O jogo aludido pelo título nacional de Gerald’s Game, a bem dizer, dura muito pouco tempo. Casal de anos, Gerald (Bruce Greenwood) e Jessie Burlingame (Carla Gugino) vão para uma casa distante de qualquer contato externo para retomarem o desejo um pelo outro, que parece adormecido. Gerald propõe imobilizá-la na cama utilizando algemas e toma alguns remédios para ganhar o ímpeto que lhe falta na vida cotidiana, e com a mulher com a qual partilha seus desejos. Ela, visivelmente constrangida, aceita, de início, a brincadeira. Acontece que o ato não se consuma. Após um desentendimento com os critérios do jogo, que oscila entre o desejo e o abuso, Gerald tem um ataque cardíaco fatal: está morto. Jessie fica então algemada num local totalmente isolado onde seus gritos não se farão ouvir.
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O jogo então passa da ação física para a ação mental
Jessie, sozinha, alucina
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Mike Flanagan, diretor de Jogo Perigoso, tem apreço pelo silêncio, inclusive visual, de sua encenação. Seu filme anterior, Hush (outro filme puramente mental, já que muitos sentidos faltam à protagonista), também se passa em um cenário isolado, também privilegia amplificar suas matérias de expressão a partir de uma figuração sóbria e de sets notavelmente discretos. É, ao que parece, esse o estilo do seu cinema. Ele tem, diga-se, boa noção do espaço onde busca instalar o medo, a estrutura da tensão e a dramaturgia, muito simples, que lhe convém. As evidências apontam para um cineasta pragmático (um tipo de pragmatismo narrativo que não existe em Stephen King, por exemplo, autor da obra na qual o filme se baseia; King é um escritor de floreios, de parênteses, de digressões).
O aprisionamento de Jessie, dadas as circunstâncias em que se deu, a faz retornar a memórias antigas, mais ou menos resolvidas, no entanto ainda certamente dolorosas. É na própria família que ela conhece a monstruosidade de um abusador – algo que vai carregar em seu olhar receoso diante das brincadeiras sexuais do marido. Incapaz de reagir agora, frágil demais para relutar quando criança é o que nos mostra a montagem dos acontecimentos que se dá em pelo menos três instâncias: o que ocorre de fato, o que ela imagina acontecer e o que é memória.
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As marcações que a estrutura narrativa do filme organiza apelam para ampla redundância discursiva
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A sanha explicativa, adotada no quarto final do filme, acaba sendo fatal ao encerramento dramático e, ao que me parece, até emocional: ela rompe com o aspecto figurativo que ele havia criado até boa parte de sua história, rompe com o ritmo de seu desenvolvimento, apressando-se em fornecer sentido ao mistério, a fazer passar a sua mensagem como um crente com seu livro sagrado.
O que faz desandar a sua habilidade de conduzir o mistério disparado inicialmente é sua narração altamente coercitiva – o seu Mal de Alzheimer narrativo: quer se fazer entender com absoluta rigidez, forçando explicações verbais (orais) tranquilamente dispensáveis uma vez que já estavam inscritas no filme visualmente – ou o contrário. Das duas, uma: ou Flannagan não confia na força das imagens que cria ou não confia nos espectadores que cultiva.
Gerald’s game, de Mike Flanagan, EUA, 2017. Com Carla Gugino, Bruce Greenwood, Carel Struycken, Chiara Aurelia.
