Voos Literários

O reizinho mandão veio parar no Brasil de 2017

Flávia Cunha
19 de setembro de 2017

A cada dia, aparecem mais notícias desalentadoras para os de espírito crítico e libertário no Brasil. Uma onda conservadora tomou conta do país, em um verdadeiro tsunami de chorume. É exposição de arte sendo fechada por pressão da moral e dos bons costumes, psicólogo defendendo a cura gay com aval judicial e governante sendo autorizado pela Justiça a impedir protestos no seu entorno.

A verdade é que O Reizinho Mandão, personagem do clássico infantil de Ruth Rocha, parece ter invadido o Brasil contemporâneo. Pode assumir a forma de um movimento com jovens inflexíveis e cerceadores da liberdade alheia, pode ser o hater das páginas a favor das causas negra, LGBTQ e feminista, também é possível que seja aquele colega de trabalho que tira sarro dos outros e depois reclama que o mundo tá muito chato.

Para quem não conhece o livro, o enredo aborda a história de um jovem rei que é a mais perfeita encarnação do absolutismo, (a exemplo de Luis XIV, que ilustra esse texto). Ele assume o trono após a morte de seu pai e impõe ao seu país imaginário uma série de leis absurdas e não quer ser contrariado por ninguém, nem por seus conselheiros.

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Eles explicavam que um rei tem de fazer leis importantes, para tornar o povo mais feliz.

Mas o reizinho não queria saber de nada. Era só um conselheiro qualquer abrir a boca para dar um conselho e ele ficava vermelhinho de raiva, batia o pé no chão e gritava de maus modos:

– Cala a boca! Eu é que sou o rei. Eu é que mando!

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A história prossegue com o reino todo desaprendendo a falar, em uma analogia com a ditadura existente no Brasil da época, já que Ruth Rocha lançou esse enredo em 1978. Mesmo ano em que Geisel estava no poder, em meio a um processo de abertura política que durou longos anos até chegar-se à promulgação da constituição de 1988.

Ainda, assim, recentemente teve cantor sertanejo dizendo por aí que a ditadura não existiu. Tristes tempos esses nossos…

A solução para acabar com a ignorância em massa que assola o país pode estar na literatura. E isso quem está dizendo é o historiador Dante Gallian, com seu livro A Literatura como Remédio. A obra destaca como a leitura de grandes clássicos pode ser proporcionar a cura para doenças da alma e proporcionar transformações humanizadores e terapêuticas, ao conseguir levar as pessoas a exercitarem a empatia.

Fortemente recomendado para pessoas com dificuldade de alteridade. Quem sabe não é um bom presente para aquela tia conservadora, que atormenta os almoços de família?

Voos Literários

Não é fácil ser mulher. Mas a gente segue na luta.

Flávia Cunha
5 de setembro de 2017

Nos últimos dias, um nó na garganta me invade com o debate a respeito da decisão judicial sobre o caso da ejaculação em cima de uma passageira de um ônibus em São Paulo. Não foi constrangimento. Não foi? Nem entro no mérito do direito criminalista, que não domino, mas na sensação de revolta provocada pelo teor da sentença, escrita por um homem.

Évelin Argenta, uma das colaboradoras do blog Reporteando, comentou nesse baita texto sobre como é difícil tratar o assunto como pauta ao conversar com colegas do sexo masculino. Parece que existe uma barreira interna em grande parte dos homens, que faz com que esse tipo de assunto seja considerado apenas uma vitimização da condição de ser mulher, quando o papo é bem mais complexo do que esse.

No caso da literatura brasileira, o machismo não é de hoje. Lá em 1897, uma mulher ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras. Era a carioca Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, uma ilustre desconhecida nos dias atuais. Apesar de ser uma escritora talentosa, foi barrada por ser mulher. Essa matéria aqui explica bem a situação, que está longe de ser mimimi. (Aliás, odeio esse termo, usado para tornar pejorativo causas essenciais nos dias atuais. Entre elas, o feminismo).

A aclamada escritora Lygia Fagundes Telles comentou, durante entrevista ao programa Roda Viva, que teve dificuldades de se impor no mundo da literatura por ser jovem e mulher. No início da sua carreira, ela relata que os comentários a seu respeito eram dirigidos à sua aparência e não à sua produção literária:

“Eu queria que me respeitassem e não respeitavam porque vinham com um negócio de beleza, eu ficava uma fúria, tá entendendo? Porque eu dizia: eu estou escrevendo tão bem e vocês não estão falando do meu texto, estão falando da minha cara. Isto me deixava muito infeliz e eu me sentia perseguida.”

Outra que sempre enfrentou barreiras na literatura foi Hilda Hilst. Nascida no interior de São Paulo, filha de pais separados, era extremamente anticonvencional para a época em que viveu. Na sua literatura, fez poesias “sérias” e literatura erótica, tachada por muitos de pura pornografia. Falecida em 2004, aos 74 anos, ela comentou muitas vezes sobre o assunto:

“Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam.”

O trecho acima de entrevista de Hilda à revista A-Z.

Mas como diz a bela canção interpretada por Maria Bethânia, “Não mexe comigo que eu não ando só”. A mulherada segue na luta, ainda precisando se fazer respeitar em suas áreas de atuação. Entre elas, a literatura, essa forma de arte tão menosprezada no Brasil.

Voos Literários

Clarice Lispector: repórter por mais de um dia

Flávia Cunha
29 de agosto de 2017

Eu já falei por aqui de escritores brasileiros que precisam trabalhar na imprensa para pagar as contas. Participando desse grupo movido pela urgência financeira, está a figura ilustre de Clarice Lispector. Em diversos momentos de sua vida, teve que recorrer a empregos em jornais e revistas, mesmo sendo uma autora de livros prestigiados pela crítica.

Um registro expressivo da escritora como repórter pode ser conferido em Clarice Lispector: Entrevistas. A obra é uma compilação de textos publicados na revista Manchete, nos anos de 1968 e 1969, e também na revista Fatos e Fotos: Gente, em 1976, um pouco antes de falecer.  Entre os entrevistados, grande nomes como Nelson Rodrigues, Emerson Fittipaldi e Ferreira Gullar.

Minha entrevista favorita é com Vinicius de Moraes. Selecionei alguns trechos desse bate-papo entre essas duas personalidades importantes da literatura brasileira, com personalidades distintas porém igualmente marcantes.

A conversa começa já bem descontraída:

– Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música,  porque  você é o nosso menestrel.

Em determinado momento, Clarice decide saber sobre a porção músico do poetinha:

– Fale-me sobre sua música.

– Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.

Depois, a conversa flui para a porção escritor de Vinicius:

– Você sabe que admiro muitos seus poemas, e, mas do que gostar, eu os  amo. O que á a poesia para você?

– Não sei, eu nunca  escrevo poemas abstratos , talvez   seja o modo de tornar a realidade mágica  aos meus próprios olhos.  De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão  mais profunda e consequente mais bela.

Clarice como repórter deixa transparecer seus sentimentos e relata inclusive os instantes de silêncio entre os dois:

Fizemos uma pausa. Ele continuou:

– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…..

( Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.)

O comentário de Vinicius refere-se à sequela de um incêndio que a escritora escapou, em 1966. O fogo começou devido a um cigarro esquecido por ela, que destruiu todo o seu quarto e atingiu sua mão direita, que por pouco não foi amputada.

Para fechar esse texto, mais uma reflexão do poeta da paixão.

Vinicius disse, tomando um gole de uísque:

– […] Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.

A entrevista completa está nesse site.

Para saber mais:

https://claricelispectorims.com.br/

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

 

Voos Literários

A boêmia, a arte e a vida real

Flávia Cunha
22 de agosto de 2017

A vida noturna muitas vezes serve de inspiração para artistas, entre eles escritores. O célebre livro póstumo de memórias de Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, é uma ode aos anos 1920 e mostra muitas festas regadas a jazz e bebidas, na mais pura e genuína boêmia.

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A epígrafe do livro é uma referência ao título original A moveable feast

“Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao tim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel.”

Ernest Hemingway

(Para um amigo, em 1950)

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No microcosmo da capital dos Pampas, um bairro já foi sinônimo de transgressão e boêmia. O Bom Fim e seus bares colocava nas mesmas mesas escritores, cineastas, músicos, universitários e bêbados profissionais. Um dos apaixonados pelo bairro é o jornalista Juremir Machado da Silva. Em determinado trecho da obra Antes do Túnel (Uma História Pessoal do Bom Fim), Juremir fala que a boêmia migra, que a mim remeteu à festa móvel do Hemingway:

“‘O Bom Fim está migrando’

‘O Bom Fim? Desde quando um bairro se mexe?’

‘Desde sempre. O Bom Fim é um bairro de migrantes.’

‘Então é um barco?’

‘Uma jangada. E está migrando para o centro’.

‘Vamos com ele’, eu avisei.

‘Estamos no mesmo barco’, ele sintetizou ironicamente.”

Após essa primeira migração da vida noturna do Bom Fim, houve muitos desentendimentos com os vizinhos, até o ciclo mais pulsante daquela época ser encerrado, a exemplo do que parece estar acontecendo nos dias atuais no bairro Cidade Baixa. A situação é muito semelhante: jovens invadem as ruas e permanecem ali madrugada adentro, incomodando quem não gosta desse comportamento.

A situação chegou ao extremo com a Brigada Militar jogando bombas de gás de lacrimogêneo para dispersar as pessoas que ocupavam a rua João Alfredo, conhecida por bares e casas noturnas. Recentemente, o Ministério Público pediu que esses estabelecimentos fechem no máximo até a meia-noite, mesmo durante os finais de semana.

O regramento dos horários também foi tentado no Bom Fim, no fim da década de 80, como relembra Juremir, citando um episódio de confronto com a polícia em que morreu um jovem de 21 anos:

“O vereador pedetista Isaac Ainhorn, de saudosa memória, homem gentil e valoroso, tornou-se o principal representante dos moradores do bairro na luta contra os ‘vândalos’ noturnos, nós. […] Depois da morte de Heny Eduardo, Ainhorn conseguiu aprovar e aplicar o que chamamos então de ‘toque de recolher’ ou de ‘estado de sítio’. Os bares foram novamente obrigados a fechar à meia-noite nos dias úteis e às 2 horas da manhã nos finais de semana. […] Era o começo do fim do Bom Fim boêmio das tribos modernas e pós-modernas, A decadência veio aos poucos.”

Ironicamente, no capítulo final, o jornalista comenta sobre a migração dos boêmios do Bom Fim para a Cidade Baixa:

“Aos poucos,o Bom Fim dionísico, feito uma jangada à deriva, num plágio involuntário de José Saramago, migrou para a Cidade Baixa. Bares começaram a pipocar do outro lado da João Pessoa. As novas tribos e os velhos boêmios puseram o pé na avenida e atravessaram o nosso Rubião, o parque, deixando as palmeiras para trás. Aquilo que o Bom Fim conseguiu ser ao final do século XX, efervescente, tumultuado, confuso, violento e intenso, cabe à Cidade Baixa repetir agora.”

Se a festa móvel de Hemingway e a jangada da boêmia descrita por Juremir forem mesmo eternas, em breve poderá haver nova migração em Porto Alegre. Para onde?

PS: Para quem achar que defendo a boêmia na Cidade Baixa e não entendo o lado dos moradores, que fique claro que sou proprietária de um imóvel no coração da Cidade Baixa. E adoro. Porque prefiro a cidade viva e pulsante do que o silêncio das regras e do toque de recolher.

Voos Literários

A filosofia contra o neonazismo

Flávia Cunha
15 de agosto de 2017

A tragédia do fim de semana em Charlottesville traz um alerta sobre o avanço do neonazismo e dos supremacistas brancos nos Estados Unidos. Muito já se falou sobre o assunto na mídia, mas ao pensar em que livro poderia trazer uma reflexão sobre o assunto, pensei em pesquisar sobre a obra de Nietzsche, erroneamente associado ao nazismo e ao anti-semitismo.

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Em sua obra Para Além do Bem e do Malo filósofo alemão demonstra não ter preconceito contra os judeus:

“É certo que os judeus [por serem a raça mais forte e mais rija que vive na Europa], se quisessem – ou, se fossem obrigados a tal, como os anti-semitas parecem querer -, poderiam desde já ter a preponderância, mais ainda, falando de modo completamente literal, o domínio da Europa; é também certo que não trabalham nem fazem projetos nesse sentido. Ao contrário, o que pretendem e querem, no momento, até com certa insistência, é ser absorvidos e integrados à Europa, pela Europa; desejam se fixar seja onde for e ser admitidos, respeitados e dar um fim à vida nômade, ao “judeu errante”

Já no livro Ecce Homo, Nietzsche, posteriormente reverenciado por Hitler, demonstra seu desprezo pelos próprios alemães. 

O filósofo, que morreu no ano de 1900, foi associado postumamente ao nazismo em razão de sua irmã, Elizabeth Foster-Nietzsche, ter utilizado e deturpado suas obras em favor da ideologia de extrema-direita. Ela foi a responsável por uma compilação chamada  Der Wille zur Macht (Vontade de Potência) e ajudou a construir essa associação equivocada de Nietzsche com o regime criado por Hitler.

Quem dera os extremistas da atualidade entendessem que propagar o ódio, o racismo e a intolerância não passam da mais pura estupidez e a prova de que o conceito de Super-Homem criado pela filosofia nada tem a ver com esse tipo de comportamento (para dizer o mínimo) reprovável.

Voos Literários

Um alento em meio à tormenta

Flávia Cunha
8 de agosto de 2017

Diante do cenário político frustrante, em tantos sentidos, permito-me uma evasão da realidade. Sonho, fantasia, idealização, a tal utopia? Não sei. Talvez uma busca de fé no futuro. E nada melhor para isso, na minha opinião, do que recorrer ao escritor Caio Fernando Abreu. Ele, que tinha um profundo desgosto com o mês de agosto, escreveu bastante a esse respeito.

A crônica a seguir é do livro Pequenas Epifanias, uma seleção de textos publicados originalmente em jornais. Um alento para os dias atuais.

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Sugestões para Atravessar Agosto
Caio Fernando Abreu

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro — e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir. Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos.

Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos — ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile à fantasia, categoria originalidade… Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu — sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antônio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún, ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não deem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas — coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismos. Assumidos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco.

 

Voos Literários

Sucupira é aqui ou acolá?

Flávia Cunha
1 de agosto de 2017

Sempre que eu leio notícias do que considero desmandos dos prefeitos de Porto Alegre e São Paulo, me vem à mente a figura de Odorico Paraguaçu, o hiperbólico governante de Sucupira, a cidadezinha ficcional criada por Dias Gomes. Antes de virar sucesso no teatro, na televisão e no cinema, o texto de O Bem-Amado estreou nas páginas da revista Cláudia, em 1963.

De acordo com o autor, a figura do prefeito falastrão foi inspirada no político brasileiro Carlos Lacerda, antagonista de Getúlio Vargas. Alguns especialistas do meio literário também apontam semelhanças com o ex-presidente Jânio Quadros, pelo jeito peculiar de expressar-se em público – “Fi-lo porque qui-lo” e “Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido comê-lo-ia” são algumas das frases mais famosas de Jânio.

O personagem Odorico Paraguaçu era um grande populista, adorado por seus eleitores e um grande sedutor das mulheres da cidade. Seu discurso era marcado por uma retórica complicada mas extremamente vazia.

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“Vamos botar de lado os entretantos e partir para os finalmentes” era um dos bordões de Odorico. Sobre sua ideologia política, declarava: “Eu também sou meio socialista. Não de ponta esquerda… do meio de campo, caindo para a direita!”

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Também atribuía frases próprias (e descabidas) a personalidades. É o caso da seguinte frase, citada pelo personagem como sendo de um grande escritor brasileiro. “Como dizia o poeta Castro Alves: ‘Bendito aquele que derrama água, água encanada, e manda o povo tomar banho'”.

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Ao ser candidato a prefeito de Sucupira, a grande promessa de campanha de Odorico era construir um cemitério na cidade. De acordo com Odorico, “a obra entraria para os anais e menstruais de Sucupira e do país”

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O trecho abaixo integra a peça O Bem-Amado e refere-se a uma conversa do prefeito, já eleito, com seu afilhado político e secretário, Dirceu Borboleta, na presença do vigário da cidade. O objetivo era tentar, de alguma forma, viabilizar a promessa de campanha.

DIRCEU – Está tudo aqui. O senhor vai examinar agora?

ODORICO – Vou. Quero saber logo se há alguma verba para dar início à construção do cemitério.

DIRCEU – (Coloca os processos sobre a mesa) Nem um tostão. Só déficit.

ODORICO – (Folheia os processos) Não é possível.

DIRCEU – A prefeitura tem um terreno…

ODORICO – O terreno só não resolve, é preciso dinheiro para o muro, as alamedas, a capela.

DIRCEU – (Examinando um processo) Parece que há um restinho de verba da água. ODORICO – Da água?

DIRCEU – Para consertar os canos.

ODORICO – Diz isso aí?

DIRCEU – Não, aqui só fala em obras públicas de urgência.

ODORICO – O cemitério também é uma obra pública de urgência. É ou não é? (Irônico) De muita urgência…

DIRCEU – Há um restinho, pouca coisa…

ODORICO – (Anima-se) Não tem importância, um restinho com mais um restinho, já se faz um cemiteriozinho.

DIRCEU – É da luz. Para aumentar a força.

ODORICO – Para que aumentar a força?

VIGÁRIO – A luz anda muito fraca, Coronel, quase não se consegue ler.  

ODORICO – Mas para que ler de noite? Pode-se ler de dia. E depois, uma cidade de veraneio deve ter luz bem fraca, para que se possa apreciar bem o luar… A cidade é muito procurada pelos namorados… o senhor Vigário me perdoe.

DIRCEU – Só que esse desvio de verba…

ODORICO – É para o bem do município. Tenho certeza que Deus vai aprovar tudo.

VIGÁRIO – Quem sabe?… As intenções são boas… E como Deus não é um burocrata… ODORICO – Então vamos escolher o terreno.

DIRCEU – A prefeitura só tem um, mas está ocupado.

ODORICO – Ocupado? Por quem?

ODORICO – Ora, o circo que se mude. Chega das palhaçadas de antigamente. Prafrentemente, vamos tratar de coisas sérias. Pode levar isso daqui. (Dirceu sai com os processos)

ODORICO – Quero ver agora o que vão dizer os que me acusavam de oportunista, de demagogista. Quando virem os pedreiros levantando os muros, construindo a capela, calçando as alamedas…

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ENTRE A LITERATURA E A REALIDADE

Passando para o mundo real,  será que os prefeitos são tão caricatos? Para demonstrar que não é mera implicância minha a comparação, selecionei alguns eventos da trajetória de Nelson Marchezan Junior à frente da capital do Rio Grande do Sul e de João Dória em São Paulo.

Começamos pela maior metrópole da América Latina. Por lá, Dória elegeu-se com um discurso notoriamente apolítico, dizendo-se um  gestor, um empresário.

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Mas quer coisa mais populista do que fazer-se de gari, pintor ou cadeirante para chamar a atenção? (Acho que Odorico adoraria ter feito as mesmas coisas como prefeito. Que inspiração, hein?)

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Alguns meses depois, Dória colocou suas “garras” conservadoras de fora, quando assumiu uma postura higienista na capital paulistana ao resolver acabar com a Cracolândia. O resultado, longe de agradar especialistas no assunto, foi bem desastroso.

Aqui em Porto Alegre, Marchezan notabilizou-se pelo seu temperamento difícil e por postagens politicamente incorretas nas redes sociais, que trouxeram críticas e aversão à parte dos moradores da capital gaúcha.

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O que, na minha visão, mais aproxima Marchezan de Odorico Paraguaçu é a sua conduta antes e depois da campanha.

Prometeu muita coisa, cumpre, até agora, pouco

 

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O fato chamou a atenção da grande mídia, ao fazer comparações de promessas de campanha com o que realmente fez depois de eleito.

A dúvida que fica é se Dória e Marchezan cederão à pressão popular e da imprensa ou darão uma de Odorico Paraguaçu, criticando A Trombeta, o jornal de Sucupira. Ainda resta um tempo de mandato para os dois políticos darem-se conta de suas trajetórias nada exemplares.

PS 1: Para quem achou divertido comparar a situação política brasileira com O Bem-Amado, a ideia não é nova. Eis a Rádio Sucupira, da rádio CBN.

PS 2: Para quem gosta de comparar a política com músicas, me foi recomendada a letra da canção Voto em Branco, da grande banda Plebe Rude.

 

Voos Literários

Quais as razões por trás de um suicídio?

Flávia Cunha
25 de julho de 2017

“Olá, meninos e meninas. Quem fala aqui é Hannah Baker. Ao vivo e em estéreo. [..] Sem promessa de retorno. Sem bis. E, desta vez, sem atender aos pedidos da platéia. […] Espero que vocês estejam prontos, porque vou contar aqui a história da minha vida. Mais especificamente, por que ela chegou ao fim. E, se estiver escutando estas fitas, você é um dos motivos. […] Não vou dizer qual fita tem a ver com sua participação na história. Mas, não precisa ter medo. Se você recebeu essa caixinha bonitinha, seu nome vai aparecer…Eu prometo. Afinal, uma garota morta não mentiria. Espera aí! Isso está parecendo uma piada. Por que uma garota morta não mentiria? Resposta: porque ela não pode mais falar!”

Esse é um do trecho do livro 13 Reasons Why (traduzido no Brasil como Os 13 Porquês), do escritor Jay Asher. A série, baseada nessa obra, virou um grande sucesso no Netflix e recebeu elogios e críticas nas redes sociais. 

Na comparação do livro com a série, o que dá para dizer é que o personagem Clay é mais atrativo na obra literária do que a sua transposição para o seriado. No livro, não tem aquela bobagem dele demorar um tempão para ouvir as fitas gravadas por Hannah. Essa escolha do roteiro achei uma falha grave, porque desperta uma certa irritação em quem está assistindo. Porém, o seriado amplia os pontos de vista do livro, restritos a Clay e Hannah, o que considerei um ponto positivo. Esse texto traz uma análise bem detalhada dessa comparação.

Em relação ao debate suscitado a respeito do suicídio, houve defesas e críticas a 13 Reasons Why. A verdade é que o suicídio é um dos tabus da nossa sociedade. A Renata Colombo comentou nesse texto aqui do Vós como é difícil tratar do assunto no jornalismo. Recentemente, o tema voltou aos noticiários por conta da morte do vocalista do Linkin Park. Quando é uma celebridade, não tem como o jornalismo fingir que essa morte não existiu, como acontece com cidadãos comuns.

Acredito que pela questão da ética jornalística praticamente impedir essa abordagem, resta à ficção tratar desse tabu. Afinal, como fingir que as mortes por essa causa não existem, quando a Organização Mundial de Saúde já alertou que esse problema de saúde pública é responsável por uma morte a cada 40 segundos no mundo?

Na minha opinião, o único demérito de 13 Reasons Why é não focar no claro problema de depressão da protagonista da história. O livro e o seriado acabam sendo sobre quais as motivações da personagem para tirar a própria vida e, consequentemente, sobre as pessoas que seriam responsáveis pelo seu suicídio. A depressão não é pontuada como a verdadeira causa.

Ainda assim, acho que a abordagem do tema do suicídio é válida, ainda mais para um público adolescente, que passa pela instabilidade natural dessa fase da vida e que ainda pode enfrentar os tormentos do bullying, como Hannah.

Voos Literários

Corrupção, ditadura e censura

Flávia Cunha
18 de julho de 2017

Sempre que alguém defende a volta da ditadura militar no Brasil alegando que naquela época não havia corrupção, me dá um frio na espinha. Pela ignorância ou pelo oportunismo da afirmação. Hoje, sabe-se que censura à imprensa foi uma das formas de garantir essa imagem de integridade associada aos governos militares. Aos eventuais nostálgicos daquele período que estiverem me lendo, recomendo informarem-se com essa matéria do UOL e também com a visita ao site Memórias da Ditadura.

Para reflexão literária, Tambores Silenciosos, do gaúcho Josué Guimarães, é um alerta de como a censura é um verdadeiro abuso de poder por parte das autoridades. No romance, situado na cidadezinha fictícia de Lagoa Branca, o prefeito resolve impedir que os moradores tenham acesso a jornais e a ouvir rádio, para que sejam mais felizes. O enredo é situado em 1936, época que antecede a implantação do Estado Novo de Getúlio Vargas.

O trecho a seguir mostra o diálogo do professor Ulisses com seus alunos, após ameaças veladas do prefeito contra o educador:

“[…] eu sei, meus filho, eu sei disso, estou fazendo o possível, estive mais de uma vez com Coronel João Cândido e o homem me pareceu meio inconseqüente, ele tem um bom coração, mas a cabeça não deve estar regulando bem, meteu dentro dela algo estranho, chegou a me dizer que estava decidido a tornar a gente desta cidade feliz por bem ou por mal; eu disse a ele que por bem, eu entendia, mas que por mal eu nunca tinha visto ninguém fazer outra pessoa feliz; e sabem o que ele me respondeu? Que respeitava muito a minha pessoa, contava comigo para o êxito de seu trabalho na prefeitura, mas que eu ficasse no meu lugar, ensinando os meus meninos e que deixasse de lado o seu plano de tornar Lagoa Branca uma cidade feliz como não havia outra no mundo.”

Os personagens que resolvem não seguir os desmandos do prefeito, são presos e torturados. Na conclusão do romance, há um boicote à Semana da Pátria por parte dos estudantes, que começam uma protesto apoiado pelas crianças e idosos da cidade. O prefeito acaba deposto pela população e se suicida.

Na vida real, Josué Guimarães enfrentou muitos percalços e ameaças de censura para conseguir lançar esse livro, no fim da década de 1970, antes do fim do regime militar no país. A obra recebeu prêmios e é um brado pela liberdade de expressão do povo. Altamente recomendável na atual conjuntura sociopolítica brasileira.

Voos Literários

“Toma lá, da cá” (na política e na literatura)

Flávia Cunha
11 de julho de 2017

O que uma eleição fictícia na Academia Brasileira de Letras na década de 1940 tem a ver com o cenário político atual no Brasil? As tramóias de bastidores para conseguir obter resultados favoráveis.

O enredo do livro Farda, Fardão, Camisola de Dormir, de Jorge Amado, é uma crítica ao período do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Com a morte de um poeta libertário, abre-se a vaga na Academia. Forças conservadoras tentam alçar um coronel à vaga de Imortal. O trecho da obra revela as barganhas entre o militar em questão e um integrante do Judiciário para obter a vitória na eleição:

“Impossível candidato de maior prestígio, contando com o apoio das figuras mais poderosas do regime, com trânsito livre… Tão livre assim? Haverá quem queira discutir, torcer o nariz, argumentando com as posições políticas do candidato, mas nenhum irá além do resmungo, terminando todos por engolir a pílula e comparecer com o 29 voto. Eleição líquida e certa.

[…]

Ah! depois colher a merecida recompensa: a primeira vaga no Supremo Tribunal Federal, pois, como se sabe, uma mão lava a outra. Toma lá a Academia, coronel, dá cá o Supremo.

[…]

— Candidato único? Acha possível, querido amigo?”

Os elementos mostrados no diálogo ficcional criado por Jorge Amado podem ser comparados a diversos episódios recentes. Para ficar nos últimos acontecimentos, o que se pode dizer da troca de integrantes na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados para tentar garantir um resultado que favoreça Michel Temer?

Até o presidente da CCJ, Rodrigo Pacheco (PMDB), considerou a atitude questionável.

Aguardemos os próximos episódios da tragicomédia no Planalto Central. Sem deixar de lado o senso crítico, o jeito é rir. Para não chorar. De raiva.