Tão série

Master of None – Você precisa ver antes de o ano acabar

Geórgia Santos
26 de dezembro de 2017

No último episódio da primeira temporada de Master of None, da Netflix, um Dev (Aziz Ansari) engasgado após engolir uma tonelada metafórica de pontos de interrogação pede socorro a seu pai, Ramesh (interpretado pelo pai de Ansari, Shoukath). São muitos os porquês envolvidos em seus relacionamentos falidos e na crescente incerteza sobre o futuro profissional em uma carreira que parece definhar – os típicos fantasmas que saem debaixo das camas das crianças assustadas para assombrar todos os trintões desencontrados. Dev não consegue decidir. Não consegue decidir de quem gosta, qual é a mulher certa, o que ele quer fazer da vida. Ele não consegue arriscar. Ele não consegue decidir.

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Ramesh – “Você precisa aprender a tomar decisões, cara. Você é tipo aquela mulher sentada em frente à figueira, encarando os galhos enquanto a árvore morre.”

Dev – “Que mulher? Que árvore?”

Ramesh – “Sylvia Plath? A Redoma de Vidro? Tu nunca lê, tá sempre no youtube…”

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“Eu vi minha vida ramificando-se diante de mim como a figueira verde da história. Na ponta de cada galho, como um figo gordo e roxo, um futuro maravilhoso acenava e piscava. Um figo era um marido, um lar feliz e filhos, outro era uma poetisa famosa e consagrada, outro era uma professora brilhante, outro era a Europa, a África e a América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e outros vários amantes com nomes exóticos e profissões excêntricas, outro ainda era uma campeã olímpica. E, acima de tais figos, havia muitos outros. Eu não conseguia prosseguir. Encontrei-me sentada na forquilha da figueira, morrendo de fome, só porque não conseguia optar entre um dos figos. Eu gostaria de devorar a todos, mas escolher um significava perder todos os outros. Talvez querer tudo signifique não querer nada. Então, enquanto eu permanecia sentada, incapaz de optar, os figos começaram a murchar e escurecer e, um por um, despencar aos meus pés.”

Sylvia Plath , The Bell Jar. New York: Bantam Books, 1972.

A série gira em torno do paradoxo da escolha. Toda escolha tem uma consequência. E, como esclareceu Plath, toda escolha implica na anulação de outra. Talvez Dev continue não lendo Sylvia Plath, mas ele decidiu. Decidiu ir para a Itália aprender a fazer massa e, quem sabe, encontrar algumas das respostas.

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Na segunda temporada de Master of None, Dev já não é mais o mesmo. Arnold (Eric Wareheim), Denise (Lena Waithe) e Brian (Kelvin Yu) já não são mais os mesmos. Eles todos estão encarando a figueira

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E o resultado disso é ainda melhor é uma primorosa leitura da vida contemporânea. Dentre os dez episódios está uma homenagem ao filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica; uma celebração a Nova York em um episódio totalmente silencioso, produzido a partir da perspectiva de uma pessoa surda; um retrato (desastroso) da cultura do Tinder; outro episódio dedicado inteiramente à Denise, em que ela assume sua homossexualidade diante da família; além de referências à Bob Dylan e Vanilla Sky; questões de fé e tradição, muçulmanos comendo bacon.

E preso a essa roda viva está um Dev mais maduro, que se vê também como parte da engrenagem que critica. Ele continua apontando o racismo sempre que é confrontado com isso, mas também é flagrado repetindo padrões. Em um episódio, ele não reconhece seu maquiador, um homem negro, em um ato quase casual de racismo. Ele também falha em reconhecer no amigo o comportamento de um predador sexual. Sem contar na ficante racista, problema que ele só aponta depois de já ter transado com ela.

Allora, diz Dev constantemente. Aquela palavra que a gente usa para preencher o espaço vazio da conversa, que sai automaticamente, sem pensar. Allora, com todos os defeitos, Dev está tentando. E nós? Estamos? Em termos evolutivos, 2017 foi um ano nulo. Retrocedemos no que tange à política e ao convívio social, como se nunca tivéssemos avançado daquele estágio de Homo Habilis – e olhe lá.

Allora, está na hora de parar de encarar a figueira e, finalmente, escolher um figo. E assistir Master of None pode ajudar, definitivamente. Ah, e tem o John Legend tocando piano. Allora…

 

Foto: Divulgação

 

Tão série

Seinfeld – Celebrando o Festivus

Geórgia Santos
23 de dezembro de 2017

Seinfeld é uma das minhas séries favoritas de todos os tempos. É inadequada, debochada, provocadora e nada polida. Politicamente incorreta sem ser torpe. No ponto. Uma crítica à sociedade mas também uma crítica a quem leva a sério demais as convenções. E não seria diferente com o Natal.

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Eu nunca fui fã do Natal

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Mentira, quando era criança eu esperava ansiosamente pelo Papai Noel. Houve a vez em que saí do banho desesperada, correndo nua pela casa, porque ouvira os passos do bom velhinho estalando no piso antigo de madeira. E eu estava certa, lá estavam os presentes onde antes só havia uma poltrona. Ironicamente, morria de medo daqueles caras que se vestiam de Papai Noel em lojas ou, no caso de Paraí, no ginásio de esportes.

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Mas meu fascínio com o Natal passou assim que percebi que era um embuste

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E antes que alguém fale sobre Jesus e presépios, eu respondo: acho que nunca nem fui a uma missa de Natal, logo, não significa nada pra mim. Restou meu fascínio pelos presentes ao passo que a data se tornou apenas uma noite legal em que se janta uma comida especial com a família ao mesmo tempo em que se é invadido por uma nostalgia quase perigosa.

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Foi um alento quando vi o Seinfeld debochando do Natal

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Não que eu ache que mereça deboche, não me entendam mal. É apenas muito interessante ver a quebra do paradigma de episódios reminiscentes em que as luzinhas piscam e todos vestem seus suéteres vermelhos, pesados demais pra usarmos no verão no brasileiro.

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A Festivus to the rest of us

No episódio “The Strike”, que foi ao ar em 1997, o público conhece o Festivus, um feriado laico celebrado em 23 de dezembro como uma alternativa às pressões e consumismo da época de Natal. A celebração não-comercial inclui o jantar, obviamente, mas também uma série de outros elementos que o tornam muito especial.

Em vez de um pinheiro, o adorno tradicional é um cano de alumínio sem enfeites, porque causam distração; também não há muito amor a ser distribuído, em vez disso há a “Ventilação de queixas”, em tradução livre, que consiste em cada pessoa verbalizar todos os motivos pelos quais os familiares foram uma decepção ao longo do ano. “Eu tenho muito problemas com vocês todos, e agora vocês vão ouvir”, diz Frank Costanza (Jerry Stiller), o criador do feriado; por fim, há o que se chama de “Façanhas de força”, em que o anfitrião escolhe alguém para ser desafiado durante uma luta

A Festivus to the rest of us” significa algo como “um feriado para o restante de nós”, justamente destacando o caráter inclusivo da data. Afinal de contas, o Festivus foi criado no dia em que o pai de George (Jason Alexander) não conseguiu comprar a boneca que o filho tanto queria.

Esse episódio é revigorante. É engraçado, é leve, é absurdo, é quase pecaminoso para quem acredita em pecado. Se o que tu queres é uma versão de meia hora de uma propaganda do Zaffari, Seinfeld não é pra ti. Mas se a tua ideia de Natal é dar umas boas risadas às custas dos nossos rituais ultrapassados, as aberrações de Jerry Seinfeld caem como uma luva. Enquanto tu decides, eu vou pegar minha hipocrisia, preparar a marinada do peru e terminar de decorar a árvore =)

 

 

 

Tão série

Black-ish

Geórgia Santos
15 de abril de 2017

Black-ish é uma mistura de tudo o que eu adoro: é engraçada, bem escrita e apresenta uma dura crítica à sociedade contemporânea sem pesar. A série de Kenya Barris está redefinindo o significado de sitcom.

Não precisa ser vazio para ser engraçado e não precisa ser pesado para ser relevante.

A série parte da premissa de que quando um negro norte-americano atinge um determinado status social, passa por uma espécie de branqueamento. Por isso o “ish”, em Black-ish, que em tradução livre seria algo como “Mais ou menos negro.” Ou seja, é difícil se manter conectado às origens e mais complicado ainda manter a família ciente de onde veio e do motivo pelo qual é importante lembrar disso.

Andre (Dre) Johnson Sr (Anthony Anderson) é um rico executivo do ramo da Publicidade e é casado com a médica Rainbow (Bow) Jhonson (Tracee Ellis Ross), com quem tem cinco filhos. A cada episódio, um dilema sobre como lembrar da relevância de sua origem e, principalmente, o longo caminho trilhado até aqui. Um bom exemplo pra quem nunca viu a série é o episódio em que Dre percebe que os filhos não sabem que Barak Obama é o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos. No mundo das crianças, isso é absolutamente normal. Obama é o único presidente que conhecem, afinal de contas. Chocado, o pai compreende que a família precisa saber do tortuoso caminho até a vitória do democrata em 2008 e valorizar o que ele representa.

Ele enfrenta, então, o dilema central: será que ele está desconectando os filhos de sua herança cultural ao oferecer os privilégios que ele não teve na infância?

Black-ish é diferente e nos mostra uma família tentando entender o mundo do qual faz parte, inclusive com suas brigas e dilemas morais. E o fato de ser sobre uma família negra não é acidental, é a identidade da série. Fala sobre racismo, sobre estereótipos, sobre brutalidade policial, Black Lives Matter, dilemas sobre relacionamentos entre negros e brancos e, em meio a isso tudo, encontra humor para divertir o telespectador brincando a duração (loooonga) dos cultos e com o fato de que Dre vê racismo em todo canto, pra citar alguns.

É, também, uma ótima oportunidade para nós, brancos, abrirmos os olhos de uma vez por todas. Eles simplesmente atacam temas sensíveis em todos os episódios e funciona: Obama ama, Trump considera racista. Isso diz muito.