésbica.

Grace: Steven Tyler; Jon Voight,  Newt Gingrich?

Will: Isso! Ela é… nem sei por onde começar.

Grace: Jada Pinkett Smith!

Will: Sim! Nós queremos amá-la mas ela torna isso impossível.

Grace: Caitlyn Jenner!

Will: Isso! Rica. Refém.

Grace: Melania!

Will: Não. Usa boina!

Grace: Patty Hearst!

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A série continua a mesma. Will (Eric McCormack) e Grace (Debra Messing) aparecem morando juntos temporariamente. Os dois solteiros e batendo cabeça. Grace diz que ficará apenas algumas semanas, até baixar a poeira.

Jack: Dos seus genitais?

Grace: Do meu divórcio!

Felizmente, os criadores Max Mutchnick and David Kohan ignoram o (horrível) final da oitava e até então última temporada, em que os amigos são vistos criando seus filhos separadamente e ficam 20 anos sem se falar até que as crias resolvem se casar. Não, né. Eles atribuem a cena a um pesadelo de Karen (Megan Mullally), induzido por pílulas e álcool, enquanto ela está catatônica no sofá.

Jack (Sean Hayes) mora do outro lado do corredor, ainda ácido, ainda incorrigível e hilário. Quanto a Karen, essa está definitivamente vivendo o sonho. Afinal de contas, o presidente dos Estados Unidos é justamente o tipo de homem que ela admira e espera que ocupe o poder.

A série definitivamente continua a mesma, mas se antes era elogiada por ajudar a educar os americanos com relação às uniões homoafetivas e a luta por direitos da população LGBT, hoje essa educação se estende a uma crítica social e política. Will and Grace confirma as suspeitas de analistas de que o tragicômico governo Trump, mais trágico do que cômico, seria um prato cheio para cientistas políticos e humoristas.

Tanto é assim que o primeiro episódio é recheado de referências ao atual momento político dos EUA. Há quem considere forçado, mas eu acho hilário e necessário. E usar a amizade de Karen com o presidente é a maneira perfeita de tornar tudo mais natural. Em todos os episódios há situações que nos fazem refletir sobre o momento polarizado a que estamos todos submetidos, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Mas há um momento em especifico que eu acho primoroso e emblemático.

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O bolo para o SEU presidente

Karen: Passando;

Homem: Ei, escolhe um número;

Karen: Hm, ok, um!

Confeiteira: Oi, sou a Amy, como posso tornar seu dia mais doce?

Karen: Eu preciso de um bolo;

Amy: Você está com sorte, eu faço bolos, por enquanto, se eles não aumentarem o aluguel, essa vizinhança inteira…

Karen: Querida, querida, pessoas como eu não se preocupam com os problemas da classe trabalhadora branca, aquilo foi só pra ganhar a eleição. Falando nisso, eu preciso de um bolo grande para o aniversário de uma pessoa muito importante;

Amy: Hm, importante?

Karen: Aham. Eu quero de chocolate, com cobertura branca e um monte de estrelas, letras em vermelho e eu preciso que diga M – A – G – A. Make America Great Again ?Faça a America Grande Novamente, em tradução livre, é o slogan de campanha de Donald Trump?! Você fará um bolo para o seu presidente!

Amy: Oh!

Karen: Ele vai a minha casa para uma coisinha, nós vamos servir White Russians ?Russos Brancos, o nome de uma bebida?, mas voce não precisa saber  da lista de convidados.

Amy: Isso parece legal, mas não; Desculpe, odeio decepcionar pessoas e eu sou péssima em me defender, por isso Jocelyn diz que eu não deveria trabalhar no balcão, mas ela está morta agora e eu não vou fazer um bolo para aquela pessoa;

Karen: Deixa eu ver se entendi, Smiley Cyrus. Você não quer fazer um bolo porque não gosta do que ele representa?

O episódio faz uma clara referência ao que aconteceu no Colorado, quando um confeiteiro recusou fazer o bolo de casamento para um casal gay alegando que feria suas crenças religiosas – no caso, cristãs. Além disso, a série, de maneira inteligente, faz com que a gente reflita sobre empatia e a necessidade de se ter um debate transparente sobre o que as coisas significam. Quando Grace fica sabendo do que aconteceu com Karen por meio de seu assistente, Tony (Anthony Ramos), se sente ultrajada. Justamente porque imagina ser um caso de preconceito contra casais homossexuais. Quando fica sabendo que o bolo é para Donald Trump, o ultraje desaparece, alegando que são coisas completamente diferentes.

Tony: Como vai requerer sua liberdade de expressão se não vai defender a dos outros?

Grace: E se alguém quisesse fazer um bolo que diz: “Eu Odeio Porto-Riquenhos”?

Tony: se diz “MAGA”, a parte do  “Eu Odeio Porto-Riquenhos” está implícita;

Grace engole o orgulho e decide ajudar Karen. Ela deixa claro para a confeiteira que considera que as crenças da amiga são horríveis, mas mesmo pessoas com crenças horríveis tem direitos. Consequentemente, Karen consegue o bolo, mas a confeiteira faz questão de dar um recado e incluir umas letrinhas no pedido.

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“I” MAGA “Y”

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“Eu sou um gay” em bom português. Portanto, o episódio The Beefcake & the Cake Beef inteiro é um espetáculo e um ótimo exemplar do motivo pelo qual amamos Will and Grace e do porquê a série continua relevante. E engraçada. E provocadora. E merecedora dos seus 16 Emmy. No final, vemos um bonitão que flerta com Grace enquanto pede para a confeiteira ajustar a suástica do bolo, que está um pouco torta.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Imagens do Estado Novo 1937-45

Pedro Henrique Gomes
28 de abril de 2018

Imagens do Estado Novo 1937-1945 entra deliberadamente num vespeiro ao vasculhar materiais históricos, tais como imagens, canções populares, discursos radiofônicos, matérias em jornais, livros, filmes e, em essência, o diário mantido pelo próprio presidente Getúlio Vargas no intuito de oferecer sua narração sobre tudo isso.

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As imagens são mesmo abundantes e preenchem todo o filme.  E o off, narrado pelo próprio diretor Eduardo Escorel, acompanha, dando-lhes contexto e, claro, uma leitura particular (a do narrador) responsável por organizar, sistematicamente, todo o período do Estado Novo nas quatro horas de duração do filme.

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Getúlio Vargas, claro, é o personagem central, por onde se embaralham e percorrem todas as intrigas palacianas, tramas políticas, influências familiares, ameaças comunistas, comícios populares, oposições oligárquicas e toda sorte de relações que o seu governo produzia com o estrangeiro.

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Escorel começa, em fato, antes do Estado Novo (1937-45). Começa quando o movimento de 1930 (aka Revolução de 30) depôs Washington Luís da Presidência, dando fim a Primeira República. Ainda que breve, a narrativa inicia, nem que seja para fins contextuais, quando da chegada de Getúlio à presidência, em 1930, e vai terminar, após longos 34 anos, com o golpe de 1964 que depôs o então presidente João Goulart. A narração permite, no entanto, que a história se demonstre invariavelmente interconectada, comportando avanços e recuos no tempo da ação para indagar seja uma formação política, um gesto ou uma reviravolta na trama que conduz o filme. Os fatos não estão dados de antemão para o documentarista e pesquisador que é Escorel, ele irá percorrê-los, questioná-los, desconfiar das imagens que ele próprio mostra. Imagens do Estado Novo é resultado de uma pesquisa de muitos anos e que se traduz, como vemos, num panorama histórico ao qual podemos voltar várias e várias vezes, a depender das instâncias do nosso interesse.

De modo a não perder o movimento dos eventos, Escorel prefere o estilo clássico do documentário, como quem assume que a distinção de seus temas e não permite incorreções derivadas de leituras “emancipadas” da materialidade da história que narra. Apesar do eloquente racionalismo da narração, que busca se esquivar de subjetividades interpretativas, o filme propõe vários caminhos para nos aproximarmos do Brasil varguista e de todas as suas variadas formas e contradições. Seu objetivo, mais do que fazer memória com o processo histórico brasileiro que convulsionou a primeira metade século XX, consistiu precisamente em dar relevo a fragilização institucional do país, sua regular instabilidade política e seu baixo teor de participação democrática, tendo como nervo da ação o presidente Getúlio Vargas.

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Para contar essa história tendo Vargas como eixo é preciso ir longe sem sair do lugar

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As elites oligárquicas nacionais, saudosas do nacionalismo, estão aí desde a gênese do Brasil, maculadas nos sorrisos que desfilam nos banquetes palacianos, nas marchas autoritárias destituidoras e que provocam constantes abalos sísmicos na estrutura das instituições brasileiras. Ora, legitimidade para governar nunca foi permitida por muito tempo neste país que tanta vezes golpeou a si próprio e aos seus. Tomar o risco de buscar capturar as variações e dimensões da trama política nacional é, por si só, um desafio notável. Escorel acredita na força do documento. A natureza imponente da pesquisa contribui para que sua narrativa não disperse o interesse do espectador. A trama é complexa e recheada de contradições.

A simpatia de Vargas pelo nazi-fascismo é motivo de escrutínio por Escorel. A legislação trabalhista inaugurada pelo presidente e cujas fontes de inspiração são conhecidas ganham significativo destaque: tanto o malgrado populismo varguista quanto as suas reformas nos direitos sociais compõem diferentes faces de uma mesma moeda, basta vermos como a progressiva expansão dos direitos sociais não foi acompanhada pela expansão dos direitos políticos, antes pelo contrário. O nacionalismo econômico que sustentou o Estado Novo e rendeu ao governo o apoio dos integralistas liderados por Plínio Salgado – o anticomunismo os unia; da Alemanha hitlerista e de uma população majoritariamente católica, que decerto não podia ouvir falar em comunismo, Mao e União Soviética – foi possível através de uma bem difundida rede de censura da imprensa e das atividades políticas da oposição.

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O caráter autoritário do Estado Novo era evidente no modo paternalista com que tratava o povo (a ideia de povo, pelo menos).

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Filho do positivismo, não interessava ao governo do “pai dos pobres” ter o povo nas ruas senão como figurantes de seus desfiles e eventos propagandísticos. Ele queria a conciliação do patrão e do empregado. Mas como a política não comporta sentimentalismos, Vargas seria eleito pelo voto em 1950, mesmo após ter sido golpeado e apeado do poder pelos militares em 1945, quando se encerrava, tradicionalmente pela força, o Estado Novo.

Imagens do  Estado Novo conecta várias pontas dessa trama, deixa pontos de fuga e desafios reflexivos para o espectador realizar. Afora sua grandiosa empreitada intelectual, de estudo e pesquisa, há um caráter de exegese de certa sensação de democracia que o Brasil poucas vezes teve ou teve com baixa intensidade. A experiência de um golpe militar, tão recorrente na história brasileira, é ainda muito viva. Escorel faz jorrar a sangria para explorar, nos detalhes, as tensões do Estado Novo e o quanto ele ainda pode ser representativo para pensarmos os desdobramentos da política atual pela via da construção de discursos, tal como o seu próprio.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Trama Fantasma

Pedro Henrique Gomes
10 de março de 2018

É melhor dizer logo de cara que Trama Fantasma é o filme de melhor execução que Paul Thomas Anderson já realizou. A confusão de valores narrativos e temáticos que antes lhe afetavam, neste filme o enriquecem. Em primeiro lugar, Trama Fantasma assume os monstros de sua ficção ao abraçar de vez o realismo em um sentido muito evidente, qual seja, o de capturar e sublinhar certas características do tempo e do espaço sem as decorações narrativas que estavam lá em Magnólia, Embriagado de Amor, Sangue Negro e outros de seus filmes. Pois o realismo é justamente essa clareza com que as formas se apresentam, construindo e destruindo as emoções do espectador conforme avançam. Suas razões não são simplesmente técnicas (como em Boogie Nights), mas possuem agora um senso de proporção temporal e uma franja emocional muito sutil.

A epifania egocêntrica dá lugar a um olhar paciente e autocontido sem perder seu caráter sistemático de grande melodrama que o filme quer ser. É necessário encarar a imagem de maneira frontal e isto quer dizer limitar as interrupções visuais que sua câmera sempre pareceu desrespeitar em nome de virtuosismos.

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O próprio espaço constitui um entrave positivo, pois o filme se passa praticamente todo em locação interna – o que aumenta a pressão sob suas personagens, quase que exigindo delas nada menos que a vida em sacrifício, em troca da liberdade

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Em Trama Fantasma tudo é essencial para a partitura do filme, para seu desenvolvimento e fruição: o ritmo condensado de sua ação, a longa introdução ao cenário central do filme, sua atmosfera de ambientação tipicamente aristocrática (estamos na Inglaterra da metade do século XX), a mansão gigante que é tanto local de trabalho quanto morada do estilista Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e de sua irmã e gestora imperial Cyril (Lesley Manville). Mr. Woodcock constura para a realeza britânica e para nomes fortes da alta sociedade inglesa. O filme é a história de obsessões: do estilista por sua modelo e métodos de rotina intocáveis, da irmã pelo controle e pelo poder, da jovem Alma (Vicky Krieps) por Woodcock, de Paul Thomas Anderson pela depuração perfeccionista de seus motivos visuais que, neste filme como em nenhum outro, estão plenamente justificados.

Alma, trabalhando então como garçonete, recebe Woodcock e o serve no estabelecimento de beira de estrada. O flerte rapidamente se traduz num convite para que o estilista tire as medidas da moça. Ela vira sua modelo, sendo seu corpo o corpo ideal, figura que dá forma a sua criação artística. O tema da obsessão pela forma (forma do corpo, forma das formas) inicia. Alma logo está trabalhando para Woodcock, isto é, vendendo a mercadoria mais valiosa que há, sua força de trabalho. Na casa, o trabalho e o descanso se misturam até que as diferenças se apaguem (é a isto, afinal, que o título do filme alude; a linha fantasma), para depois voltarem marcantes e venenosas, salientando os aspectos do suspense que o filme também instaura.

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O ganha pão e o tesão acentuam o melodrama, embaralham a relação não só de Alma com Woodcock, mas dele com Cyril. Anderson acertou de vez a mão

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A trilha sonora é precisa ao criar a pressão atmosférica desejada e as músicas se repetem para reforçar o próprio looping da vida que se organiza dentro da mansão. Há, claro que há, um corte de classe subsumido na ação coordenada do filme. As senhoras que trabalham silenciosas e competentes e todas as outras personagens do filme, mulheres ou homens, cujo roteiro não deu mais que meia dúzia de frases, quando muito, demonstram isso. A obsessão do cineasta está muito bem focada naquela paixão pela forma e pelo contorno que se traduz em seus personagens, em especial na relação do Mr. Woodcock com Alma.

Obsessões são coisas naturais dos cineastas: Griffith, Eisenstein, Hitchcock, Preminger, Bergman, Tarkovski, Almodóvar, entre muitos outros. Falamos, isto parece claro, de um cineasta que se move calculadamente entre o rigorismo extremo (kubrickiano) e o ceticismo moderado (que ele herda, muito já se disse, de Robert Altman). A trama fantasma é resultado também dessa correlação de referências e estilos narrativos.

Há uma dificuldade (crítica e essencialmente dos críticos que escrevem sobre seus filmes), na nossa crítica bem como na estrangeira, em estabelecer os elementos formais que compõem sua obra sem cair em pedantismos ou divagações aleatórias sobre o “apuro formal”, a “elegância da montagem”, “a sagacidade do roteiro”, enfim, todo um repertório de afirmações que podem ser aplicadas a qualquer cineasta com traços mais ou menos recorrentes. Uma espécie de pesadelo descritivo ronda nossa escrita. Ademais insuficiente, essa confusão, se ela existe e não é somente coisa da minha cabeça, mantém inexplorada a relação controversa entre suas obsessões temáticas e suas obsessões estéticas. Há um paradoxal mal estar na leitura dos filmes de PTA e que Trama Fantasma ajuda a dissipar, pois trata-se, agora podemos dizer, de um filme de afirmação.

Talvez de fato ainda exista espaço para um pensamento conceitual sobre cinema nos próprios filmes. Da parte de Paul Thomas Anderson, este é sem dúvida o exemplar mais completo. Um filme realista que livra o cineasta da zona de sombras.

Phantom Thread, de Paul Thomas Anderson, EUA, 2017. Com Daniel Day-Lewis, Vicky Krieps, Lesley Manville.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – No Intenso Agora

Pedro Henrique Gomes
25 de novembro de 2017

Como experiência histórica que reúne vários momentos cruciais em torno do ano de 1968, No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles, traz para o centro de suas questões as próprias condições de produção das imagens registradas na época, no calor dos acontecimentos. Seguindo as informações narrativas que o filme transmite, as imagens evocam expressões de relações de classe, de esperança, de angústia, de desilusão, de reviravoltas no jogo político. O ponto de partida é a imagem. Imagem que virou arquivo. Um filme absolutamente pessoal. No caso, registros da elite brasileira (em que esteve presente Elisa, mãe do cineasta) em visita à China, em 1966, alimentaram nele o desejo do filme.

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Que imagens surgem nos diferentes contextos, questiona Salles, da China maoísta, da França do maio de 68, das greves operárias e das revoltas estudantis, da ditadura militar brasileira e da Tchecoslováquia quando da chegada dos tanques soviéticos que iriam interromper a Primavera de Praga?

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No Intenso Agora ajeita, levanta e corta: o resultado estético dessas imagens carrega, para além do espírito do tempo e da urgência material delas, a estrutura moral e política que permitiu a forma mais ou menos exata com que foram feitas. As imagens respondem a procedimentos dados pelas restrições locais. Segundo o diretor, o filme quer saber quem filma e como filma numa democracia, em uma ditadura ou em um país militarmente ocupado pelo estrangeiro.

A tensão entre o não saber o que se está filmando é a posição por vezes incontornável a quem quer que se aventure com uma câmera (das filmagens amadoras ao documentarista/cineasta que tem no ato de filmar a sua profissão de fé), daí a dificuldade de, muitas vezes, e mesmo que o filme seja também sobre isso, estabelecer conexões entre os registros expostos. Trabalhando com arquivo a partir de longa pesquisa, o filme costura estes acontecimentos para questionar os seus sentidos e significados, as suas expressões e seus gritos. Penso que há inclusive exageros de interpretação (por exemplo, na cena da babá com as crianças), mas eles também corroboram e insistem em escrever os seus sentidos, pois olhar imagens não é outra coisa senão provocar-lhes fissuras no ato mesmo de descrevê-las.

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O filme é seu próprio crítico

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É curioso que somos tentados, decerto exageradamente, a traçar paralelos, também eles, baseados em experiências locais. Junho de 2013, por exemplo, junto de seus desdobramentos, uma vez que a ideia do filme é anterior às manifestações. Este aspecto perfeitamente explícito que o filme possui, seu caráter de análise sistemática dado pelo narrador, permitem também o alargamento dessas relações contextuais. O maio de 68 francês, por seu turno, foi imaginativo e convocou certa potência, mas não conseguiu desestabilizar as superestruturas do poder, sendo inclusive domesticado por ele. O filme comenta isso ao mostrar a lida do governo francês, na figura de Charles de Gaulle, com as manifestações que tomavam Paris: o poder logo sufocou a revolta. João Moreira Salles percebe que falar sobre imagens num filme é também criar outras sobre elas, num processo de autorreflexão visual continuado – e, talvez por isso mesmo, extremamente arriscado e delicado. Seu filme corajosamente toma o risco.

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No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Brasil, 2017).

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Coração de Cachorro

Pedro Henrique Gomes
22 de setembro de 2017

Coração de Cachorro, filme da cineasta americana Laurie Anderson, começa pelo meio: é um ensaio, um floreio pelo pensamento da narradora. Lollabelle, sua cachorra, é a personagem central – ela morreu e o filme é dado em sua memória. A voz da cineasta, que acompanhamos atentos ao longo de todo o filme, parte desse indefinível momento que é a tentativa de descrição de um sonho.

A sua trama, alegórica e filosófica, possui também caráter evidente e autorreferido: é o que nos faz perseguir a leitura do texto, fixar a atenção nas imagens, buscar conexões, entender as sugestões que ela deixa.

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Seus personagens são seres vivos e ficções políticas, além de convenções sociais, objetos dessas convenções, ideias, conceitos, imaginação, sonho e fantasia

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Para ajustar a narratividade do filme, para que sua expressão “vingasse” como pensamento sobre as imagens e sobre o texto, Anderson adotou uma postura de aproximação e distanciamento simultâneos. Isso não neutraliza o impacto emocional do filme (se quiserem, o seu caráter poético) dado que seu texto cria, inventa, conta, recita, canta, sofre e alucina pois é um texto vivo que choca o espectador contra a sua angústia, num movimento de enfretamentamento literal. A cineasta reconhece a tensão entre, por um lado, a proximidade que o relato tem dela mesma e, por outro, o seu aspecto de sugestão, de ligação intersubjetiva.

Penso que o filme está inteligentemente possuído por algumas questões que vão além da narrativa pessoal diante de uma perda (“every love story is a ghost story”). Se há a pretensão de poetizar sobre dor, sofrimento e amor, há também uma ideia de pensamento estético que os envolve. Os elementos que o filme nos entrega pareciam me perguntar o tempo inteiro qual a relação possível que o espectador pode estabelecer com imagens assim. Quais os tipos de questões que o relato, ensaístico que é o deste Coração de Cachorro, pode colocar para qualquer pessoa que não seja a que as vivenciou (a narradora) e, no limite, produzir emoções. Só “afeto” e “discurso poético” não seriam suficientes. Não parecem ser estes, em si, os elementos de encantamento do filme. Sua força está em sua imaginação. O 11 de setembro, Kierkegaard, Wittgenstein, David Foster Wallace, o vigilantismo, eis suas referências.

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Em uma sociedade que controla (de modo notável, aliás, nos Estados Unidos), que vigia e que direciona culturalmente o pensamento e o imaginário ordenado, como reagir?

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Em tese, o 11 de setembro deu impulso a esse movimento vigilante (o intensificou, numa segunda onda de controle e paranoia; a primeira foi a detonada pela câmera de Abraham Zapruder quando esta filmou o assassinato de Kennedy e desencadeou a ficção paranoica que irrompeu no cinema americano a partir de então) numa sociedade que oferece, paradoxal que seja, liberdade e segurança como nenhum outro lugar no mundo. Essas imagens povoam o filme. Como o cérebro, que procede por livre associação, assim é a liberdade de Coração de Cachorro ao construir as suas ilações.

Heart of a dog, de Laurie Anderson, EUA, 2015. Com Laurie Anderson e Lollabelle.

Tão série

House of Cards está de volta

Geórgia Santos
3 de junho de 2017

“I will not yield”

Frank Underwood, House of Cards

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“Eu não vou ceder!” É assim que Frank Underwood (Kevin Spacey) começa a quinta temporada de House of Cards, determinado a continuar sentado no Salão Oval da Casa Branca. Custe o que custar, é claro.

A série não está apenas na minha lista das melhores séries da vida mas também aparece como uma das melhores produções de todos os tempos segundo as revistas Time e Rolling Stone, por exemplo. E para alegria de todos e felicidade geral da nação (escolha a sua), o MEU malvado favorito está de volta. E eu diria mais sociopata do que nunca, mas a verdade é que está sombrio como sempre.

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Os novos episódios já estão disponíveis na Netflix. E haja retina para aguentar tantas horas em frente à tela, sem piscar. Porque é exatamente o que eu tenho feito nos últimos dias.

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House of Cards pode parecer inofensiva diante da realidade, seja ela Temer ou Trump. Afinal, o que os roteiristas podem inventar que seja surreal o suficiente para prender nossa atenção e, ao mesmo tempo, não reproduzir manchetes dos jornais que lemos todos os dias? Mas eu não apostaria nisso.

É verdade que há similaridades com o que tem acontecido no mundo – você vai ver como Frank pretende lidar com estrangeiros –, mas não são intencionais (a série foi gravada antes de Trump assumir) e o dark place de House of Cards está mais escuro do que nunca. Sem contar que, na minha opinião, basear críticas negativas à essa temporada porque “a realidade a torna sem relevância” é risível. Por pior que Trump seja, não parece que assassinatos sejam rotina. Variety diz que a série “ganha pontos pela relevância mas se arrasta com um interminável e aterrorizante cinismo – como se já não tivéssemos o suficiente disso”. Ou seja, até ano passado a série era incrível porque era provocadora e agora deixou de ser interessante porque temos cinismo o suficiente na vida real? Fala sério.

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Não acho que seja o melhor momento da série, mas é interessante, atraente e traz a tensão, o absurdo (espero) e as belíssimas atuações de Spacey e Wright, exatamente como as temporadas anteriores.

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A quinta temporada começa de onde parou, Frank e Claire (Robin Wright) disputam a presidência dos Estados Unidos como companheiros de chapa contra o republicano Will Conway (Joel Kinnaman), herói de guerra e governador de Nova York. Enquanto isso, o país sofre com a instabilidade na iminência de uma guerra após um cidadão americano ser decapitado por terroristas domésticos (quarta temporada).

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E Frank está adorando e aproveitando a situação para levar o pânico xenófobo ao limite. Ele se alimenta do medo. Ele gera o medo.

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Com essa tática, Underwood espera provar que ainda é o homem mais poderoso e necessário do mundo, vencer as eleições e desviar a atenção de jornalistas e inimigos políticos que estão perto de descobrir alguns – somente alguns – de seus desvios. A série ainda traz as tramas paralelas que envolvem a sexualidade de Frank e o estranho arranjo que ele fez com Claire e seu amante; dúvidas, vazamentos, traições e, claro, assassinatos.

Então não, não concordo com as críticas de que a série perdeu o seu mojo graças à aterrorizante realidade. Isso sim é cinismo.

E como diria Underwood no final do primeiro episódio:

“You have nothing to be afraid of”

“Você não tem nada pelo que temer”