Voos Literários

2020: A nova geração perdida?

Flávia Cunha
7 de novembro de 2019
Estudantes e professores de institutos federais e universidades fazem manifestação na Avenida Presidente Vargas em protesto contra o bloqueio de verbas da educação.

“Vocês todos são uma geração perdida.” — GERTRUDE STEIN

A citação é de uma das epígrafes do livro O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway. A referência de Gertrude Stein, escritora e incentivadora de artistas em início de carreria, era à chamada lost generation. Jovens que lutaram na Primeira Guerra Mundial e voltaram para a casa sem emprego, em meio ao que depois depois se revelou uma imensa crise financeira – a chamada Grande Depressão. Essa geração perdida resolveu aproveitar a vida, bebendo, dançando e sendo inconsequentes, no que culminou nos loucos anos 20.

Quase 100 anos depois no Brasil, será que os jovens correm de alguma forma o risco de serem chamados de uma nova geração perdida? Também vivemos momentos de caos econômico e de poucas perspectivas, o que pode levar os jovens a tomar medidas nem sempre consideradas coerentes para outras faixas etárias. 

Mas o que adultos e idosos brasileiros do século 21 esperam dos mais jovens?

Um dos conflitos geracionais mais evidentes é a forma com que os jovens encaram o mercado de trabalho. “Não tem a mesma seriedade”, reclamam os acima de 60 anos que consideram o correto ficar no mesmo emprego a vida inteira. “Mas qual emprego?”, retrucarão os milhares de desempregados na faixa etária até 25 anos. “Então, vão estudar pra aumentar as chances de trabalhar”, responde a vovó que não entende que as universidades públicas estão sendo sucateadas e que as bolsas minguaram nos últimos anos nas instituições de ensino privadas.

Mas daí os jovens, ao perceberem tudo isso que está acontecendo, resolvem de vez em quando ir para as ruas e protestar por melhorias na educação, por exemplo. Para adultos e idosos de um país sem tradição de adesão da maioria da população à manifestações contra desigualdades sociais, os jovens querem é balbúrdia. “Tudo coisa de esquerdopata, não viram que tão falando de novo na tal Marielle?”, reclamam os cidadãos de bem acima dos 40, querendo mesmo que os jovens acomodem-se dentro do que lhes é oferecido (mesmo que seja pouco). 

Ou será que preferem a velha geração perdida de 1920, que tinha ojeriza à política e queria apenas se divertir? Não, também não serve, já que criticam parte dos jovens brasileiros que é alienada e canguru (mora com os pais depois dos 30 anos). Mas o que querem dos jovens brasileiros, afinal?  

Na falta de uma resposta e à espera de protestos consistentes contra o pacote de medidas econômicas proposto ao Congresso pelo ministro Paulo Guedes, encerro essa reflexão com a segunda epígrafe do livro O Sol Também se Levanta, de Hemingway, um dos expoentes da lost generation:

“Geração vai, e geração vem; mas a terra permanece para sempre… Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo… O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira e retorna aos seus circuitos… Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.” — ECLESIASTES

Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Voos Literários

O Velho e o Mar, uma inspiração para a resistência

Flávia Cunha
31 de outubro de 2017

Há duas semanas, escrevi esse texto fazendo algumas reflexões sobre a onda conservadora que resolveu usar o termo comunista como ofensa. Desde então, entre outros absurdos cometidos por aí, houve uma ameaça à aula sobre Revolução Russa em uma universidade do Rio de Janeiro.

A Revolução Russa completa 100 anos em 2017. Sendo assim, parece-me bastante natural seja analisada com certa deferência em cursos de história. O que chama atenção, no entanto, é a incoerência desse tipo de comportamento que prefere o silêncio ao debate. A pessoa  bradar contra a “ditadura comunista” que supostamente teria sido implantada pelo PT no Brasil mas fazer uso de truculência e exigência de silenciamento de assuntos que consideram contrários a seus interesses.

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Afinal, a falta de liberdade não é uma das críticas dessas mesmas pessoas ao regime implementado na ex-União Soviética e, até hoje, em Cuba?

É difícil de entender

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Mas voltemos ao xingamento que recebi, que motivou meu primeiro texto: um dos chavões do momento “Comunista, vai pra Cuba”. A verdade é que o mundo mudou muito desde 1959, quando ocorreu a Revolução Cubana, até os dias atuais, com o irmão de Fidel Castro no comando da ilha. Existem muitas controvérsias sobre se é bom ou ruim morar em Cuba.

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Porém, o que proponho agora é uma volta no tempo, antes de Fidel e Che Guevara tirarem do poder o ditador Fulgencio Batista, que tinha o apoio dos Estados Unidos

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Foi a partir de 1939 que o escritor norte-americano Ernest Hemingway escolheu Cuba como seu lar. Viveu lá por cerca de 20 anos. Os relatos são de que Hemingway gostava muito de morar naquele país e foi onde escreveu uma das suas obras mais famosas: O Velho e o Mar. Poderia ser simplória a narrativa do pescador Santiago, um idoso que fica 84 dias sem conseguir fisgar nada até entrar numa brava luta para conseguir chegar à costa com um enorme peixe.

Porém, o livro é uma grande metáfora da solidão e da velhice, no meu ponto de vista. Além de remeter à ideia de que nunca é tarde para sonhar e tentar alcançar nossos objetivos. Uma das minhas frases preferidas dessa grande obra é:

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“ – Mas o homem não foi feito para a derrota – disse em voz alta. – Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.”

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Acho que essa pode ser uma boa inspiração para os dias atuais. Sejamos como o velho Santiago, que não se deu por derrotado mesmo em meio a grandes adversidades.

Sobre Hemingway, é importante ressaltar que ele ganhou um Pulitzer e o Nobel de Literatura após a publicação de O Velho e o Mar, em uma época em que o autor já estava um pouco desacreditado pela crítica.

A respeito de Cuba, ainda resta dizer que ele viveu por lá até 1959. Com a Guerra Fria e o rompimento de relação com os Estados Unidos, precisou voltar para seu país de origem, onde suicidou-se alguns anos depois. Aqui tem uma matéria a respeito com detalhes interessantes sobre o assunto.

Agora, uma última provocação. Acho que Hemingway também não se importaria de ser mandado para Cuba pelos conservadores da atualidade. Ainda mais ele, que (dizem) simpatizou com a causa comunista na Guerra Civil da Espanha, na década de 1930.

Voos Literários

A boêmia, a arte e a vida real

Flávia Cunha
22 de agosto de 2017

A vida noturna muitas vezes serve de inspiração para artistas, entre eles escritores. O célebre livro póstumo de memórias de Ernest Hemingway, Paris é uma Festa, é uma ode aos anos 1920 e mostra muitas festas regadas a jazz e bebidas, na mais pura e genuína boêmia.

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A epígrafe do livro é uma referência ao título original A moveable feast

“Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao tim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel.”

Ernest Hemingway

(Para um amigo, em 1950)

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No microcosmo da capital dos Pampas, um bairro já foi sinônimo de transgressão e boêmia. O Bom Fim e seus bares colocava nas mesmas mesas escritores, cineastas, músicos, universitários e bêbados profissionais. Um dos apaixonados pelo bairro é o jornalista Juremir Machado da Silva. Em determinado trecho da obra Antes do Túnel (Uma História Pessoal do Bom Fim), Juremir fala que a boêmia migra, que a mim remeteu à festa móvel do Hemingway:

“‘O Bom Fim está migrando’

‘O Bom Fim? Desde quando um bairro se mexe?’

‘Desde sempre. O Bom Fim é um bairro de migrantes.’

‘Então é um barco?’

‘Uma jangada. E está migrando para o centro’.

‘Vamos com ele’, eu avisei.

‘Estamos no mesmo barco’, ele sintetizou ironicamente.”

Após essa primeira migração da vida noturna do Bom Fim, houve muitos desentendimentos com os vizinhos, até o ciclo mais pulsante daquela época ser encerrado, a exemplo do que parece estar acontecendo nos dias atuais no bairro Cidade Baixa. A situação é muito semelhante: jovens invadem as ruas e permanecem ali madrugada adentro, incomodando quem não gosta desse comportamento.

A situação chegou ao extremo com a Brigada Militar jogando bombas de gás de lacrimogêneo para dispersar as pessoas que ocupavam a rua João Alfredo, conhecida por bares e casas noturnas. Recentemente, o Ministério Público pediu que esses estabelecimentos fechem no máximo até a meia-noite, mesmo durante os finais de semana.

O regramento dos horários também foi tentado no Bom Fim, no fim da década de 80, como relembra Juremir, citando um episódio de confronto com a polícia em que morreu um jovem de 21 anos:

“O vereador pedetista Isaac Ainhorn, de saudosa memória, homem gentil e valoroso, tornou-se o principal representante dos moradores do bairro na luta contra os ‘vândalos’ noturnos, nós. […] Depois da morte de Heny Eduardo, Ainhorn conseguiu aprovar e aplicar o que chamamos então de ‘toque de recolher’ ou de ‘estado de sítio’. Os bares foram novamente obrigados a fechar à meia-noite nos dias úteis e às 2 horas da manhã nos finais de semana. […] Era o começo do fim do Bom Fim boêmio das tribos modernas e pós-modernas, A decadência veio aos poucos.”

Ironicamente, no capítulo final, o jornalista comenta sobre a migração dos boêmios do Bom Fim para a Cidade Baixa:

“Aos poucos,o Bom Fim dionísico, feito uma jangada à deriva, num plágio involuntário de José Saramago, migrou para a Cidade Baixa. Bares começaram a pipocar do outro lado da João Pessoa. As novas tribos e os velhos boêmios puseram o pé na avenida e atravessaram o nosso Rubião, o parque, deixando as palmeiras para trás. Aquilo que o Bom Fim conseguiu ser ao final do século XX, efervescente, tumultuado, confuso, violento e intenso, cabe à Cidade Baixa repetir agora.”

Se a festa móvel de Hemingway e a jangada da boêmia descrita por Juremir forem mesmo eternas, em breve poderá haver nova migração em Porto Alegre. Para onde?

PS: Para quem achar que defendo a boêmia na Cidade Baixa e não entendo o lado dos moradores, que fique claro que sou proprietária de um imóvel no coração da Cidade Baixa. E adoro. Porque prefiro a cidade viva e pulsante do que o silêncio das regras e do toque de recolher.