Talvez a gente dê muita importância à Copa do Mundo. Não sei mensurar o valor adequado a se dispensar a esse tipo de evento.
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Para poucos, não significa absolutamente nada;
Para alguns, redenção;
Para tantos, é desafogo;
Para outros, paixão;
Para muitos, apenas entretenimento;
Para quem gosta muito de futebol, é tudo isso junto;
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Eu gosto muito de futebol. Eu adoro assistir à Copa do Mundo. Eu adoro ver o Brasil em campo. Eu adoro ver a seleção canarinho erguer a taça – estou com saudades, inclusive. Azar. Eu adoro assistir ao efeito que esse torneio causa nas pessoas.
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Especialmente porque tudo é uma questão de perspectiva
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Se, para um brasileiro pentacampeão, erguer a taça é um dever. Para um panamenho, a vitória é outra. É a primeira vez que o Panamá participa da Copa do Mundo e o seu torcedor soube aproveitar a honra como poucos. Tanto é assim que, no jogo contra a Inglaterra, o gol do zagueiro Baloy foi celebrado como se já não tivesse levado seis gols do adversário. O pé direito de Felipe Baloy foi a redenção do estreantes, que comemoraram o gol como se fosse um título.
Baloy chorou, foi abraçado pelos companheiros, abraçado pela torcida, abraçado pela família e entrou para a história como o estreante mais velho a marcar em Copas – 37 anos e 120 dias.
Algo parecido aconteceu com o Peru, de volta à Copa depois de 36 anos. Já eliminado, venceu a Austrália por 2 a 0. O último gol dos peruanos em um Mundia foi marcado em 1982, na Espanha. A última vitória aconteceu quatro anos antes, na Argentina. Foi somente agora, em 2018, na Rússia, que o desafogo chegou nos pés de Carrillo e Guerrero.
E além da redenção e desafogo dos panamenhos e peruanos, temos a paixão dos argentinos, que comoveu até mesmo os maiores rivais; a alegria dos senegaleses; o contentamento dos islandeses; a esperança dos iranianos; o desolamento dos alemães; o conforto dos sul-coreanos; o temor dos mexicanos; o susto dos portugueses; a fé dos nigerianos; a tranquilidade dos belgas; a surpresa dos croatas; e a lista segue.
Mas daqui a pouco tem Brasil e, de minha parte, Brasil em campo é tudo isso junto. É uma questão de perspectiva.
O mundo sempre mudou rápido. Hoje, essa rapidez parece hiper-acelerada. Nosso dia continua tendo 24 horas, a semana 7 dias. Graças à hiper-conectividade disponível em nossos bolsos, um mundo tão grande, tão vibrante, escapa ao nosso olhar, e isso é inevitável. A economia da atenção cobra o seu preço. Sentimo-nos tontos diante de tantas opções. A distração é perversa. Uma ansiedade crescente assola a todos diante de uma miríade de estímulos que gritam por nosso envolvimento profundo. Essa atenção cada vez mais volátil acelera nosso coração e nos angustia. Se estou aqui, não estou lá, e nem acolá. E a grama do vizinho, mesmo que nem sempre seja tão mais verde do que o nosso olhar dá conta, nos deixa com a impressão de que o momento passou, de que perdemos a oportunidade de ver mais, sempre mais.
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E uma pergunta brota: estamos mesmo vendo as coisas ou só zapeando através de nossos traiçoeiros sentidos, superficialmente, nesse mar tão (des)interessante?
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Nos últimos dias, deparei com esses questionamentos num dos campos pelo qual sou apaixonado e vivo intensamente: a arte, mais especificamente, a arte musical. O nosso mundo interno parece tão disposto e saudável em rapidamente deglutir o entretenimento, e tão preguiçoso e resistente à arte. Duchamp já colocou em xeque o significado da arte. Tentar laçá-la de um só golpe parece uma tarefa ingrata. E de fato é. Mas depois de décadas trabalhando com ela, lecionando sobre ela, me atrevo a dizer: a principal diferença entre a arte e o entretenimento é que na arte existe um combate, um enfrentamento. No entretenimento, não. É claro que o entretenimento pode levantar questionamentos, mas em um mundo cada vez mais hedonista e avesso aos questionamentos despolarizados, o entretenimento parece ofuscar e esmagar a arte, que luta heroicamente para se sobressair pelas beiradas. Afinal, em uma época em que os ansiolíticos nos dizem que é proibido sofrer, como pode um enfrentamento triunfar?
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Quando a obra de arte é confundida com o lixo, e nele vai parar, me parece muito uma questão de que o combate foi aniquilado por ignorância e por falta de preparo para a batalha.
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A dita alta cultura deveria ser explanada como um território fértil a ser explorado, mas que exige preparo para seu entendimento e exploração, e não como um instrumento ideológico que coloca, de um lado, os iniciados, e de outro, a massa (in)capaz de compreende-la. Mesmo para quem está acostumado a entrar no diálogo reflexivo proposto pelos artistas, quanto mais provocativa e menos óbvia for a obra, mais irá exigir dos espectadores, mais tende à fuga.
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Entre fugir do combate e enfrentar a arte
Ouvi, recentemente, o novo álbum de um dos maiores artistas de nosso tempo: Jack White.“Boarding House Reach” é, sem dúvida, a obra mais densa de White, até então. Seus álbuns anteriores, e seu trabalho com o White Stripes, sempre demonstraram um vigor e uma primazia assertivos, mas nessa nova incursão, ele parece ter se superado. Me dediquei a fazer uma primeira audição imersiva, de cabo a rabo. Ao final, pensei: mas que diabos é isso? As músicas são de difícil compreensão. Estará ele promovendo uma overdose estética que simplesmente quer chocar pelo excesso e pela imprecisão?
Então, me coloquei a pensar e vi que eu estava fugindo do combate, do enfrentamento, saindo pelo fácil caminho da negação, da rejeição, do desprezo. Muni-me de um esforço intelectual e ouvi, em sequência, novamente, todas as faixas, uma a uma, procurando imergir naquele espectro que me escapava à audição. O resultado? Como já inferi, consegui furar uma barreira recorrente e invisível do preconceito (e é isso que é um preconceito, um conceito, muitas vezes mal lido, a priori) e me deixei levar pela obra. Corri para o combate.
Enfrentei a obra e o artista, mesmo diante de sua incompreensível magnitude. E me deliciei. E vi o que não havia visto, e senti o que não me permitira sentir. E por fim, compreendi a provocação e me curvei diante dela. Adianto que a audição não é fácil, é tensa, de uma densidade voraz em diversos momentos. Não é um álbum de canções, e um discurso estético de enfrentamento, uma busca de novas narrativas. E, ao final, vi que a luta valeu a pena. E quem vence esse tipo de conflito? Ambos vencemos, eu por poder me permitir a ir além e mergulhar, despido de pudores, naquela salada sonora complexa e alucinante; e ele, por ter me mostrado que a arte mais profunda é dolorosa, é arte-enfrentamento.
Ticiano Paludo é músico, compositor e produtor musical. Doutor em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS, coordena a Especialização em Produção Musical: comunicação e entretenimento na mesma universidade. E gosta de um enfrentamento. Mail: ticiano.paludo@gmail.com
Uma sensação de estranhamento percorre o filme, contorna grande parte de suas cenas. 15h17 – Trem para Paris tem lá sua radicalidade, que não é, para evitar desentendimentos, uma radicalidade narrativa. Clint Eastwood entende a psique americana com precisão e coloca, tanto neste filme como em Sniper Americano, o militarismo, o valor das armas como símbolos de autonomia, liberdade e segurança contra ameaças externas, a constituição da fé e o cristianismo obstinado que se conecta a isso tudo de maneira natural e autoevidente.
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Ele está seguro de que, se há uma maneira de filmar histórias de vidas comuns que presenciam e atuam em grandes acontecimentos, é imperativo que se abrace seus personagens sem tantas certezas morais. Se ele as mantêm, o filme as coloca em conflito.
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O exemplo é, novamente (assim como em Sniper Americano), o papel do narrador na condução das possibilidades de leitura que o filme faz abrir. Os filmes de Clint, como a sociedade americana, só parecem simples. O espectador é convocado a partilhar o mundo e toda a sujeira que o sustenta a partir da convocação de estereótipos e clichês. É uma posição paradoxal e instigante esta que sua obra evidencia: Clint não faz um cinema político puro padrão, conciliador de boas intenções e de seguranças intelectuais. A vitória dos bons e a punição dos maus, lógica do faroeste de herança fordiana, comporta também alguma contradição (inclusive emocional), pois o justiçamento nem sempre determina moralmente seus filmes (ao contrário de John Ford), deixando que a consciência espectatorial elabora seus sentidos.
O republicanismo de Clint se costuma somar ao argumento na esperança de resolver a moral formal que circunda seu cinema: ele é um reacionário, até um fascista, disseram por ocasião de alguns de seus filmes, mais recentemente (de novo) sobre Sniper Americano. Se por um lado isso não parece ser algo relevante para o entendimento do filme ou para a discussão crítica, todavia chama atenção para algo que é, no ponto de vista que articulo aqui, a ambiguidade sedutora da obra recente Eastwood. É notável inclusive como o cineasta percebe que a construção do imaginário do herói, materializado na figura de Spencer Stone, é um processo que passa também por aqueles que criam imagens: a televisão e o cinema, claramente. Clint tem culpa no cartório e explicita isso, pois entre os cartazes de filmes que Stone guarda em seu quarto quando jovem há um de Cartas de Iwo Jima.
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Assim como Sniper Americano, Trem para Paris não é um filme preocupado em contextualizar “o outro lado da história”. Ao contrário, o terrorismo aparece apenas como ameaça e como ponte para a jornada de salvação da qual os três jovens americanos serão protagonistas.
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Ao filme interessa os procedimentos internos, a consagração moral de seus três personagens centrais. Por outro lado, desde a infância o aparato bélico-religioso se manifesta exigente na educação dos meninos, moldando suas personalidades, motivando-os a buscar em certos mitos de origem (o exército e Deus, nas armas e na fé cristã) o combustível para negarem certas regras comuns, seja na escola, seja em casa, seja na rua. O filme sublinha essa ambiguidade – até com certa redundância, com certo exagero visual e textual.
Ambiguidade que está carregada na própria fotografia. Pois é curioso como os elementos documentais se misturam ao jogo da ficção proposto por Clint, não apenas pelo uso de imagens de arquivo do então presidente francês François Hollande congratulando os três, mas pela própria materialidade de suas imagens encenadas. O fato dos três interpretarem eles mesmos, não sendo atores profissionais, contribui para a sensação de estranhamento geral que o filme transmite, pois é também a ideia de representação que o filme quer colocar em crise.
Com o tempo, no contexto da filmografia de Clint Eastwood, Trem para Paris ficará condicionado ao reconhecimento de filme menor. Não sem razão, pois apesar de continuar a tradição da autocrítica recente que o cineasta vem fazendo sobre a representação do heroi clássico americano o filme já não tem a mesma força.
The 15:17 to Paris, de Clint Eastwood, EUA, 2017. Com Spencer Stone, Anthony Sadler, Alek Skarlatos, Jenna Fischer.
As piadas de Seth Meyers mostram o que está errado com a indústria do entretenimento
Geórgia Santos
13 de janeiro de 2018
O anfitrião do Globo de Ouro foi extremamente feliz. Seth Meyers tinha a ingrata missão de apresentar a premiação em uma noite dedicada às mulheres – só o fato de ele ser homem já era um problema de sensibilidade. Mas o que poderia ter sido um desastre foi uma aula sobre o que está errado com a indústria do entretenimento.
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Ele foi engraçado, foi sensível e foi certeiro
A gente ri, mas por dentro dá vontade de chorar
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1. Boa noite senhoras e senhores restantes;
2. Feliz Ano Novo, Hollywood. É 2018, a maconha é finalmente permitida e o assédio sexual finalmente não;
3. Uma nova era se inicia, e eu posso dizer isso porque fazia anos que um homem branco não ficava nervoso em Hollywood;
4. Aos homens indicados nesta noite, essa é a primeira vez em três meses que não vai ser assustador ouvir seu nome lido em voz alta;
5. Muitas pessoas pensam que seria mais apropriado se uma mulher apresentasse esta premiação, e eles podem estar certos. Mas se serve de consolo, e eu sou um homem sem absolutamente nenhum poder em Hollywood. Eu sequer sou o Seth mais poderoso desta sala. Aliás, lembram quando ELE (Seth Rogen) era o cara que arrumava confusão com a Coreia do Norte? Tempos mais simples;
6. Associação da Imprensa Estrangeira. Um conjunto de três palavras que não poderia ter sido melhor desenhado para irritar nosso presidente. O único nome que poderia deixá-lo mais irritado é Associação Hillary México Salada;
7. A Forma da Água recebeu mais indicações que qualquer filme neste ano. Um filme incrivelmente lindo, mas eu preciso admitir que quando eu ouvi falar de um filme em que uma jovem mulher se apaixona por um monstro nojento, eu pensei, “Ah, cara, não outro filme do Woody Allen”;
8. O Globo de Ouro faz 75 anos. Mas a atriz que interpreta sua esposa ainda tem 32;
9. De acordo com um artigo recente, apenas 5% dos papeis de Hollywood são interpretados por atores asiáticos. Mas esses números podem estar errados já que o cálculo foi feito por uma pessoa branca;
10. E agora para apresentar nosso primeiro prêmio… Por favor não sejam dois caras brancos, por favor não sejam dois caras brancos. Oh, graças a Deus. Gal Gadot e Dwayne Johnson, pessoal!
Ah, isso sem falar na maravilhosa letra de Natalie Portman que, adequadamente, anunciou os HOMENS indicados a melhor direção.
Foto: Paul Drinkwater/NBCUniversal via Getty Images