A vitória foi fantástica. A virada foi histórica. O Flamengo derrotou o River Plate por 2 x 1 , em Lima, conquistou a Copa Libertadores da América e mostrou uma garra que a gente só acreditava existir nos castelhanos. Mesmo que o Mister Jesus tenha trazido um algo mais do “além mar”, a conquista é muito mais brasileira do que postuguesa. E isso não é desmerecimento nenhum ao trabalho exemplar do treinador e sim um reconhecimento ao potencial que o futebol brasileiro tem e que nós não aceditamos mais.
Mesmo que o grupo flamenguista estivesse praticamente todo à disposição de Abel Braga, o time não encaixou. Jorge Jesus chegou no começo do Brasileiro sob forte desconfiança e ouviu muitas cornetas após a eliminação na Copa do Brasil para o Athletico.
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Mas os mesmos que esquentaram a frigideira para fritar o bacalhau, precisaram apagar o fogão à medida que o treinador conseguiu implantar o seu estilo, definir um padrão e emplacar vitórias que levaram o Flamengo a fechar o ano com os títulos da Libertadores e do Brasileirão na mesma semana
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Jesus atingiu um padrão de qualidade que há muito tempo não víamos num time brasileiro. Mesmo que Renato Portaluppi diga que o Flamengo só tenha atingido esse nível pelo investimento de mais de R$ 200 milhões, vale lembrar que outros clubes como Cruzeiro e, principalmente, o Palmeiras investiram pesado e nunca chegaram ao patamar do rubro-negro – cuja base está montada. Mesmo que a permanância de Gabigol ainda seja uma incógnita, nomes como Diego Alves, Rafinha, Filipe Luiz, Gérson, Éverton Ribeiro, Gérson, Arrascaeta e Bruno Henrique colocam uma qualidade que não enxergamos em outros times. E não se fala apenas em qualidade individual. Se fala em dedicação, entrega, inteligência e trabalho coletivo.
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A Libertadores mostrou que o Flamengo é, além do melhor time da América, obviamente, que ele também é o melhor do Brasil
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Uma superioridade que ficou evidente nos confrontos contra o Grêmio na semifinal. Mesmo que tanha restado alguma dúvida após o empate no primeiro jogo contra o tricolor na Arena, a goleada de 5 x 0 no Maracanã foi inconstestável e Renato Portaluppi precisou rever os seus conceitos.
O jogo contra o River Plate teve um Flamengo diferente. Marcelo Gallardo tirou o rubro-negro da sua zona de conforto e, mesmo com maior posse de bola, o jogo do Fla foi confuso e improdutivo. A objetividade só esteve presente a partir da entrada de Diego no lugar de Gérson. O time cresceu e o River cansou. Lucas Pratto perdeu a chance de liquidar o jogo e no final, Gabigol não perdoou. Empatou em cima da hora e virou quando os flamenguistas ainda agradeciam aos céus pela graça alcançada.
O Flamengo de Gabigol e Jorge Jesus chegou praticamente ao mesmo tamanho do Flamengo de Zico & Cia. Mas ainda falta o algo a mais. Que pode ser uma sequência de títulos tão grande quanto à conquistada nos anos de 1980 e 1990, ou simplesmente mais uma taça. Não uma qualquer. O que falta é o Mundial da Fifa. E a resposta pode vir já no próximo mês quando o rubro-negro, caso não ocorra nenhum tropeço, encarará o Liverpool de Klopp. Para muitos poderá ser a reafirmação do futebol brasileiro. E para outros, mais descrentes, um novo milagre de Jesus.
O governo brasileiro está determinado a descobrir a fórmula para a viagem no tempo. De acordo com algumas correntes da física, a viagem ao futuro é teoricamente possível – mas o governo Bolsonaro detesta a ciência com grande paixão, então a opção natural é seguir em sentido oposto. Aos invés de descobrir as maravilhas do futuro, o esforço é para reviver o passado – fazendo uso de métodos arcaicos e grosseiros, mas que até aqui se mostram bastante funcionais.
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É a viagem no tempo em marcha a ré
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A paixão pelo passado, como a gente sabe, é uma característica fundamental dos movimentos reacionários. Mas não é um passado qualquer, é claro: tem que ser um passado idealizado, onde só aconteceram as coisas que sejam do agrado, com o mínimo de nuances possível. Se for o caso, dá até para editar o passado, ou fazer uma espécie de peça teatral dele, mesmo que fique bem pouco parecido com o passado que de fato existiu. Antigamente é que era bom, dirão os viajantes do tempo em marcha ré – e, como nos filmes e livros de ficção científica, vão alterando o mundo do passado sem pensar nas consequências.
Para ser um bom viajante do tempo em marcha a ré, é fundamental ser uma figura lamentável no presente. Ajuda muito se você mentir qualificações acadêmicas que não tem, combater ameaças conspiratórias que não existem ou sentir um recalque imenso pela diversão que os outros talvez nem tenham de verdade, mas que você não consegue suportar nem imaginar que tenham. Do mesmo modo que o bom soldado de guerra é o que odeia o inimigo sem fazer a menor ideia do porquê, o bom viajante ao passado precisa ter raiva do presente – e, é claro, precisa morrer de medo de qualquer coisa que está por vir.
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Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil
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A viagem no tempo em marcha a ré é uma tarefa que se cumpre em duas esferas. Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil. A partir daí, é o esforço para vender o pacote ideológico básico: que o presente é nojento, podre e corrompido, e que o futuro ideal não é uma caminhada para frente, mas o resgate do passado tão lindo que os malvados destruíram com suas conspirações e libertinagens.
Parece absurdo, mas convence muita gente. Porque a angústia une as pessoas: todo mundo tem seus medos, suas incertezas, suas próprias carências e recalques. Quando se consegue direcionar toda essa frustração em um único feixe de energia, abre-se enfim o túnel para o passado: a vontade coletiva vira combustível, e o surto reacionário direciona nossa máquina do tempo rumo ao que está lá longe e, ao mesmo tempo, nunca existiu.
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O lado mais funcional desse método é que não há surpresas: a gente encontra lá atrás, no fim do túnel, exatamente o mundo que nossa imaginação inventou antes de partir
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No Brasil que os viajantes de marcha a ré querem a todo custo resgatar, o Império foi uma maravilha, a família imperial guiava a nação mais progressista do mundo, sorriam todos em um Brasil cosmopolita e pulsante de prosperidade. A Proclamação da República foi, nessa curiosa fibra do tempo, um erro que, quem sabe, ainda dá tempo de corrigir. Um Brasil onde racismo não existia – afinal de conta, ninguém falava em racismo, e o racismo só existe porque insistimos em falar nele, não é? Onde as mulheres eram felizes servindo aos maridos como donas do lar, onde a arte não falava de bandalheiras, onde os índios morriam em silêncio sem encher o saco. Onde a Terra inteira flutuava no espaço, perfeita em sua planitude sem curvas, com os astros celestes flutuando sobre o berço esplêndido tal móbiles em um quarto de bebê.
Se você olhar com cuidado, vai perceber que se trata de um passado horroroso: nele, a grande maioria das pessoas só existe para sofrer, ou nem isso. Mas não tem problema. Na revolucionária anti-ciência da viagem no tempo em marcha a ré, dá sempre para ir arrumando o passado pelo caminho, e qualquer coisa é só colocar a culpa nos malvados esquerdopatas de sempre.
O Marco Aurélio Souza é um amigo que eu fiz na vida e no futebol. Nos dois nascemos em Canoas. Nós dois frequentamos o colégio La Salle. Nós dois tivemos aulas com o professor Norberto Neselo que, por sinal, foi também professor dos nossos pais. Nós dois nos formamos em jornalismo. Nós dois trabalhamos na RBS por muitos anos. Eu acabei sendo desligado. E ele foi para Santa Catarina e, de lá, para a São Paulo onde trabalha na Globo e na Sportv. E, depois de muito tempo, resolvemos montar um curso de jornalismo esportivo. Eu cuidando da parte de rádio e, ele, da de TV.
Foi num 20 de setembro, ou melhor, num 21 de setembro, em meio a um feriadão aqui em Porto Alegre, que ministramos o curso no Vós, mas devido a compromissos posteriores – ele tinha uma festa de aniversário e eu, uma transmissão – não conseguimos nos reunir para fazer aquela resenha de avaliação. Isso ficou para o final de semana seguinte, quando ele voltaria a Porto Alegre para o jogo entre Inter e Palmeiras. Dias antes, ele avisou. “Reserva um dia pra gente. Vou tentar levar o Casagrande e o Cléber (Machado) junto.”
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E avisou:
“O Casa é muito engraçado. Vale a noite.”
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E por falar em engraçado, a tal noite já começou errada. A reserva feita antecipadamente numa parrilla da rua São Manoel, que fica em um bairro nobre da capital gaúcha, não foi confirmada. Quando cheguei, o Marco Aurélio, acompanhado do Casagrande e da repórter Gabriela Ribeiro, já estava buscando um Uber para ir para outro lugar. Ofereci meu modesto Kwid para o deslocamento. O problema é que o Casagrande, com aquele tamanhão todo, resolveu ir no banco de trás. Imagina o desconforto dele espremido e o meu com aqueles dois joelhos pressionando o banco do motorista.
Resolvemos ir ao Barranquinho, o irmão mais novo da churrascaria Barranco, uma das mais tradicionais de Porto Alegre. Lá não tem erro. E o Cléber Machado já conhecia a casa. Nos sentamos e o Marco fez o pedido. A Gabriela, que não come carne vermelha, preferiu um frango. Os demais escolheram as especialidades que a casa oferece. Entre elas, o matambre recheado. O matambre, geralmente, não é uma delícia. Mas o de lá é muito bem feito. É macio, bem temperado e um excelente aperitivo. O Casagrande ficou curioso com o prato. Perguntou o que era, como se faz, mas não experimentou. Preferiu as polentinhas e o frango da colega.
O Casão não encarou o matambre, mas sempre foi um cara corajoso […] por ter posicionamento e atitude. Por fugir da marcação que a alienação exerce sobre quase a totalidade dos jogadores do futebol.
Casagrande e a democracia corinthiana. Foto: reprodução
O Casão não encarou o matambre, mas sempre foi um cara corajoso. Não só por escancarar a sua situação de dependente químico e por ter conseguido dar a volta por cima. Mas, para mim, principalmente por ter posicionamento e atitude. Por fugir da marcação que a alienação exerce sobre quase a totalidade dos jogadores do futebol. Por carregar uma bandeira política e aproveitar o enorme carisma e a liderança do Doutor Sócrates para consolidar, lá nos anos 1980, a Democracia Corinthiana.
Nos anos 80, eu ainda era um adolescente “tarado” por futebol e que começava a despertar para a vida política. Estava ainda no que se chamava “segundo grau” do colégio La Salle. Acompanhava o enfraquecimento do governo militar, os chiliques do General Newton Cruz batendo com um bastão nos capôs dos automóveis dos manifestantes em Brasília, as voltas de Brizola e Gabeira, o fim do exílio e a chamada abertura lenta e gradual. Após o golpe miliar, a democracia começava a ser reestabelecida e a ideia de eleições diretas começava a crescer até tomar as ruas como o movimento das “Diretas Já”.
O futebol sempre foi um mundo à parte. Jogador de futebol tem comportamento de diva. Não se envolve em nada. Tudo fica para ser resolvido pelos dirigentes e assessores. Mas no Corinthians entre 1982 e 1984, a situação era diferente.
A Democracia Corinthiana
A inteligência de Sócrates, considerado pelo jornal inglês The Guardian um dos seis atletas mais inteligentes da história, a militância de Wladimir e a rebeldia do jovem Casagrande casaram perfeitamente e formaram o núcleo do movimento batizado pelo publicitátrio Washington Olivetto, vice-presidente de marketing do clube na época, como Democracia Corinthiana.
Com o aval e participação do jovem vice-presidente de futebol, o sociólogo Adílson Monteiro Alves, e com permissão do técnico Mário Travaglini, o movimento cresceu e tomou conta do clube. Envolveu outros nomes como Eduardo Amorim e o uruguaio Daniel González e mexeu com a estrutura do futebol brasileiro. Dirigentes, imprensa, jogadores dos outros clubes e boa parte do público não via aquilo com bons olhos. Para um país acostumado com a censura e a ditadura militar, era pura transgressão. Até poderia ser, mas era também um ensaio para o novo Brasil que muitos e muitos sonhavam.
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Era um exemplo de autogestão que propunha mais liberdade e maior participação nas decisões administrativas do clube
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A temporada de 1981 do Corinthians havia sido terrível. O time terminou em vigésimo-sexto no Brasileiro e em oitavo no Paulista. E como os estaduais serviam como ranking para as vagas do Brasileirão do ano seguinte, o time acabou tendo que disputar a Série B. Mas com a chegada de Casagrande e o fortalecimento da “Democracia Corinthiana”, o ano seguinte foi de muito sucesso. O time chegou às semifinais do Brasileiro e ao título do Paulistão. Sócrates e Casagrande tornaram-se uma dupla dentro e fora de campo.
Casagrande falou de toda sua admiração por Sócrates, que era um exemplo, um ídolo e um amigo. Essa harmonia só foi quebrada quando a direção do clube, em 1983, resolveu trazer o goleiro Emerson Leão. A contratação foi colocada em votação. Sócrates, ao lado da maioria, aprovou o reforço. Casagrande, que preferia apostar no até então titular Solito, disse não e acabou sendo voto vencido.
Entre uma polentinha e outra, Casão contou o episódio das chuteiras brancas. Uma moda que o jovem centroavante introduziu no futebol brasileiro habituado a ver somente chuteiras pretas. Aliás, não foi Casagrande quem descobriu aquele material. Na verdade, foi trazido por Daniel González, que ganhou de presente de um amigo durante as férias nos Estados Unidos. Era uma chuteria desenvolvida para gramados sintéticos. Tinha travas baixas, mas nada que atrapalhasse o rendimento do atacante corinthiano nos gramados naturais.
Logo na chegada, Leão e Casagrande se encontraram e o goleiro disse:
– Moleque, deixa eu ver essas chuteiras.
Leão com uma cara debochada analisoua novidade e concluiu:
– Bacana esse material. Quero ver se ela sabe fazer gol.
Casagrande recolheu as chuteiras e pediu para ver as luvas de Leão e deu o troco.
– Muito boas. Quero ver se elas sabem defender.
Com essas personalidades antagônicas, os dois conviveram apenas um temporada no clube. E apesar de discordar da maneira como as coisas eram decididas, Leão foi extremamente competente e decisivo na conquista do título estadual de 1983. Principalmente nas semifinais contra o Palmeiras, quando, por acaso, alguém do grupo descobriu que o goleiro já estava acertado para jogar no rival no ano seguinte. Casagrande, que fazia uma patrulha constante, chamou Sócrates e os outros líderes do grupo para colocar Leão contra a parede. Afinal, que história é essa?
Leão confirmou que estava acertado com o Palmeiras. Casão, não exatamente com essas palavras, fez uma cobrança dura: ou você defende tudo, ou a gente vai tirar o teu couro. Com duas grandes atuações do goleiro, o Corinthians empatou o primeiro jogo em 1 x 1 e venceu o segundo por 1x 0, passando para a final contra o São Paulo.
Para Leão, a hierarquia no futebol tem o presidente, o técnico e a torcida como o mais importante. Desdenhando da maneira como as coisas eram decididas no Parque São Jorge, o goleiro dizia que a “Democracia Corinthiana” era uma “democracia de três”. Ou seja, tudo era decidido para que Sócrates, Casagrande e Waldimir se sentissem à vontade.
Essa postura convencional e personalista de Leão serviu de contra-ponto ao movimento e também para dar apoio àqueles que não faziam muita questão de participar da “Democracia”. Zenon, outra estrela daquele time, foi um dos jogadores que tinha uma sintonia muito maior com a postura do goleiro. E durante a passagem de Emerson Leão, a “Democracia Corinthiana” teve uma certa oposição interna.
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Mas esse mesmo Leão, mostrou uma outra face que surpreendeu Casagrande. Em 2005, quando o atacante vivia uma crise gerada pela dependência quimica e precisou de internação, o ex-goleiro foi o único colega a visitá-lo.
– Ela ia ao hospital quase todos os dias. E quando não aparecia, mandava recado e perguntava como eu estava – recorda Casagrande
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Leão, nesse momento complicado, foi parceiro. Uma parceria que Casagrande viveu quase sempre com Sócrates. Com o Doutor, Casão engrossou o coro pelas “Diretas Já”, movimento que tomou conta das ruas e cidades do Brasil. Entre 1983 e 1984 foram 32 mega-comícios nas grandes cidades do país. Ao lado dos principais políticos da oposição, como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Lula, Mário Covas e Leonel Brizola, a dupla corinthiana reforçava o palanque que tinha Osmar Santos como locutor oficial e a presença de um time de artistas de peso como Chico Buarque, Beth Carvalho, Martinho da Vila e Mário Lago.
A voz das ruas foi transformada numa emenda encaminhada pelo deputado federal mato-grossense Dante de Oliveira. O texto que decidiria a volta das eleições diretas para presidente de república foi para votação na Câmara no dia 25 de abril de 1984. Apesar de toda mobilização popular, não passou. E o governo fez de tudo para garantir que a Emenda Dante Oliveira não fosse aprovada. Alegando uma pane no sistema de abastecimento, a energia foi cortada, o Congresso foi cercado por tropas armadas e os deputados governistas esvaziaram a sessão.
Valorizadíssimo pela participação na Copa do Mundo de 1982 na Espanha, Sócrates estava de saída do Corinthians. Mas, ainda numa última tentativa de mobilizar a torcida e o público, ele condicionou a sua permanência à volta das eleições diretas. Como a emenda foi rejeitada, ele seguiu o seu destino e transferiu-se em 1984 para defender a Fiorentina, na Itália. Sem Sócrates, a “Democracia Corinthiana” deixou de existir. Ainda mais após a saída de Casagrande que, em 1986, também se transferiu para a Europa.
O Marco Aurélio tinha razão. A noite valeu a pena. Para ser completa, só faltou o Casagrande experimentar o matambre recheado.
Faz tempo que tenho o hábito de ter comida no carro para quem pede na rua. Nos últimos meses, aumentou muito o número de pedintes. Tenho explicado para os meus filhos o que acontece no mundo. Explicado sobre a desigualdade. Explicado que não julguem. Explicado o impacto de não nascer “no lugar certo”, “na hora certa”.
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Esses dias, eu estava no carro com meu filho de cinco anos. Ele, com a lancheira na mão, disse:
“Mamãe, se a gente encontrar um morador de rua, vou dar meu lanche.”
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Eu quase tive um troço. Achei lindo. Ao mesmo, fiquei triste. Fiquei triste por perceber que ele, com cinco anos, entende tanto desse assunto. E seguiu.
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“Mamãe, ufa que nós temos casa, né?”
“Ufa, filho!”
“Mamãe, porque os moradores de rua não pedem pros trabalheiras fazerem casa pra eles?”
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O que responder depois disso? A lógica dele é perfeita. As pessoas precisam de casa e comida. Me comoveu a sensibilidade desse menino. Quero poder votar em algum político que tenha essa visão de mundo.
Foi forte o sextou do último dia 8 de novembro. Dá para dizer, inclusive, que foi o mais longo sextou de 2019: começou ainda na quinta-feira, com a decisão sobre a prisão em segunda instância no STF, e estendeu-se pelo menos até o domingo, quando os informes do golpe na Bolívia surgiram para azedar novamente nosso noticiário. Um momento que, é claro, teve na concretização do Lula Livre seu momento de maior euforia.
A noite da sexta-feira passada foi, para boa parte desse povo que tentamos resumir com o termo “esquerda”, um gigantesco desafogo. Festiva, alcoólica, eufórica, transante. Esperançosa, acima de tudo. Diante de tantas tristezas e decepções com a política, a chance de um momento como esse foi a senha para a celebração – uma alegria represada que libertou-se, ao menos temporariamente, dos muros cada vez mais sólidos de uma amargura generalizada.
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Porque é isso, não é?
Está faltando alegria e sobrando amargura no Brasil
E isso está nos envenenando
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Corta para a morte estúpida e deprimente da engenheira agrônoma Júlia Barbosa de Souza, 28 anos, que levou um tiro na cabeça dentro do carro em Sorriso (MT) no último sábado. Seu assassino, Jackson Furlan, não estava cometendo um assalto ou algo assim: simplesmente se irritou porque achou que o carro onde Júlia estava com o namorado estava lento demais. Resolveu o problema iniciando uma perseguição e, finalmente, metendo bala em desconhecidos, que sequer moravam na cidade.
A caminhonete dirigida por Jackson trazia um adesivo a favor da reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Em suas redes sociais, postagens favoráveis ao agora presidente eram fáceis de encontrar. E isso é, sim, significativo.
Jair Bolsonaro não é, ao menos até onde se sabe, um assassino. Não foi ele quem apertou o gatilho que fulminou Júlia. Mas ele é um dos responsáveis por criar o cenário aterrador onde crimes horríveis e sem sentido como esse se tornam muito mais possíveis.
Estamos mergulhados em uma política do ressentimento. O ódio aos petistas/esquerdistas não é inédito, mas foi instrumentalizado de forma a tornar-se uma poderosa (e eficiente) arma política, capaz de eleger presidente uma figura abjeta como Bolsonaro. O problema é que esse sentimento ruim transbordou. Contaminou relações familiares, amizades, convivências do dia a dia. Transformou nossos dias em confronto. Deixou todo mundo infeliz.
O rancor gera votos, mas também multiplica a angústia. É uma batalha permanente contra o inimigo, gigantesco e ao mesmo tempo quase invisível, que se esconde em todos os cantos, em todas as pessoas. Nesse cenário de infelicidade coletiva, toda divergência é drástica, toda vitória é cruel, todo rompimento é brutal e definitivo. Qualquer frustração pode ser a gota d’água, e qualquer engarrafamento pode ser um motivo para matar.
Para os que odeiam Lula e tudo que ele representa, sua soltura foi a senha para uma noite de amargura. Para quem o apoia e sofreu com sua prisão, porém, foi a largada para um fim de semana de euforia. E me desculpem a franqueza, mas não é por acaso que Lula aparece em público abraçando os netos, beijando a namorada, citando longas listas de gratidão. Não é por ele ser um santo, um anjo que lança gotas de bondade sobre os meros mortais: é por entender, até de forma intuitiva, que era por isso que seu público ansiava. Que todos queriam, no fundo, um motivo para sorrir.
Muito se falou no discurso pesado de Lula contra os opositores, e ele de fato se fez presente. Mas acho mais importante pensar sobre a alegria intensa e genuína que sua soltura causou – uma alegria de grupo, dos seus para os seus. Se o ressentimento virou o fiador de um governo de trevas, talvez seja preciso alegrar-se mais, sextar mais, insistir no brilho no olho contra todas as desgraças que se empilham para apagá-lo. Não pelo bem do político da vez, mas pelo nosso próprio.
“O Brasil já sofreu demasiado como o governo atual. Agora, Basta!”. O texto é do editorial do jornal Correio da Manhã no dia31 de março de 1964, às vésperas do Golpe Militar no país. O jornalista Juremir Machado da Silva lembra, no livro 1964, Golpe midiático-civil-militar, que parte da grande imprensa construiria, no período, a narrativa de que a ação dos militares era um “mal necessário para salvar a democracia do comunismo”. O Jornal do Brasil ia tão longe quanto dizer que, com o Exército, havia sido instalada a “verdadeira legalidade”.
“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada.”
Jornal do Brasil, 1ª de abril de 1964
Essa narrativa foi retomada no Brasil com a ascensão de Jair Bolsonaro (PSL) ao poder e parece estar sendo reconstruída em toda a América Latina. Em nome do “bem maior”, em nome do combate ao comunismo, mais de 50 anos depois da onda de desdemocratização que varreu o continente ainda há quem diga que o golpe na Bolívia não foi golpe. Foi um movimento para salvar o país da tirania de Evo Morales.
Desde que Evo Morales venceu as eleições, inúmeras mobilizações foram registradas na Bolívia. Da oposição, que não reconheceu o resultado como legítimo; e de apoiadores que, a pedido de Morales, fossem às ruas para impedir “um golpe de estado.”
A oposição, que já havia se manifestado contra a decisão do Tribunal, contestou o resultado e solicitou uma auditoria internacional. Assim, entrou em campo a Organização dos Estados Americanos (OEA). A investigação da OEA indicou que houve fraude na eleição e a organização sugeriu novo pleito. “A equipe não pôde validar o resultado da presente eleição, e recomenda um outro processo eleitoral. Qualquer futuro processo deverá contar com novas autoridades eleitorais para poder levar a cabo eleições confiáveis”, atesta o relatório.
A resposta de Evo Morales à auditoria da OEA foi ponderada. O então presidente boliviano acatou a recomendação, chamou novas eleições e ainda propôs a mudança de todos os membros do tribunal eleitoral. Só estava pendente a sua própria participação no novo pleito . De todo modo, a oposição não esperou.
Além dos protestos que já tomavam as ruas das principais cidades da Bolívia, os familiares de Evo Morales e os parentes de outros membros do governo passaram a ser ameaçados – ele inclusive disse que a casa de sua irmã foi incendiada – e um grupo de policiais contrários ao governo organizou um motim. Os chefes das Forças Armadas e da Polícia, além da oposição, pediram, então, que Morales deixasse o cargo para “pacificar” o país. E ele assim o fez, após 13 anos no poder.
“Por que tomei essa decisão? Para que Mesa e Camacho não sigam perseguindo meus irmãos dirigentes sindicais. Para que Mesa e Camacho não sigam queimando a casa dos governadores de Oruro e Chuquisaca”, disse Evo Morales.
Carlos Mesa foi o segundo colocado nas eleições bolivianas e um dos principais opositores do governo. “À Bolívia, ao seu povo, aos jovens, às mulheres, ao heroísmo da resistência pacífica. Nunca me esquecerei este dia único. O fim da tirania. Agradecido como boliviano por essa lição. Viva a Bolívia!”, disse. Já Luis Fernando Camacho é o líder do movimento cívico que derrubou Evo Morales, conhecido por ser um católico fundamentalista de extrema-direita. Membro da elite boliviana, Camacho conseguiu entrar no antigo Palácio do Governo, em La Paz, e depositou uma Bíblia em cima da bandeira da Bolívia alguns minutos antes do anúncio da renúncia.
FOI GOLPE?
A narrativa em disputa – tanto na política institucional quanto nas redes sociais – é se o movimento que culminou com a renúncia de Evo Morales foi ou não foi golpe. Quem defende que não foi golpe, entende o movimento como necessário para conter os avanços antidemocráticos do então presidente. E é justamente aí que começa o problema.
O fato de o governo de Morales ter enfraquecido as instituições democráticas ou estar sob suspeição não muda o fato de que ele ainda era o presidente de fato e de direito. Não muda o fato de que ele sofreu um golpe de Estado. Um dos autores do livro Como as Democracias Morrem, Steven Levitsky, em entrevista ao jornal O Globo, disse que Evo Morales errou ao tentar quarto mandato, mas que o movimento da oposição foi, sim, um golpe. “Porque o comandante das Forças Armadas sugeriu a saída do presidente. Mas temos de ver se será um golpe que fortalecerá a democracia ou a enfraquecerá”, disse.
Eu, particularmente, não vejo qualquer golpe como ferramenta adequada para o fortalecimento da democracia. E esse, de fato, não parece ser o golpe que mudará minha opinião. A segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, autoproclamou-se presidenta da Bolívia após as renúncias de cinco autoridades declarando que a Bíblia deveria voltar a entrar no Palácio. Logo após assumir o cargo e concordar em convocar novas eleições, atacou a esquerda: “Assim são os socialistas: usam mecanismos democráticos e se aferram ao poder, e depois enganam a gente, cooptam instituições, acaba a institucionalidade democrática”.
Não podemos naturalizar narrativas que justifiquem golpes de Estado. Afinal de contas, o discurso é sempre o mesmo. Os golpistas sempre tem as melhores intenções no coração. É para um bem maior, dizem.
A falácia dos extremos e a normalização do absurdo
Igor Natusch
26 de setembro de 2019
Tenho certeza que a maioria de vocês já teve contato com a manifestação asquerosa do comunicador Gustavo Negreiros, então um dos profissionais da rádio 96 FM, do Rio Grande do Norte. Mais um dos muitos homens brancos adultos incomodados com a postura enfática e sem pedidos de desculpa da ativista Greta Thunberg, dedicou-se o jornalista a vomitar infâmias, no ar, contra a sueca – entre elas, dizer que faltava vida sexual a uma adolescente de 16 anos, diagnosticada com síndrome de Asperger.
Alertado por uma participante do programa de que estava se referindo a uma menor de idade, o cidadão não apenas reforçou as barbaridades, como desceu ainda mais o nível, dizendo que Greta deveria limitar-se a ficar fumando maconha em seu país natal. Felizmente, a reação ocorreu: a emissora perdeu patrocínios importantes, Negreiros foi demitido da 96 FM e deve enfrentar ainda alguns (justos) percalços em sua vida profissional.
Mas a fala odiosa do radialista nem foi a coisa mais preocupante, sabe. Referir-se desta forma a uma jovem é evidentemente horrendo, repugnante, vulgar, desolador – mas, infelizmente, não é novidade que muitos pensem de forma igualmente suja sobre mulheres, de qualquer idade, que ousem manifestar o que pensam na esfera pública.
O mais preocupante, para mim, está na voz contemporizadora de algum outro participante do programa, que não consegui identificar.
Diante das tentativas da participante de colocar um freio no chorume verbal de Negreiros, essa pessoa achou que era momento não de dar fim ao espetáculo abjeto, mas de aplicar panos quentes. “Não precisamos levar para os extremos“, disse a voz, ignorada pela metralhadora de lixo do apresentador.
Extremos? Só existe um extremo nessa fala: o extremo de ódio, ignorância, misoginia e pensamento depravado contra uma jovem menor de idade, proferido por um profissional de mídia no microfone de uma importante emissora de rádio local. E esse extremo precisa ser combatido assim que surge, de forma enfática e sem conciliação, exatamente como a mulher presente ao programa se esforçou, sem qualquer auxílio, para fazer.
É possível enxergar, em situações como essa, uma vitória discursiva do reacionarismo moderno: o bom senso e a revolta diante do absurdo viraram coisas “extremadas”.
Se você contesta, por exemplo, o extremo de uma política genocida como a do governador do RJ, Wilson Witzel, você está indo pro “outro extremo”. Se você pede que os detentos nas degradadas penitenciárias brasileiras sejam tratados com o mínimo de dignidade, você é visto quase como um radical, tão “extremado” quanto os que sugerem que ladrões de celular sejam trucidados no meio da rua. Se você diz que Jair Bolsonaro é, na leitura mais generosa possível, um completo despreparado para ser sequer síndico de prédio, que dirá presidente do Brasil, o super-trunfo do “e o Lula? E a Dilma?” virá não apenas do perfil com foto de ovo no Twitter, mas do âncora do telejornal e do colunista de política.
Claro que isso tudo é uma consequência direta da legitimação do grotesco como argumento, do delírio como temática, da infâmia como linha ideológica autorizada a tomar lugar na mesa de debate.
Como permitiu-se que a podridão tivesse voz ao microfone, passa a ser necessário disfarçar de alguma forma o absurdo que é sua presença, como se fingir que a besta não é uma besta fizesse dela menos ameaçadora. E a consequência é tratar o razoável como se extremado também fosse, para construir uma simetria capaz de criar, mesmo que de forma precária, uma ilusão de equilíbrio.
Mas não: contestar um escroto que diz que a revolta de uma adolescente é falta de sexo não é extremado. Trata-se, isso sim, de uma atitude obrigatória para qualquer adulto razoável na sala. E o mesmo cabe quando somos expostos a governadores que acham que “atirar na cabecinha” é política de segurança pública, ministros e candidatos a embaixador que reproduzem infâmias contra líderes políticos estrangeiros, presidentes que publicam vídeos com golden shower e atacam desafetos tripudiando sobre a morte de seus pais.
Em casos assim, não existem “extremos”: existe o absurdo e a necessidade de enfrentá-lo.
Em um mundo onde revoltar-se diante do monstruoso é ser “extremo”, qual será a linha do meio? Ofender só de leve, ser apenas um pouquinho mentiroso, matar só uma ou duas pessoas por semana?
Normalizar o intolerável é perigosíssimo. E impedir que isso ocorra passa por contestar também a ponderação forçada dos que não querem se incomodar.
O namoro entre Bolsonaro e Lava-Jato acabou – e a separação será litigiosa
Igor Natusch
19 de setembro de 2019
Presidente da República, Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro durante a final da Copa América 2019, entre as seleções do Brasil e Peru.
Houve um tempo em que o bolsonarismo e a luta contra a corrupção andavam de mãos dadas – mesmo que, mais recentemente, fosse apenas para manter as aparências. Esses dias, contudo, estão cada vez mais distantes. E o que se percebe, de forma cada vez mais indisfarçável, é a iminência da separação.
Não é um rompimento que desagrade aos Bolsonaros, isso é certo.
Se há algo que se move sempre para frente neste governo, é a disposição em transformar o poder em negócio de família, sem qualquer disfarce, sem prender-se ao mínimo de decência. Mesmo a fundamental disputa no Senado pela reforma da previdência fica em segundo plano: mais importante é encher as burras dos senadores com cargos lucrativos no governo, para que topem a infâmia de sagrar Eduardo Bolsonaro embaixador nos EUA. Não é possível imaginar uma submissão mais escandalosa do público ao mais mesquinho interesse pessoal.
Mas pudores dessa natureza nunca fizeram qualquer diferença para Jair Bolsonaro, acostumado desde sempre a ver a política como uma generosa teta na qual mamar.
Para Bolsonaro e os seus, o argumento contra a corrupção foi apenas mais uma dessas torneiras vertendo leite. Muito útil durante a eleição do ano passado, fiador importante de popularidade a partir de Sergio Moro ministro, mas nunca uma bandeira irrenunciável – mesmo porque, no modelo bolsonarista de política, nenhuma bandeira é tão importante que não possa, em algum momento, virar pano de chão.
Com o avanço dos meses, esse papo de combater o crime a qualquer custo foi ficando pesado para o governo federal. Não apenas pela situação de Flávio Bolsonaro, enrascada que está exigindo uma série de ações pouco republicanas para ser minimizada, mas também pela posição cada vez mais incômoda de Moro no ministério. As muitas humilhações a que foi submetido não parecem ter sido suficientes para convencer o ex-juiz a desistir da pasta, escada importante para suas pretensões futuras, seja no STF, seja em um cargo eletivo próprio. E, mesmo desmoralizados pelas ruidosas revelações da Vaza Jato, Moro e a operação Lava-Jato seguem populares. Mais do que Bolsonaro, como provam as pesquisas.
Livrar-se de Sergio Moro, livrar a cara do filho encurralado, cravar os dentes ainda mais fundo no poder. Para cumprir todas essas tarefas, o caminho é um só: usar a bandeira contra a corrupção como capacho para limpar os pés.
Diante de tal tarefa, a aposta dos Bolsonaros tende a ser a de sempre: a radicalização no discurso ideológico.
A disposição de colocar Augusto Aras na PGR, rasgando vergonhosamente a lista tríplice e escancarando a disposição de brigar contra a Lava-Jato em nome da salvação do 01, disparou de vez a cisão. Janaína Paschoal, a proponente do impeachment de Dilma, revela seu desagrado; Moro, cansado de ser feito de palhaço, condiciona sua permanência à manutenção de Maurício Valeixo como diretor-geral da PF. E Olavo de Carvalho, guru picareta do delírio reacionário à brasileira, apressa-se a dar o tom: a “luta contra a corrupção”, segundo ele, foi inventada pelo PT nos anos 1990, como parte da rebuscadíssima, maléfica e eternamente inconclusa estratégia comunista para tomar o poder em escala global.
O casamento entre reacionários políticos e ativistas do Judiciário é, cada vez mais, de fachada. Não há mais paixão, nunca houve muito respeito mútuo e, a essa altura, mesmo o tesão já se perdeu.
O jogo, agora, é fazer com que o rompimento inevitável tenha o menor efeito possível sobre a horda fiel a Bolsonaro. O que também traz, é claro, um fortalecimento da família como únicos detentores do poder, assumindo de vez a nau desgovernada, para o bem e para o mal. Jogar a Lava-Jato para o lado de lá está longe de ser uma tarefa simples, mas não parece haver grandes constrangimentos na hora de tentar essa acrobacia.
Acumular inimigos sempre foi uma má estratégia de guerra. Mas Bolsonaro e os seus não se importam, ao contrário; na verdade, eles até que gostam bastante dessa posição.
Na dura luta conta a escalada reacionária e fascista que ameaça transformar o Brasil em escombros, todas as vitórias devem ser comemoradas.
No último dia 7 de setembro, tivemos um triunfo significativo nesse sentido. Diante da censura homofóbica promovida pelo prefeito Marcelo Crivella contra a Bienal do Livro no Rio, uma reação (disparada, até certo ponto, pelo super-trunfo midiático Felipe Neto) forçou a ofensiva obscurantista a recuar, em uma sequência de acontecimentos que incluiu recordes de vendas, manifestações ruidosas e uma capa história da Folha de S. Paulo. A insensatez preconceituosa de Crivella (e do desembargador Cláudio de Mello Tavares, do TJ-RJ, que temporariamente autorizou o absurdo recolhimento de livros com temática LGBT) foi enfrentada e, no fim das contas, não triunfou.
Pela primeira vez em um tempo considerável, os fascistas não passaram.
Ainda assim, não foram poucos os que se mostraram, no mínimo, reticentes em comemorar. Afinal, argumentou-se, a ala mais radicalizada à direita estaria achando o máximo o posicionamento do prefeito carioca – e a reação estaria, na verdade, fidelizando e dando coesão às forças obscurantistas ao invés de enfraquecê-las. Ao falar do assunto, servimos à narrativa deles. Se continuarmos agindo assim, eles vão se reeleger, vão seguir no poder indefinidamente e nunca poderão ser derrotados etc e por aí vai.
Olha, sinceramente: está na hora de desapegar desse medo.
Não há qualquer sentido em disputar a mente dos apoiadores mais empedernidos de Bolsonaro, Crivella e de tudo que eles representam. Eles investiram muito de si nessa história, enormes quantidades de recalques e angústias, e simplesmente não vão saltar fora do barco ao primeiro sacolejo do mar revolto. Talvez desistam, em algum momento, desta trilha de destruição – mas dificilmente agora, e certamente não pelas palavras de ordem de um bando de petralhas esquerdopatas.
E, se converter os convertidos não está no horizonte, que sentido há em ficar temeroso pelo que eles pensam?
Quem propôs a briga foram Crivella e os seus. A reação veio porque, no caso, não tinha como não vir. Silenciar era inconcebível.
Ou permitir que os livros fossem recolhidos era, quem sabe, uma posição tática aceitável? Talvez, para evitar reforçar os reacionários, devamos aceitar que eles façam o que der na telha, sem qualquer tipo de contestação? Torcer para que, se ficarmos bem quietinhos, eles simplesmente desistam de nos importunar?
É possível acalmar a besta fingindo que não se escuta o que ela diz, que não se vê o que ela faz?
A fandom reacionária está, por assim dizer, perdida. Não temos que lutar por eles, mas sim enfrentar quem os usa como manobra. Agir de forma que, ao espectador ainda não posicionado, o lado do atraso, da destruição e do ódio a tudo que não seja espelho pareça tão inaceitável quanto de fato é. E, acima de tudo, temos que lutar pela nossa própria força. Temos que ser capazes não apenas de resistir, mas de confrontar. Se é preciso aprender a não dar fôlego a essa corrente-para-trás que nos consome, é igualmente importante tirar lições de nossas vitórias. Ser capaz de encontrar força, inspiração e estratégia em tudo que nos tira, mesmo que por poucos momentos, da defensiva.
Os fascistas não passaram, ao menos desta vez. E, se não passaram, é porque alguma coisa de certo a gente fez.
O filme mais lindo do mundo fala de um tempo em que beijar era feio. Bem, o era para o vigário do povoado siciliano de Giancaldo, em uma Itália no pós-Guerra. Padre Adelfio fazia com que o projecionista Alfredo cortasse todas as cenas de beijo de qualquer filme que assistisse – porque como todo bom censor, ele via, previamente, a tudo o que os outros seriam impedidos de ver. Usando a hipocrisia que provavelmente o excitava como cortina, além dos beijos, censurava seios e pernas expostas. E fazia o mesmo com tudo que considerasse impróprio. Por motivos menos aleatórios e a mais a serviço de uma agenda moralizadora da Igreja Católica.
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Mas não há censura que impeça a curiosidade de um menino. Totò, o protagonista de Cinema Paradiso (1988), ficava escondido atrás das cortinas, engalfinhado em veludo vermelho que, a mim, parecia cheirar mofo, e testemunhava todos os beijos,
todas as “indecências”,
todas as “imoralidades”
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Os olhos do guri de seis anos brilhavam. Não pela mesma safadeza do Padre Adelfio, mas pelo cinema. Era o cinema que o encantava. Tanto que ele queria levar os beijos para casa. E os seios, as pernas, os tiros, as brigas, as indecências e as imoralidades. Mas Alfredo não deixava.
Eu sei que parece uma contradição eu afirmar que o filme mais lindo do mundo esconde beijos. Eu sei. Mas no filme mais lindo do mundo, os beijos vencem no final.
O conto de Cinema Paradiso aconteceu, de certa forma, no Brasil. O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, também não gosta de beijos. Ele não é o padre Adelfio, mas o bispo evangélico ficou escandalizado com o romance gráfico Vingadores, A Cruzada das Crianças, da Marvel. A obra estava disponível na Bienal do Livro e conta a história do casal Wiccano e Hulking. Dois homens. Que se beijam.
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Como eu disse, Crivella não gosta de beijos e determinou que a obra fosse retirada das prateleiras
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Em vídeo publicado no Twitter, o prefeito disse que “livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e um adesivo do lado de fora avisando o conteúdo” e que tudo fora feito para “proteger as crianças”. Assim, em 2019, bem distante de Giancaldo ou do pós-guerra, beijos foram proibidos na Bienal. Um grupo de fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública (sim, isso existe) percorreu os estandes da feira para recolher exemplares “com cenas impróprias a crianças e adolescentes.” De forma aleatória. Igual ao padre Adelfio. Igual a qualquer censura.
O youtuber Felipe Neto reagiu ao obscurantismo e distribuiu, gratuitamente, mais de 10mil obras com temática LGBT durante a Bienal do Livro no Rio. Adequadamente, as publicações estavam envolvidas em plástico e um adesivo do lado de fora:
“Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas.”
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Assim como em Cinema Paradiso, os beijos venceram. Mas isso não é um filme, isso não é o final. O Brasil é governado pelo Padre Adelfio.