Pedro Henrique Gomes

Crítica – Coração de Cachorro

Pedro Henrique Gomes
22 de setembro de 2017

Coração de Cachorro, filme da cineasta americana Laurie Anderson, começa pelo meio: é um ensaio, um floreio pelo pensamento da narradora. Lollabelle, sua cachorra, é a personagem central – ela morreu e o filme é dado em sua memória. A voz da cineasta, que acompanhamos atentos ao longo de todo o filme, parte desse indefinível momento que é a tentativa de descrição de um sonho.

A sua trama, alegórica e filosófica, possui também caráter evidente e autorreferido: é o que nos faz perseguir a leitura do texto, fixar a atenção nas imagens, buscar conexões, entender as sugestões que ela deixa.

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Seus personagens são seres vivos e ficções políticas, além de convenções sociais, objetos dessas convenções, ideias, conceitos, imaginação, sonho e fantasia

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Para ajustar a narratividade do filme, para que sua expressão “vingasse” como pensamento sobre as imagens e sobre o texto, Anderson adotou uma postura de aproximação e distanciamento simultâneos. Isso não neutraliza o impacto emocional do filme (se quiserem, o seu caráter poético) dado que seu texto cria, inventa, conta, recita, canta, sofre e alucina pois é um texto vivo que choca o espectador contra a sua angústia, num movimento de enfretamentamento literal. A cineasta reconhece a tensão entre, por um lado, a proximidade que o relato tem dela mesma e, por outro, o seu aspecto de sugestão, de ligação intersubjetiva.

Penso que o filme está inteligentemente possuído por algumas questões que vão além da narrativa pessoal diante de uma perda (“every love story is a ghost story”). Se há a pretensão de poetizar sobre dor, sofrimento e amor, há também uma ideia de pensamento estético que os envolve. Os elementos que o filme nos entrega pareciam me perguntar o tempo inteiro qual a relação possível que o espectador pode estabelecer com imagens assim. Quais os tipos de questões que o relato, ensaístico que é o deste Coração de Cachorro, pode colocar para qualquer pessoa que não seja a que as vivenciou (a narradora) e, no limite, produzir emoções. Só “afeto” e “discurso poético” não seriam suficientes. Não parecem ser estes, em si, os elementos de encantamento do filme. Sua força está em sua imaginação. O 11 de setembro, Kierkegaard, Wittgenstein, David Foster Wallace, o vigilantismo, eis suas referências.

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Em uma sociedade que controla (de modo notável, aliás, nos Estados Unidos), que vigia e que direciona culturalmente o pensamento e o imaginário ordenado, como reagir?

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Em tese, o 11 de setembro deu impulso a esse movimento vigilante (o intensificou, numa segunda onda de controle e paranoia; a primeira foi a detonada pela câmera de Abraham Zapruder quando esta filmou o assassinato de Kennedy e desencadeou a ficção paranoica que irrompeu no cinema americano a partir de então) numa sociedade que oferece, paradoxal que seja, liberdade e segurança como nenhum outro lugar no mundo. Essas imagens povoam o filme. Como o cérebro, que procede por livre associação, assim é a liberdade de Coração de Cachorro ao construir as suas ilações.

Heart of a dog, de Laurie Anderson, EUA, 2015. Com Laurie Anderson e Lollabelle.