A vida noturna muitas vezes serve de inspiração para artistas, entre eles escritores. O célebre livro póstumo de memórias de Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, é uma ode aos anos 1920 e mostra muitas festas regadas a jazz e bebidas, na mais pura e genuína boêmia.
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A epígrafe do livro é uma referência ao título original A moveable feast
“Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao tim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel.”
Ernest Hemingway
(Para um amigo, em 1950)
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No microcosmo da capital dos Pampas, um bairro já foi sinônimo de transgressão e boêmia. O Bom Fim e seus bares colocava nas mesmas mesas escritores, cineastas, músicos, universitários e bêbados profissionais. Um dos apaixonados pelo bairro é o jornalista Juremir Machado da Silva. Em determinado trecho da obra Antes do Túnel (Uma História Pessoal do Bom Fim), Juremir fala que a boêmia migra, que a mim remeteu à festa móvel do Hemingway:
“‘O Bom Fim está migrando’
‘O Bom Fim? Desde quando um bairro se mexe?’
‘Desde sempre. O Bom Fim é um bairro de migrantes.’
‘Então é um barco?’
‘Uma jangada. E está migrando para o centro’.
‘Vamos com ele’, eu avisei.
‘Estamos no mesmo barco’, ele sintetizou ironicamente.”
Após essa primeira migração da vida noturna do Bom Fim, houve muitos desentendimentos com os vizinhos, até o ciclo mais pulsante daquela época ser encerrado, a exemplo do que parece estar acontecendo nos dias atuais no bairro Cidade Baixa. A situação é muito semelhante: jovens invadem as ruas e permanecem ali madrugada adentro, incomodando quem não gosta desse comportamento.
A situação chegou ao extremo com a Brigada Militar jogando bombas de gás de lacrimogêneo para dispersar as pessoas que ocupavam a rua João Alfredo, conhecida por bares e casas noturnas. Recentemente, o Ministério Público pediu que esses estabelecimentos fechem no máximo até a meia-noite, mesmo durante os finais de semana.
O regramento dos horários também foi tentado no Bom Fim, no fim da década de 80, como relembra Juremir, citando um episódio de confronto com a polícia em que morreu um jovem de 21 anos:
“O vereador pedetista Isaac Ainhorn, de saudosa memória, homem gentil e valoroso, tornou-se o principal representante dos moradores do bairro na luta contra os ‘vândalos’ noturnos, nós. […] Depois da morte de Heny Eduardo, Ainhorn conseguiu aprovar e aplicar o que chamamos então de ‘toque de recolher’ ou de ‘estado de sítio’. Os bares foram novamente obrigados a fechar à meia-noite nos dias úteis e às 2 horas da manhã nos finais de semana. […] Era o começo do fim do Bom Fim boêmio das tribos modernas e pós-modernas, A decadência veio aos poucos.”
Ironicamente, no capítulo final, o jornalista comenta sobre a migração dos boêmios do Bom Fim para a Cidade Baixa:
“Aos poucos,o Bom Fim dionísico, feito uma jangada à deriva, num plágio involuntário de José Saramago, migrou para a Cidade Baixa. Bares começaram a pipocar do outro lado da João Pessoa. As novas tribos e os velhos boêmios puseram o pé na avenida e atravessaram o nosso Rubião, o parque, deixando as palmeiras para trás. Aquilo que o Bom Fim conseguiu ser ao final do século XX, efervescente, tumultuado, confuso, violento e intenso, cabe à Cidade Baixa repetir agora.”
Se a festa móvel de Hemingway e a jangada da boêmia descrita por Juremir forem mesmo eternas, em breve poderá haver nova migração em Porto Alegre. Para onde?
PS: Para quem achar que defendo a boêmia na Cidade Baixa e não entendo o lado dos moradores, que fique claro que sou proprietária de um imóvel no coração da Cidade Baixa. E adoro. Porque prefiro a cidade viva e pulsante do que o silêncio das regras e do toque de recolher.
