Como experiência histórica que reúne vários momentos cruciais em torno do ano de 1968, No Intenso Agora, novo filme de João Moreira Salles, traz para o centro de suas questões as próprias condições de produção das imagens registradas na época, no calor dos acontecimentos. Seguindo as informações narrativas que o filme transmite, as imagens evocam expressões de relações de classe, de esperança, de angústia, de desilusão, de reviravoltas no jogo político. O ponto de partida é a imagem. Imagem que virou arquivo. Um filme absolutamente pessoal. No caso, registros da elite brasileira (em que esteve presente Elisa, mãe do cineasta) em visita à China, em 1966, alimentaram nele o desejo do filme.
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Que imagens surgem nos diferentes contextos, questiona Salles, da China maoísta, da França do maio de 68, das greves operárias e das revoltas estudantis, da ditadura militar brasileira e da Tchecoslováquia quando da chegada dos tanques soviéticos que iriam interromper a Primavera de Praga?
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No Intenso Agora ajeita, levanta e corta: o resultado estético dessas imagens carrega, para além do espírito do tempo e da urgência material delas, a estrutura moral e política que permitiu a forma mais ou menos exata com que foram feitas. As imagens respondem a procedimentos dados pelas restrições locais. Segundo o diretor, o filme quer saber quem filma e como filma numa democracia, em uma ditadura ou em um país militarmente ocupado pelo estrangeiro.
A tensão entre o não saber o que se está filmando é a posição por vezes incontornável a quem quer que se aventure com uma câmera (das filmagens amadoras ao documentarista/cineasta que tem no ato de filmar a sua profissão de fé), daí a dificuldade de, muitas vezes, e mesmo que o filme seja também sobre isso, estabelecer conexões entre os registros expostos. Trabalhando com arquivo a partir de longa pesquisa, o filme costura estes acontecimentos para questionar os seus sentidos e significados, as suas expressões e seus gritos. Penso que há inclusive exageros de interpretação (por exemplo, na cena da babá com as crianças), mas eles também corroboram e insistem em escrever os seus sentidos, pois olhar imagens não é outra coisa senão provocar-lhes fissuras no ato mesmo de descrevê-las.
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O filme é seu próprio crítico
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É curioso que somos tentados, decerto exageradamente, a traçar paralelos, também eles, baseados em experiências locais. Junho de 2013, por exemplo, junto de seus desdobramentos, uma vez que a ideia do filme é anterior às manifestações. Este aspecto perfeitamente explícito que o filme possui, seu caráter de análise sistemática dado pelo narrador, permitem também o alargamento dessas relações contextuais. O maio de 68 francês, por seu turno, foi imaginativo e convocou certa potência, mas não conseguiu desestabilizar as superestruturas do poder, sendo inclusive domesticado por ele. O filme comenta isso ao mostrar a lida do governo francês, na figura de Charles de Gaulle, com as manifestações que tomavam Paris: o poder logo sufocou a revolta. João Moreira Salles percebe que falar sobre imagens num filme é também criar outras sobre elas, num processo de autorreflexão visual continuado – e, talvez por isso mesmo, extremamente arriscado e delicado. Seu filme corajosamente toma o risco.
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No Intenso Agora, de João Moreira Salles (Brasil, 2017).
