Geórgia Santos

O dia da mentira

Geórgia Santos
1 de abril de 2019

Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram. 

O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos. 

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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico

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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia.  Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.

 

Algumas mentiras da ditadura

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1. “A ditadura no Brasil foi branda”

Convencionou-se chamar a Ditadura Militar brasileira de “ditabranda” porque, segundo as pessoas que se apoiam nesse termo, foi um regime menos cruel e sanguinário que outras ditaduras latino-americanas, como as instituídas na Argentina e Chile, por exemplo. O termo foi utilizado, inclusive, em editorial do jornal Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009. 

Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura. 

O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas. 

OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.

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2. “A educação era melhor”

Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).

Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.

Também com relação ao ensino superior os números da democracia são superiores. Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. No mesmo período, o número de matrículas cresceu 4,75 vezes.

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3. “A saúde funcionava”

Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.

O saneamento básico, fundamental quando o assunto é saúde, também era um problema.  No início da década de 1980, o percentual de lares com acesso à agua potável não chegava a 60%, agora, esse número está perto de 100%. 

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4. “Não havia corrupção no Brasil”

É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.

O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.

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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”

João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.

O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.

Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango. 

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6. “A população queria a ditadura”

Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava. 

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7. “O Brasil cresceu”

É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre. 

Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.

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Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.

Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.

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8. “Só morreram vagabundos”

Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenas  durante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.

Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.  Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.


OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.

 

Foto de capa original: Arquivo / Estadão Conteúdo

Reportagens Especiais

Eugênio Bucci: “A imprensa serve para duvidar do poder”

Geórgia Santos
19 de novembro de 2018

No episódio 9 do podcast Bendita Sois Vós, a liberdade de imprensa esteve no centro do debate.  Somos livres? Qual a  função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia? Para contribuir com a reflexão, a jornalista Evelin Argenta conversou com o professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

A pergunta é ampla, mas importante para começar. Essas eleições foram marcadas por uma proliferação de fake news e o uso político disso. Tivemos grandes empresas de comunicação que formaram comitês de checagem, mas parecia que estávamos enxugando gelo. Jornalistas atacados, ameaçados, perseguidos, apurações contestadas. Como o jornalismo sai dessa eleição?

Eugênio Bucci – Eu acredito que sai um pouco machucado em função das intimidações, agressões, tivemos vários episódios de intolerância, de desgaste produzido pelas redes sociais, descrédito de jornalistas construído artificialmente e em campanhas quase industriais. Todo tipo de ameaça, de desqualificação, isso tudo é muito ruim e sem dúvida nenhuma machuca a instituição. E eu não estou juntando aí algo que precisamos levar em conta, que é o nível de agressão física contra jornalistas. Nós temos assassinatos de jornalistas no Brasil, que infelizmente dá destaque ao país nesse sentido.

Ao mesmo tempo, a gente sai dessa eleição com uma experiencia acumulada que é muito importante. Eu não sei se o trabalho das instituições e grupos que checaram os boatos para separar o que é falso do que é verdadeiro foi apenas um trabalho de enxugar gelo. Eu tenho a impressão de que, em grande medida, isso foi importante, nós temos que pensar como teria sido se não houvesse esforço das redações e dos jornalistas profissionais para desconstruir essas falsidades e fraudes produzidas industrialmente que tinham como objetivo confundir o eleitor e tirar proveito disso. Eu diria que a gente sai machucado, mas com um aprendizado.

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Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

Eugênio Bucci

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A gente não faz jornalismo para agradar ninguém, se estamos agradando, tem alguma coisa errada. Mas a impressão é que as pessoas começaram a ver o jornalista como oposição, como se houvesse uma espécie de partidarização do jornalista. O senhor concorda que saímos como oposição?

Eugênio Bucci – Eu não tenho essa impressão, a gente teria que ver depois em análises mais precisas e pesquisas, mas o jornalismo é fonte de contestação, especialmente em relação ao poder. Nós temos que nos acostumar como um dado da rotina. A imprensa serve para duvidar do poder, para contestar os discursos do poder, para pedir demonstrações e provas sobre aquilo que o poder afirma. Então a impressão de que o jornalismo é uma oposição é parcialmente verdadeira desde que não seja entendida como oposição partidária. O jornalismo é um contrapeso do poder, é um contrapeso no sentido de ser uma contestação, uma fonte que duvida, um polo de antagonização. E aí é nosso papel. Mas uma coisa que eu gostaria de pôr em destaque é que, nessas análises, talvez a gente misture o que é fake news com outros relatos igualmente fraudulentos, mas diferentes.

Temos aí no meio o discurso de ódio, que as vezes mobiliza uma informação falsa, mas outras vezes não. Ele existe simplesmente para difundir ódio, intolerância, vontade de eliminar um determinado agente político, um grupo de pessoas ou uma etnia. O outro componente que não é necessariamente fake news é o discurso ligado às teorias da conspiração, que se misturam ao discurso de ódio e um pouco às próprias fake news. É a ideia de que alguém armou uma grande estratégia para promover um determinado candidato ou para prejudicar outro. E então aparecem essas coisas como a informação de que a facada do Bolsonaro foi encenação e esse monte de baboseiras que a gente vê. Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

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Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa.

Eugênio Bucci

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Os brasileiros elegeram um presidente que desde o começo da campanha usou muito as redes sociais a seu favor e, depois do atentado, da facada que tomou, não conseguiu fazer campanha, participar de debates e ficou mais restrito ao ambiente virtual. Tanto que o primeiro pronunciamento logo depois de eleito, antes do discurso da televisão, foi pelo Facebook. Nessas primeiras semanas de transição, anúncios são feitos pelo Facebook, nomes de ministros confirmados pelo Twitter. A gente está inaugurando um modo Trump de Comunicação? O que nos espera nos próximos quatro anos?

Eugênio Bucci – Bom, isso nós temos que perguntar para o presidente eleito e para a turma dele, mas eles tem dito que vão usar essa comunicação direta. A expressão, aliás, poderia ser tema de uma longa conversa. O que é comunicação direta? Mas isso em si não é um problema, o problema é a tentativa de desqualificar a imprensa. Isso mostra uma tendência autoritária em muitos governantes de muitos países e isso desconstrói a democracia.  E eu não estou dizendo isso por uma defesa corporativista dos jornalistas ou da imprensa ou dos jornais, eu estou dizendo isso simplesmente porque a presença da imprensa, do repórter, do jornalista, do articulista, sempre joga na arena pública uma voz discordante. E isso ajuda, é essencial para o esclarecimento da opinião pública. Sem falar da reportagem, que faz perguntas incômodas. O repórter sempre é uma figura incômoda para o poder e os governantes. O repórter trabalha com determinado método que apura os fatos, esclarece os acontecimentos e promove um nível de informação que é indispensável para o seguimento da democracia. Se a imprensa é descartada e ofendida e desqualificada, o que se estabelece é uma linha direta, sem mediação e sem crítica, sem discordância, entre o poder que tem, sem trocadilho, um poder de fogo imenso e a sociedade. Então, aquele que governa, que pratica o ato de governar, é também aquele que pratica o ato de informar, e isso desequilibra a democracia. Numa linha simplificada, isso cria um vínculo direto entre o governante e o público e atropela as mediações e, na sequencia, as instituições, a observância das garantias e direitos fundamentais, e isso pode sim distorcer a democracia

Trump vive ofendendo NYT, CNN e os jornalistas e imprensa. É um paradoxo, mas ele acusa a imprensa de produzir fake news. Nós tivemos no Brasil, infelizmente, algumas manifestações do presidente eleito Jair Bolsonaro de ofender veículos. A Folha foi o mais recente, que ele chegou a dizer que não vai passar verbas públicas para compra de espaço publicitário na Folha. Isso mostra, de um lado, um descompromisso com relação ao principio da impessoalidade, ou seja, quando o governo faz compras públicas, como compra de espaço para veiculação de mensagens oficiais, ele não pode adotar critérios pessoais, ele precisa adotar criterioso impessoais, e por isso públicos, e por isso republicanos. E por outro lado, mostra uma disposição do presidente eleito de perseguir um determinado veículo jornalístico. Isso é muito ruim pra democracia. É, de fato, o que corrompe a ordem pública. Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa. Levando a população a desacreditar no trabalho da imprensa, e isso é muito ruim e nos deve deixar atentos.

Foto: Aberje

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #9 O jornalismo é livre?

Geórgia Santos
16 de novembro de 2018

Nesta semana, o Bendita Sois Vós discute a liberdade de imprensa e a função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia. Além da jornalista Geórgia Santos, participam o jornalista e professor Tércio Saccol e os jornalistas Igor Natusch e Marcelo Nepomuceno.

Evelin Argenta entrevista e professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da USP, sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

No Sobre Nós, dirigido por Raquel Grabauska, trazemos o mito da imparcialidade para o centro do debate nas palavras George Orwell, em Homenagem à Catalunha. 

O episódio também está disponível em Itunes e Spotify e Castbox.

Geórgia Santos

Festa da hipocrisia

Geórgia Santos
6 de outubro de 2018

Já até vejo os jornais falando da festa da democracia. Piada. Na melhor das hipóteses, neste 2018, temos uma bela de uma festa da hipocrisia. Em que um homem preconceituoso e despreparado passará ao segundo turno como o preferido dos cidadãos brasileiros. Um homem machista, homofóbico e xenófobo que passará como um homem tolerante e do povo. Um homem corrupto que passará como honesto. Um homem que está na política há 30 anos e passará como novo. Um homem que sempre fez mais do mesmo e passará como diferente. Um homem autoritário que passará como democrático.

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Agora me digam, se não é uma bela de uma festa da hipocrisia?

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E tudo a pretexto do medo subjetivo de um partido, o medo mentiroso e sem cabimento de o Brasil virar a Venezuela. Que preocupação com a corrupção é essa, se não se importa com o fato de ele usar auxílio moradia pra “comer gente”?

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Que preocupação com a corrupção é essa que desaparece na hora de votar no PP, o partido mais investigado na Lava Jato? Que preocupação com a corrupção é essa que desaparece na hora de votar em qualquer outro partido?

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Que sexo é esse que ensinam nas escolas que a maioria desses machões não sabe nem onde fica o clitóris?

Que doutrinação esquerdista é essa que produz uma geração de adoradores da Ditadura Militar?

Que doutrinação é essa, que as pessoas sequer sabem o que é socialismo ou foi quem foi Marx?

 Que “marxismo cultural” é esse, tão difundido, que criou uma geração que vai eleger um cara que insulta homossexuais, mulheres, negros e imigrantes? O tal do politicamente correto não está sufocando a todos, afinal de contas, nesse mundo chato?

Que defesa da família é essa, que vem do cara que não quis registrar o filho?

Que valores são esses, que vem do cara que quase bate a cara no poste pra olhar pra bunda de uma adolescente?

Que cristão é esse, que quer matar?

É uma bela de uma festa da hipocrisia, isso sim.

 

Igor Natusch

Jair Bolsonaro nos ameaça. Quem ele pensa que é?

Igor Natusch
30 de setembro de 2018
Mulheres protestam contra o presidenciável Jair Bolsonaro no centro do Rio

Jair Bolsonaro é um golpista e uma figura nefasta para o Brasil. Suas últimas falas (em especial esse absurdo inominável de só aceitar o resultado das urnas se ele for eleito) deixam claro que ele não deseja servir à democracia, mas sim sequestrá-la. Bolsonaro é a pura vulgaridade política, no sentido mais grotesco de preconceito, ódio e despreparo, mas nem é disso que estamos falando: o que pega, aqui, é a declaração clara de que deseja usar o processo democrático apenas como ponte – e se a ponte não servir, a democracia que se lasque.

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Seu desprezo pelas regras do jogo é um insulto a quem tenta construir uma democracia, ou ao menos algo perto disso, no Brasil. Nenhuma condenação é pouca para seus disparates. É dever de quem preza nossa ainda frágil tentativa de democracia enfrentar essa figura funesta e sua candidatura, deixando claro o engodo e o suicídio político que ela representa.

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Antes dessas falas, repudiar Bolsonaro ainda poderia, para alguns, parecer uma questão de preferência política. A partir delas, em especial, essa posição torna-se impossível sem uma dose considerável de desapego à realidade. Nada – muito mesmo o antipetismo, essa versão caricatural e fascista que o ódio aos pobres e/ou diferentes toma em nosso país – justifica jogar ao fogo o pouco de representatividade que temos, o muito de liberdade e coesão social que ainda precisamos construir. Há outros candidatos, há outras formas de combater o petismo, se isso é mesmo tão importante. Votar Bolsonaro, em termos de solução, equivale a incendiar o prédio porque não se consegue consertar um vazamento no terceiro andar.

Mas é ainda mais que isso.

Bolsonaro não é apenas uma ameaça conceitual: é concreta. Ele ameaça a nós todos. Sem disfarces. De modo arrogante – pois o que é dizer que “não pode falar pelos comandantes militares” caso Fernando Haddad vença, senão arrogância e disposição golpista? Ele diz que devemos nos ajoelhar não ao resultado das urnas, mas à vontade dele, Bolsonaro, e de mais ninguém. Isso é um insulto a todos nós – inclusive a seus eleitores, mesmo que esses não percebam. Me elejam, ou vou tocar o terror.

Quem Bolsonaro pensa que é, para falar com o Brasil inteiro desse jeito?

O fascismo é um ideário de morte. Celebrar a vida, e a liberdade de existir que é inerente ao viver, é um poderoso ato de resistência. E o Brasil, liderado pelas mulheres (nossa grande força transformadora, desde sempre e mais do que nunca), disse no último sábado que a morte se enfrenta vivendo, e que não vamos – nós, o que recusamos a ameaça personificada em Jair Bolsonaro – nos encolher em um canto, com medo da morte.

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O resultado das urnas ninguém sabe qual será. Pode ser inclusive a eleição de Jair Bolsonaro, por que não? Se a nação brasileira optar por jogar-se no abismo, assim será. Mas a liberdade não é algo que se entregue de mão beijada ao valentão que grita mais alto. Cabe enfrentar a ameaça,  lutar até o fim para vencê-la e tentar sair mais fortes disso tudo.

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Derrotar Bolsonaro nas urnas, é claro, não resolve problema algum. O Brasil seguirá cindido, talvez mais do que nunca, e as inúmeras angústias que alimentam esse flerte coletivo com a autodestruição seguirão existindo e exigindo respostas. Reconstruir as pontes incendiadas nos últimos anos será uma tarefa imensa, talvez até irrealizável. Mas nenhuma solução, por mais difícil e dolorosa que seja, poderá nascer do que esse cidadão diz, pensa e faz. Bolsonaro não é um candidato comum: é um opressor e oportunista que deseja, de forma tosca e às nossas custas, transformar-se em tirano.

Não existe neutralidade possível diante da infâmia. Que todas as vozes e bandeiras alinhadas com a busca da democracia sigam se erguendo e, juntas, derrotem essa figura vulgar de volta à irrelevância da qual jamais deveria ter saído.

Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #1 Que eleição é essa?

Geórgia Santos
24 de setembro de 2018

No primeiro episódio do Bendita Sois Vós, jornalistas  discutem “Que eleição é essa?” O programa é apresentado pela jornalista Geórgia Santos e conta com a participação de Evelin Argenta, Igor Natusch e Tércio Saccol em um debate sobre os aspectos atípicos das eleições, o fenômeno Bolsonaro e a ameaça autoritária. 

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Essa eleição é, de fato, estranha. Até pouco tempo tinha candidato preso, candidato esfaqueado, candidato jejuando no monte. Por isso separamos algumas declarações de candidatos à presidencia da República, ou relacionados a eles, que exemplificam um pouco da anormalidade do pleito de 2018. Além disso, uma conversa com o cientista político Augusto de Oliveira, professor da PUCRS,  sobre como e porquê surge o fenômeno Bolsonaro.

Falar de Bolsonaro implica discutir, ainda, viabilidade democrática. Afinal, o candidato ainda não afirmou que vai respeitar o resultado das eleições caso perca.  Sem contar as declarações do vice do candidato do PSL, General Hamilton Mourão, que deixou clara a possibilidade de autogolpe em entrevista à GloboNews.

Como uma resposta também ao General Mourão, o Bendita Sois Vós traz uma verdade crua revelada por meio da arte. O quadro “SOBRE NÓS” é produzido por Raquel Grabauska, que é atriz, produtora, diretora e está à frente do grupo Cuidado Que Mancha. Toda a semana, um grupo de atores traz relatos reais sobre temas que nos tiram o sono. Na primeira edição, depoimentos  de quem sofreu tortura durante a Ditadura Militar. O texto foi extraído dos relatórios da Comissão da Verdade e mostra a cara desse herói que mata.

* O Bendita Sois Vós, uma parceria do Vós com a Rádio Estação Web e vai ao ar todas quintas-feiras, das 19h às 20h. Clique aqui para saber como ouvir no seu celular e em aplicativos.

Igor Natusch

Sim, intervenção militar é absurdo – mas é preciso propor alguma coisa

Igor Natusch
28 de maio de 2018
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) determinou aos caminhoneiros que estão parados no acostamento da BR-040, em frente à Refinaria Duque de Caxias (Reduc), que retirem os caminhões.

Para quem preza a liberdade e o progresso social, as manifestações crescentes por intervenção militar são aterradoras. Não apenas ecoam horrores que o Brasil nunca resolveu de fato, mas também demonstram a fragilidade de nossa tentativa democrática e o risco de recuo em tudo que se conquistou, e a duras penas, nas últimas poucas décadas. A qualquer defensor de ideias progressistas e transformadoras cabe o repúdio enfático e intransigente a essa sandice, por menos provável que eventualmente seja, condenando e, se necessário, indo às ruas contra esse fantasma tóxico e grotesco que quer nos roubar a perspectiva de andar para a frente. Intervenção militar é o diabo, em suma. Imagino que estamos todos de acordo quanto a tudo isso.

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A questão é: o que estamos propondo como alternativa a essa tolice de intervenção militar?

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Não muita coisa, sou forçado a dizer. Diante da paralisação dos caminhoneiros – onde esse grito foi intenso, tanto na sinceridade de vários trabalhadores quanto no oportunismo de quem quer sequestrar o movimento para si – a esquerda mostrou incapaz de posicionar-se e agir. Passou o tempo todo tentando cravar uma leitura a respeito: chamou o movimento de locaute e, quando o acordo dos patrões com o governo foi ignorado pelos grevistas, passou a ver em tudo uma conspiração difusa em prol do cancelamento das eleições. Uma leitura, perdoem a franqueza, feita tal uma colcha de retalhos, juntando tecidos de diferentes origens e qualidades e, com eles, construindo uma mortalha de apreensão. Isso nas redes sociais, é claro – porque a esquerda organizada, os partidos políticos e sindicatos nem mesmo nesse patamar chegaram: ficaram boquiabertos, atônitos diante de um movimento de trabalhadores que não conhecem e sob o qual não têm qualquer influência.

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Uma leitura do momento é muito difícil, e é preciso reconhecer isso se temos qualquer pretensão de avançar. Ninguém sabe direito o que está acontecendo, simples assim. Mas, antes de morrer de medo da volta da ditadura, é importante tentar entender na boca de quem o bordão surge e, acima de tudo, o que essas pessoas querem dizer quando o repetem.

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Há desencanto. Há a revolta de quem conseguia viver bem antes, não consegue mais agora e não entende bem por que isso está acontecendo. Há um sentimento enorme de que os políticos, os sindicatos, as organizações e instituições fracassaram, todas, em manter o país nos eixos. Há a certeza de que estão sendo roubados, mesmo sem que saibam bem por quem e por quais meios. De que falta dinheiro para eles, que muito trabalham, e sobra para outros, que parecem fazer pouco ou nenhum esforço honesto para ter tanta coisa a seu favor. E agora, que tanta coisa aconteceu em tão pouco tempo, há a descoberta de um poder de pressão, que consegue atingir muita gente, mas que não se sabe bem como direcionar.

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Diante de problemas complexos, a tendência natural daqueles que não os compreendem a fundo é buscar respostas simples. No momento, só um grupo está oferecendo uma suposta resposta. Simples, definitiva, com a figura heroica que costuma seduzir um país tão chegado em salvadores. Intervenção militar.

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Não se trata, no caso, de ir aos que pedem a volta dos heróis fardados e convencê-los todos, na base da retórica, do disparate que estão pedindo. Mas, sim, de entender as angústias de grupos expressivos e dizer algo a respeito delas, ao invés de perder tempo precioso idealizando as próprias. Uma reforma tributária com taxação de heranças e grandes fortunas, para citar um único exemplo, pode perfeitamente ser colocada na pauta nacional neste momento, em que a tributação de combustíveis está nas discussões de tanta gente. Ou mesmo algo mais radical e transformador, que se proponha a rearranjar o jogo político-econômico e dar a ele outros contornos. Não como forma de convencer os pró-intervenção do que quer que seja, mas de evitar que os que despertam agora para o problema tenham apenas esse slogan tosco para se agarrar.

E mais: que fim levou o espírito transformador da ala progressista? Onde está o brilho nos olhos, a postura que enxerga oportunidades revolucionárias nos momentos de grande incerteza? Se só nos resta mesmo essa leitura amarga e auto-confirmatória, essa falta de disposição em disputar mentes, esse temor paralisante diante do que não está sob controle, então não resta quase nada. Esse fantasma doentio de intervenção militar terá, sim, chance de triunfar – pelo simples motivo de que não estaremos lá para ao menos tentar deter seu avanço. A mudança não surge onde falta o encanto, e não foi plantando amargura que se conquistou o pouco que temos e que estamos tão temerosos de perder.

Foto:  Vladimir Platonow / Agência Brasil 

Geórgia Santos

Coração bobo

Geórgia Santos
2 de abril de 2018

Meu coração tá batendo como quem diz: não tem jeito. Canta Alceu Valença e canto eu. Ele canta que o coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Canto eu que o coração dos aflitos encolhe dentro do corpo. Coração bobo. Encolhe a cada palavra de ódio, encolhe toda vez que alguém perde a razão, encolhe sempre que a empatia se apaga, encolhe quando o absurdo se torna a verdade de alguns.

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O coração dos aflitos pipoca dentro do peito

O coração dos aflitos encolhe cada vez mais

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É como se a gente não conseguisse fugir do destino de que já não há mais coração. A gente se ilude dizendo: já não há mais coração. Canta Alceu Valença e canto eu. Já não há. Não pode haver diante do absurdo que se torna a verdade de alguns. Ontem mesmo, o procurador da República Deltan Dallagnol escreveu no Twitter sobre o que ele chamou de “Dia D da luta contra a corrupção na Lava Jato.” Nada fora do comum. É prerrogativa de ofício e ele já havia se posicionado sobre o tema da prisão em segunda instância. “Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além.” A derrota seria a concessão do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhuma novidade. Inclusive concordo que o precedente é perigoso, embora considere que a prisão em segunda instância talvez seja o precedente uma vez analisado o texto da constituição. Mas ele continua: “O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país.”

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Um procurador da República discorre sobre uma questão jurídica e espera que ela se resolva não com a análise de legislação do Estado laico em que vive, mas com oração, com jejum, com torcida. O absurdo que se torna a verdade de alguns está normalizado. Já não há coração que aguente. Não pode haver.

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Pouco tempo depois, o juiz federal Marcelo Bretas respondeu: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso país e do nosso povo.” Assim, em alguns minutos, duas autoridades transformaram uma discussão jurídica absolutamente válida em uma disputa entre o bem e o mal. Por meio da narrativa, mistura-se religião ao judiciário – para além da questão do aborto. O absurdo que se torna a verdade de alguns é reforçado. Já não há coração inteiro. Não pode haver.

O colunista da Veja, Ricardo Noblat, solta o balão de ensaio e escreve que um “ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo.” Já não há coração. Não pode haver. Os amigos de Michel Temer são presos e a resposta do Planalto é que não passa de conspiração. Já não há coração. Não pode haver. Tiro, relho, racismo, hipocrisia. Já não há coração. Não pode haver.

A desesperança me toma e, como já não há mais coração, penso que talvez aquele de quem não falamos o nome deva mesmo ser o próximo presidente do Brasil. Quem sabe assim o fundo do poço não chegue mais depressa e mais depressa podemos sair de lá.

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Mas não. Esse papo de que já não há mais coração é uma ilusão

A gente se ilude

Canta Alceu Valença e canto eu

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A letra que sugere uma desilusão amorosa é uma homenagem ao Clube Náutico Capibaribe, que por anos demoliu o coração do torcedor pernambucano. Mesmo diante de derrotas, porém, os aflitos sempre voltam para casa. É assim comigo. A desesperança é só da boca pra fora, é só um desabafo de um coração cansado.

Eu continuo acreditando nas pessoas, continuo acreditando na democracia representativa, no Estado de bem-estar social, na liberdade de expressão, religião e associação, nos Direitos Humanos, na igualdade.

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Coração bobo, bobo, bobo, bobo, bola, bola, bola de balão

A gente se ilude dizendo: já não há mais coração

 

Imagem: Pixabay

Vós Ativa

A tradição de violência no estado mais politizado do Brasil

Colaborador Vós
29 de março de 2018
Porto Alegre - RS , 20/09/2010; Desfile Civico-Militar Farroupilha de 20 de setembro, na avenida Edivaldo Pereira Paiva(Beira-Rio), em Porto Alegre. Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Por Eduardo Amaral, jornalista

Cresceu nas últimas semanas o orgulho gaúcho pela truculência. Tudo porque um grupo de velhos coronéis resolveu demonstrar todo o respeito que tem pela democracia durante visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado. Confrontaram apoiadores com armas na cintura, apedrejaram ônibus e pessoas e “deram de relho” em quem se opusesse. A Caravana Lula pelo Sul seguiu e foi alvo de tiros no Paraná. O fato surpreendeu, mas não é tão distante da nossa realidade.

Detesto dizer a vocês, leitores, mas atirar contra adversários políticos é uma constante dos municípios gaúchos

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Tradição de violência

A primeira vez em que deparei com a truculência política foi em Trindade do Sul, município localizado no norte do RS. Ainda adolescente, resolvi fazer uma visita a uma amiga que acabara de se mudar para aquela bucólica e, aparentemente, pacata cidade. Era período eleitoral. Qual não foi minha surpresa ao saber que dois grupos distintos se reuniram no centro da cidade e o confronto acabou com um orgulhoso defensor de seu candidato disparando, sem nenhum pudor, contra os adversários políticos.

Outra oportunidade para ver como funciona a política no interior foi no pleito de 2016, quando eu atuava em um jornal no Vale do Taquari. No município de Encantado, quando correu a notícia de que um grupo de homens armados chegara à cidade fazendo questão de mostrar as armas para quem quisesse ou não vê-las. Todos eles se hospedaram no hotel que pertencia ao candidato a vice de uma das chapas. O grupo foi detido e, graças à falta de discrição, foi possível evitar que algo mais grave acontecesse. O que mais me surpreendeu neste caso foi a frase do promotor eleitoral quando entrei em contato com ele para esclarecer o caso. “Eu mesmo já fui ameaçado quando ia votar.”

Minha última experiência com a violência política foi no ano passado, quando trabalhava na cidade de Paraí, na Serra Gaúcha. Uma eleição suplementar foi convocada e não demorou para eu entender como as coisas funcionam no município quando o assunto é política. Logo nos primeiros relatos, soube que o filho de um dos candidatos havia sido ameaçado, com uma arma na boca. A nova eleição não acalmou os ânimos e não demorou muito para um novo atentado com armas. Os militantes que trabalhavam para os candidatos se encontraram no centro da cidade, na praça, no meio da tarde, e demonstraram toda a tolerância política entre eles com duas armas sendo sacadas e tiros atingindo os rivais.

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O estado mais politizado do país

Em nenhum desses casos houve morte. Em todos esses casos, porém, escutei relativização. Quase a normalização das ações criminosas no chamado “estado mais politizado do país.” A verdade é que o Rio Grande do Sul nunca foi tão politizado como se diz, mas sim um lugar repleto de animosidade e ódio, nem sempre escondidos. É justamente devido a este cenário coronelista que a reação à chegada do ex-presidente não surpreende, faz apenas lamentar que o RS não consiga abandonar velhos e péssimos costumes.

Envoltos na própria arrogância, os gaúchos passaram anos negando a realidade, sem conseguir olhar para si e admitir as artimanhas de poderosos para manter sua força política

Nós poderíamos aproveitar este momento para olhar para a sociedade gaúcha e perceber como este histórico modelo político tem nos levado ao atraso e tem grande influência nos problemas do estado. Mas isso não vai acontecer. Infelizmente, por tudo que se viu até agora, não será esta a chaga utilizada para expurgar velhas práticas, muito pelo contrário.

Até aqui vimos um Poder Judiciário que se calou diante dos atos de violência cometidos contra os manifestantes pró-Lula. O Ministério Público, tão afoito para fiscalizar torcidas organizadas (mesmo em outros países), parece achar natural que um grupo armado distribua “relhaços” naqueles dos quais discordam.

Os políticos intimamente vinculados ao agronegócio fizeram questão  de justificar e aplaudir as agressões. Inclusive o deputado federal Jeronimo Goergoen (PP), que tem se empenhado para votar e aprovar o projeto que torna as ações do MST e do MTST em terroristas. Semanas atrás, o parlamentar mostrou toda a indignação com o fato de os grupos bloquearem estradas e queimarem pneus, o que ele chama de “atitudes criminosas”. Curiosamente, o deputado parece ter mudado de ideia quando questionado sobre o comportamento dos contrários a Lula, que fizeram exatamente a mesma coisa durante a passagem do ex-presidente. De acordo com Goergen, o petista apenas recebeu o troco pelo que “provocou”. Postura semelhante teve a colega de partido de Goergen, a senador Ana Amélia Lemos, que em um evento interno do partido parabenizou os homens que “colocaram para correr” os defensores do petista.

Pelo visto, os dois mandaram às favas o respeito às instituições democráticas e ao debate civilizado, tudo para não desagradar seus potenciais eleitores

A postura cínica de políticos, seja de qual espectro for, não é nenhuma novidade, afinal, o cinismo e a política andam umbilicalmente ligados. Porém, espera-se sempre o mínimo de decência de quem está no poder, um pingo de respeito aos seres humanos que militam em lados opostos e, principalmente, pelo regime pelo qual foram eleitos. Entretanto, os “progressistas” preferiram imitar a irresponsabilidade de um pré-candidato à presidência, aquele que desrespeita a democracia elogiando torturadores do regime militar.

Enquanto isso, o Rio Grande do Sul se coloca na vanguarda do atraso e segue orgulhoso de façanhas nem um pouco nobres. Mais uma vez, as façanhas de nossa terra são um modelo apodrecido e lamentável, e podemos ver os políticos deste estado apoiando um período tenebroso que está por vir.

 

Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Igor Natusch

Um STF amigo do rei não é capaz de proteger a democracia

Igor Natusch
14 de março de 2018

Ninguém precisa simpatizar com o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para concordar com ele sobre o patético encontro da presidente do STF, Cármen Lúcia, com o presidente da República, Michel Temer. Segundo ele, o papo informal entre ambos, ocorrido no último final de semana, causa “perplexidade“. Está certo: é de deixar qualquer um perplexo, mesmo.

Claro que os nomes máximos do Executivo e do Judiciário podem (muitas vezes devem) se encontrar para discutir questões de interesse nacional. Mesmo que o presidente tenha contra si acusações graves e enfrente uma inédita quebra de sigilo bancário durante o mandato, ele ainda é o presidente e tem obrigações que exigem uma interlocução com o Supremo.

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O que não dá para engolir é que isso seja feito sem a liturgia que um encontro entre poderes exige – e que se mostra ainda mais indispensável em uma situação de incerteza profunda sobre os rumos da nação.

 

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Quem não gostaria de sentar na sala de estar da ministra Cármen Lúcia e discutir questões de seu interesse em um ambiente informal, talvez desfrutando de café recém-passado e bolinhos de chuva? Terão os advogados do ex-presidente Lula, que tanto pleiteiam uma definição sobre o cumprimento de penas em segunda instância, a perspectiva de uma acolhida tão calorosa? A Sepúlveda Pertence, integrante da defesa de Lula e igualmente interessado nos desdobramentos na alta corte, Cármen Lúcia dedicou a formalidade de um encontro de gabinete, ao final de uma manhã de meio de semana, sem salamaleques ou intimidades exageradas.

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Está totalmente correta, é claro. Errada esteve antes, ao aparecer sorridente ao lado de Michel Temer dentro da própria casa.

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Aliás, a insistência de Cármen Lúcia em não pautar a resolução sobre o imbróglio em torno do cumprimento de penas de segunda instância merece um parênteses. Finge firmeza, a ministra, ao dizer que não se dobra a pressões, que evita um comportamento casuístico. Não é igualmente casuístico deixar de discutir uma questão absolutamente central para a segurança jurídica do País, apenas para não causar a impressão de estar favorecendo uma figura pública? Não será preocupante (para não dizer catastrófico) deixar uma incerteza dessas pendendo sobre todos, manter um cenário onde ninguém sabe direito se o condenado em segunda instância ainda pode recorrer em liberdade ou não, apenas porque se quer bancar o jogo do sério com os defensores do pré-candidato?

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Não é firmeza: é teimosia, e talvez possa ser coisa pior. Coloca o Brasil em uma panela de pressão, de forma perigosa e potencialmente insustentável.

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Quando a presidente do STF recebe o mandatário da Nação em sua casa, fora do horário de expediente, para um dedo de prosa a portas fechadas, está passando um recado horroroso para os brasileiros. E está reforçando a leitura coletiva de que o Supremo é um clube de amigos, severo apenas com os que estão do lado de fora, caloroso e sorridente com os integrantes de seu círculo de poder. Ou alguém é ingênuo ao ponto de achar que a troca de ideias entre Cármen e Temer tratou somente da intervenção no Rio e da situação dos presídios, sem entrar no tema do inquérito sobre as propinas da Odebrecht, que envolve diretamente o presidente?

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Se os temas eram formais e republicanos, o que impedia a discussão durante o expediente? Ou será que a agenda da presidente do Supremo é cheia de coisas mais importantes do que conversar com o líder do Executivo, ou vice-versa?

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Uma alta corte que, de guardiã da Constituição, transformou-se em editora e reescritora da mesma, ao ponto de abrir margem para coisas juridicamente complicadíssimas, como achar que trânsito em julgado pode acontecer antes de todas as esferas recursais estarem esgotadas. Um STF que, ao invés de ser uma constância em tempos difíceis, transformou-se em ator da crise, em uma força que intensifica conflitos e amplia a sensação geral de incerteza e desalento. Uma casa que julga para um diferente do que julga para outro, ao ponto de submeter a própria Cármen Lúcia a um dos momentos mais vexatórios de sua carreira jurídica, que vai à imprensa antecipar juízos e opinar sobre questões em aberto sem constrangimento, que reveza a agilidade de um puma com a lerdeza de um caramujo dependendo de quem está na berlinda.

Quem poderá, diante de semelhante lista de problemas, dizer que o STF é confiável, que sobre os seus não paira dúvida, que é possível contar com ele para ser a rocha sólida em tempos de caótica fluidez? E que democracia poderá sobreviver quando não se confia naquela que deveria ser a voz serena, que se faz ouvir apenas quando tudo o mais fraqueja, que protege a lei maior como bem mais precioso? O que nos resta quando o STF não se constrange em aparecer como amigo do rei, colocando a estabilidade e a própria Justiça em risco?

Foi nesse cenário, e em nenhum outro, que Cármen Lúcia acenou sorridente ao lado de Michel Temer no fim de semana. Pelo jeito, até os ateus terão que pedir que Deus proteja o Brasil, porque essa tarefa o STF não dá pinta de que vá cumprir.

Foto: TV Globo/Reprodução