Pedro Henrique Gomes

15h17 – Trem para Paris

Pedro Henrique Gomes
30 de março de 2018

Uma sensação de estranhamento percorre o filme, contorna grande parte de suas cenas. 15h17 – Trem para Paris tem lá sua radicalidade, que não é, para evitar desentendimentos, uma radicalidade narrativa. Clint Eastwood entende a psique americana com precisão e coloca, tanto neste filme como em Sniper Americano, o militarismo, o valor das armas como símbolos de autonomia, liberdade e segurança contra ameaças externas, a constituição da fé e o cristianismo obstinado que se conecta a isso tudo de maneira natural e autoevidente.

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Ele está seguro de que, se há uma maneira de filmar histórias de vidas comuns que presenciam e atuam em grandes acontecimentos, é imperativo que se abrace seus personagens sem tantas certezas morais. Se ele as mantêm, o filme as coloca em conflito.

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O exemplo é, novamente (assim como em Sniper Americano), o papel do narrador na condução das possibilidades de leitura que o filme faz abrir. Os filmes de Clint, como a sociedade americana, só parecem simples. O espectador é convocado a partilhar o mundo e toda a sujeira que o sustenta a partir da convocação de estereótipos e clichês. É uma posição paradoxal e instigante esta que sua obra evidencia: Clint não faz um cinema político puro padrão, conciliador de boas intenções e de seguranças intelectuais. A vitória dos bons e a punição dos maus, lógica do faroeste de herança fordiana, comporta também alguma contradição (inclusive emocional), pois o justiçamento nem sempre determina moralmente seus filmes (ao contrário de John Ford), deixando que a consciência espectatorial elabora seus sentidos.

O republicanismo de Clint se costuma somar ao argumento na esperança de resolver a moral formal que circunda seu cinema: ele é um reacionário, até um fascista, disseram por ocasião de alguns de seus filmes, mais recentemente (de novo) sobre Sniper Americano. Se por um lado isso não parece ser algo relevante para o entendimento do filme ou para a discussão crítica, todavia chama atenção para algo que é, no ponto de vista que articulo aqui, a ambiguidade sedutora da obra recente Eastwood. É notável inclusive como o cineasta percebe que a construção do imaginário do herói, materializado na figura de Spencer Stone, é um processo que passa também por aqueles que criam imagens: a televisão e o cinema, claramente. Clint tem culpa no cartório e explicita isso, pois entre os cartazes de filmes que Stone guarda em seu quarto quando jovem há um de Cartas de Iwo Jima.

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Assim como Sniper Americano, Trem para Paris não é um filme preocupado em contextualizar “o outro lado da história”. Ao contrário, o terrorismo aparece apenas como ameaça e como ponte para a jornada de salvação da qual os três jovens americanos serão protagonistas.

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Ao filme interessa os procedimentos internos, a consagração moral de seus três personagens centrais. Por outro lado, desde a infância o aparato bélico-religioso se manifesta exigente na educação dos meninos, moldando suas personalidades, motivando-os a buscar em certos mitos de origem (o exército e Deus, nas armas e na fé cristã) o combustível para negarem certas regras comuns, seja na escola, seja em casa, seja na rua. O filme sublinha essa ambiguidade – até com certa redundância, com certo exagero visual e textual.

Ambiguidade que está carregada na própria fotografia. Pois é curioso como os elementos documentais se misturam ao jogo da ficção proposto por Clint, não apenas pelo uso de imagens de arquivo do então presidente francês François Hollande congratulando os três, mas pela própria materialidade de suas imagens encenadas. O fato dos três interpretarem eles mesmos, não sendo atores profissionais, contribui para a sensação de estranhamento geral que o filme transmite, pois é também a ideia de representação que o filme quer colocar em crise. 

Com o tempo, no contexto da filmografia de Clint Eastwood, Trem para Paris ficará condicionado ao reconhecimento de filme menor. Não sem razão, pois apesar de continuar a tradição da autocrítica recente que o cineasta vem fazendo sobre a representação do heroi clássico americano o filme já não tem a mesma força.

The 15:17 to Paris, de Clint Eastwood, EUA, 2017. Com Spencer Stone, Anthony Sadler, Alek Skarlatos, Jenna Fischer.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – Jogo Perigoso

Pedro Henrique Gomes
3 de novembro de 2017

O jogo aludido pelo título nacional de Gerald’s Game, a bem dizer, dura muito pouco tempo. Casal de anos, Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie Burlingame (Carla Gugino) vão para uma casa distante de qualquer contato externo para retomarem o desejo um pelo outro, que parece adormecido. Gerald propõe imobilizá-la na cama utilizando algemas e toma alguns remédios para ganhar o ímpeto que lhe falta na vida cotidiana, e com a mulher com a qual partilha seus desejos. Ela, visivelmente constrangida, aceita, de início, a brincadeira. Acontece que o ato não se consuma. Após um desentendimento com os critérios do jogo, que oscila entre o desejo e o abuso, Gerald tem um ataque cardíaco fatal: está morto. Jessie fica então algemada num local totalmente isolado onde seus gritos não se farão ouvir.

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O jogo então passa da ação física para a ação mental

Jessie, sozinha, alucina

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Mike Flanagan, diretor de Jogo Perigoso, tem apreço pelo silêncio, inclusive visual, de sua encenação. Seu filme anterior, Hush (outro filme puramente mental, já que muitos sentidos faltam à protagonista), também se passa em um cenário isolado, também privilegia amplificar suas matérias de expressão a partir de uma figuração sóbria e de sets notavelmente discretos. É, ao que parece, esse o estilo do seu cinema. Ele tem, diga-se, boa noção do espaço onde busca instalar o medo, a estrutura da tensão e a dramaturgia, muito simples, que lhe convém. As evidências apontam para um cineasta pragmático (um tipo de pragmatismo narrativo que não existe em Stephen King, por exemplo, autor da obra na qual o filme se baseia; King é um escritor de floreios, de parênteses, de digressões).

O aprisionamento de Jessie, dadas as circunstâncias em que se deu, a faz retornar a memórias antigas, mais ou menos resolvidas, no entanto ainda certamente dolorosas. É na própria família que ela conhece a monstruosidade de um abusador – algo que vai carregar em seu olhar receoso diante das brincadeiras sexuais do marido. Incapaz de reagir agora, frágil demais para relutar quando criança é o que nos mostra a montagem dos acontecimentos que se dá em pelo menos três instâncias: o que ocorre de fato, o que ela imagina acontecer e o que é memória.

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As marcações que a estrutura narrativa do filme organiza apelam para ampla redundância discursiva

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A sanha explicativa, adotada no quarto final do filme, acaba sendo fatal ao encerramento dramático e, ao que me parece, até emocional: ela rompe com o aspecto figurativo que ele havia criado até boa parte de sua história, rompe com o ritmo de seu desenvolvimento, apressando-se em fornecer sentido ao mistério, a fazer passar a sua mensagem como um crente com seu livro sagrado.

O que faz desandar a sua habilidade de conduzir o mistério disparado inicialmente é sua narração altamente coercitiva – o seu Mal de Alzheimer narrativo: quer se fazer entender com absoluta rigidez, forçando explicações verbais (orais) tranquilamente dispensáveis uma vez que já estavam inscritas no filme visualmente – ou o contrário. Das duas, uma: ou Flannagan não confia na força das imagens que cria ou não confia nos espectadores que cultiva.

Gerald’s game, de Mike Flanagan, EUA, 2017. Com Carla Gugino, Bruce Greenwood, Carel Struycken, Chiara Aurelia.

Pedro Henrique Gomes

Crítica – O que está por vir

Pedro Henrique Gomes
10 de fevereiro de 2017
Divulgação

É sensível o grau de essencialidade que o cinema de Mia Hansen-Love vai assumindo. E não estamos pensando aqui na ideia de progressividade da obra, inclusive pois seu filme anterior, Éden (2014), é talvez o seu mais estridente – e por isso o seu pior. Pensamos na capacidade argumentativa de sua mise en scène. O que está por vir acerta, com um golpe mais certeiro do que o desferido em seus filmes anteriores, o desenlace de sua trama.

Enquanto seus outros filmes (Adeus, Primeiro Amor) parecem deixar os acontecimentos contarem a si mesmos de uma forma muito pouco orgânica, aqui se apresenta mais sóbrio. Os exageros de retórica travados pelos seus personagens, que volta e meia insistem em infantilizar a sua elegância, não lhe tiram lá tanta força, pois o filme vence a polarização. Suas personagens estão sempre debatendo, argumentando, e a cineasta muito habilmente evita a adesão a um corpo pronto de ideias. Seu filme é político, evidentemente, mas o é em função de seu arranjo narrativo e não em virtude de qualquer conteúdo ou discurso.

Uma sinopse bastante simples diria que uma professora de filosofia, interpretada por Isabelle Huppert (seguramente a mais poderosa de todas as atrizes em atividade), passa por uma série de crises íntimas, familiares, profissionais e intelectuais. Ela tenta seguir em frente confrontando cada uma com maturidade, embora com certo desnorteamento diante das situações.

Ela prefere, como boa filósofa, o confronto ético e estético ao político, isto é, abre caminho para que a imagem confesse o seu sentido de acordo com as circunstâncias dadas. Isso fica mais evidente nas cenas em que os estudantes discutem os motivos de uma interrupção das aulas para fortalecer um grupo de protesto contra aquilo que parece ser a reforma da previdência francesa (que fora iniciada pelo “conservador” Sarkozy e depois chancelada, com modificações, pelo “socialista” Hollande). Há quem queira protestar e há quem queira estudar. Discute-se a democracia (que é a vontade da maioria, diz um estudante) e logo depois temos a professora dando uma aula sobre o Contrato Social de Rousseau. Ela tem um ex-aluno anarquista que escreveu um livro sobre a Mínima Moralia de Adorno. Seu marido, também professor, não é senão um conservador de alta estirpe, embebido em receios e ponderações – ele é um formalista: não existe forma que não expresse a sua ideologia.

Para esta amarração, a pergunta: é possível se colocar no lugar do outro? Questão elementar para a relação espectador-filme, a interrogação que aparece logo no início demanda esse esforço de ambos. Em meio aos infortúnios que vão se impondo para a professora (aquilo que iria lhes salvar, isto é, a revolução, não veio a galope, deixando em seu lugar a melancolia e certa desolação; a perda de sua mãe, o marido que a deixou, a editora que sempre a publicou passa a negar os seus projetos e a alterar outros para torná-los mais comerciais), resta então desembaçar a vista para seguir em frente.

Confira o trailer do filme

O que está por vir (L’avenir) de Mia Hansen-Love, França, 2016. Com Isabelle Huppert, André Marcon, Roman Kolinka.