Por Ticiano Paludo
O mundo sempre mudou rápido. Hoje, essa rapidez parece hiper-acelerada. Nosso dia continua tendo 24 horas, a semana 7 dias. Graças à hiper-conectividade disponível em nossos bolsos, um mundo tão grande, tão vibrante, escapa ao nosso olhar, e isso é inevitável. A economia da atenção cobra o seu preço. Sentimo-nos tontos diante de tantas opções. A distração é perversa. Uma ansiedade crescente assola a todos diante de uma miríade de estímulos que gritam por nosso envolvimento profundo. Essa atenção cada vez mais volátil acelera nosso coração e nos angustia. Se estou aqui, não estou lá, e nem acolá. E a grama do vizinho, mesmo que nem sempre seja tão mais verde do que o nosso olhar dá conta, nos deixa com a impressão de que o momento passou, de que perdemos a oportunidade de ver mais, sempre mais.
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E uma pergunta brota: estamos mesmo vendo as coisas ou só zapeando através de nossos traiçoeiros sentidos, superficialmente, nesse mar tão (des)interessante?
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Nos últimos dias, deparei com esses questionamentos num dos campos pelo qual sou apaixonado e vivo intensamente: a arte, mais especificamente, a arte musical. O nosso mundo interno parece tão disposto e saudável em rapidamente deglutir o entretenimento, e tão preguiçoso e resistente à arte. Duchamp já colocou em xeque o significado da arte. Tentar laçá-la de um só golpe parece uma tarefa ingrata. E de fato é. Mas depois de décadas trabalhando com ela, lecionando sobre ela, me atrevo a dizer: a principal diferença entre a arte e o entretenimento é que na arte existe um combate, um enfrentamento. No entretenimento, não. É claro que o entretenimento pode levantar questionamentos, mas em um mundo cada vez mais hedonista e avesso aos questionamentos despolarizados, o entretenimento parece ofuscar e esmagar a arte, que luta heroicamente para se sobressair pelas beiradas. Afinal, em uma época em que os ansiolíticos nos dizem que é proibido sofrer, como pode um enfrentamento triunfar?
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Quando a obra de arte é confundida com o lixo, e nele vai parar, me parece muito uma questão de que o combate foi aniquilado por ignorância e por falta de preparo para a batalha.
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A dita alta cultura deveria ser explanada como um território fértil a ser explorado, mas que exige preparo para seu entendimento e exploração, e não como um instrumento ideológico que coloca, de um lado, os iniciados, e de outro, a massa (in)capaz de compreende-la. Mesmo para quem está acostumado a entrar no diálogo reflexivo proposto pelos artistas, quanto mais provocativa e menos óbvia for a obra, mais irá exigir dos espectadores, mais tende à fuga.
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Entre fugir do combate e enfrentar a arte
Ouvi, recentemente, o novo álbum de um dos maiores artistas de nosso tempo: Jack White. “Boarding House Reach” é, sem dúvida, a obra mais densa de White, até então. Seus álbuns anteriores, e seu trabalho com o White Stripes, sempre demonstraram um vigor e uma primazia assertivos, mas nessa nova incursão, ele parece ter se superado. Me dediquei a fazer uma primeira audição imersiva, de cabo a rabo. Ao final, pensei: mas que diabos é isso? As músicas são de difícil compreensão. Estará ele promovendo uma overdose estética que simplesmente quer chocar pelo excesso e pela imprecisão?
Então, me coloquei a pensar e vi que eu estava fugindo do combate, do enfrentamento, saindo pelo fácil caminho da negação, da rejeição, do desprezo. Muni-me de um esforço intelectual e ouvi, em sequência, novamente, todas as faixas, uma a uma, procurando imergir naquele espectro que me escapava à audição. O resultado? Como já inferi, consegui furar uma barreira recorrente e invisível do preconceito (e é isso que é um preconceito, um conceito, muitas vezes mal lido, a priori) e me deixei levar pela obra. Corri para o combate.
Enfrentei a obra e o artista, mesmo diante de sua incompreensível magnitude. E me deliciei. E vi o que não havia visto, e senti o que não me permitira sentir. E por fim, compreendi a provocação e me curvei diante dela. Adianto que a audição não é fácil, é tensa, de uma densidade voraz em diversos momentos. Não é um álbum de canções, e um discurso estético de enfrentamento, uma busca de novas narrativas. E, ao final, vi que a luta valeu a pena. E quem vence esse tipo de conflito? Ambos vencemos, eu por poder me permitir a ir além e mergulhar, despido de pudores, naquela salada sonora complexa e alucinante; e ele, por ter me mostrado que a arte mais profunda é dolorosa, é arte-enfrentamento.
Ticiano Paludo é músico, compositor e produtor musical. Doutor em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS, coordena a Especialização em Produção Musical: comunicação e entretenimento na mesma universidade. E gosta de um enfrentamento. Mail: ticiano.paludo@gmail.com
