Geórgia Santos

Sobre o BBB17 e a normalização da brutalidade

Geórgia Santos
10 de abril de 2017

Vamos lá, podem me chamar de esquerdopatafeminazi ou de alguma outra atrocidade delirante, mas dedo na cara não é a norma e hematoma não é marca de amor. O que aconteceu no BBB17 é a normalização da brutalidade.

Nesta semana, um dos assuntos mais comentados no país foi a agressão protagonizada por Marcos Harter durante o Big Brother Brasil. Na cena assistida por milhões de pessoas, o médico é flagrado agredindo sua namorada, Emily, verbal e fisicamente. Visivemelmente agressivo e descontrolado, ele aponta o dedo para o rosto da companheira de casa, aperta o braço e belisca a jovem de maneira bruta. Eu não acompanho o programa mas, segundo informações de quem o faz, existia um padrão de constrangimento que vinha se perpetuando entre o casal.

Por bem, após analisar as imagens e, segundo Tiago Leifert, “ouvir especialistas”, a Globo decidiu expulsar Marcos do programa. A polícia foi até a casa do BBB e tomou depoimento de todos os envolvidos no caso. Ficou comprovada a agressão.

Agora veja bem, não sou eu, não é uma esquerdopatafeminazi, não é uma louca mentirosa que está dizendo. A polícia confirmou a agressão.

     Dito isso, acho que algumas coisas precisam ser discutidas:

  1. O que é agressão?

Segundo relatos da imprensa, Emily ficou bastante impactada com a decisão e tentou justificar a ação de Marcos, afirmando que ele “estava muito nervoso”. Após a saída, ela repetiu que sabia que ele jamais tinha a intenção de machucá-la. Na mesma linha, inúmeros telespectadores ficaram consternados com a saída do “brother”, afirmando que não houve agressão e que aquilo não passava de uma discussão normal de marido e mulher e que as pessoas (leia-se feministas) estavam exagerando e que ela também era culpada.

Não, amigos e amigas. Não é normal.

Isso apenas mostra o tamanho da nossa ignorância com relação ao que é aceitável em um relacionamento, seja amoroso ou não. Não precisa de tapa na cara ou um chute para se configurar agressão, que pode ser física (e aqui se inclui a sexual) ou psicológica.

Nesse caso, houve violência física, comprovada pelos hematomas deixados no braço da vítima após ela ser apertada e beliscada; e violência psicológica, que inclui constrangimento, humilhação e manipulação, insultos, entre outras coisas. Todas observadas na imagem quando ela foi praticamente “embretada” em um canto como se fosse um animal assustado.

Então, não, não é uma briga normal de casal. E se tu vês isso com naturalidade, eu sugiro que procure ajuda, sendo homem ou mulher.

  1. Qual o limite?

Nós já definimos agressão, mesmo que superficialmente, então talvez essa pergunta pareça relativamente mais fácil de responder. Mas não é. O limite dentro de um relacionamento abusivo pode ser uma linha bastante borrada e difícil de identificar. Quando Emily tentou defender o agressor, uma das colegas de casa replicou “Talvez tu gostasse tanto dele que tu não estivesse enxergando”, disse a advogada Vivian sobre o nível da agressão. Ou seja, o limite não estava claro.

Aparentemente, nem para a TV Globo, que não considerou as imagens perturbadoras o suficiente para caracterizar como agressão. Precisou esperar a polícia.

O lance é que nós vivemos em uma sociedade machista – e o fato de tantas pessoas acharem aquela briga normal prova isso – e o discurso vigente torna essa tarefa mais difícil. Mas É possível identificar alguns sinais e entender o limite que não deve ser cruzado.

O movimento Mexeu com uma, mexeu com todas produziu um material bastante elucidativo e que pode ajudar muita gente.

É fácil encontrar justificativas para a agressividade em uma sociedade em que a brutalidade é normalizada, mas elas são todas vãs. Então, não permita que nenhuma dessas coisas aconteça a você ou a alguém que você conheça.

Raquel Grabauska

Santa paciência, Batman!

Raquel Grabauska
7 de abril de 2017

Alguém já pensou no tempo que agente leva pra arrumar os filhos pra sair de casa? Aqui a lei da inércia nos acompanha o tempo todo. Os guris acordam cedo. Entre 6 e 6h30 já estamos de pé (eles mais acordados, nós, os pais, ainda chamando urubu de meu louro…). Paciência.

Eu sempre penso que vamos tomar café da manhã, ajeitar um pouco a casa, brincar e pelas 9 podemos fazer algo de legal na rua.

Depois de 18 tentativas, conseguimos tomar o café. Ainda de pijama.

Daí conseguimos tirar a blusa de um. Enquanto isso o outro tirou a cueca e tá achando muito divertido correr peladão pela casa. Isso deixa o outro com vontade de ir atrás do irmão. E lá tão eles, lindos, dançando peladões. Aí já se foi metade da manhã. Quando conseguimos vestir os dois, estamos na porta e um lembra que quer ir no banheiro. Voltamos. Quando vamos sair de novo, o outro lembra que quer água. Muita sede. Temos que voltar. Pronto. Saindo. Ops, deu fome. Tá, lanchamos. E assim vai. Vai e volta e vai e volta… até que vai mesmo. Chega na praça. Brinca, brinca, brinca, corre, brinca. Hora de ir embora. Não querem ir!!!! Nunca!!! Daí começa tudo de novo…

Táticas para fazer os filhos irem de um lugar para o outro em menos de 36horas!

  • Ver um OVNI na rua (não pode mentir que viu, porque a gente não deve mentir para os filhos…)
  • Dizer que talvez a gente encontra o Batman no passeio.
  • Aventar a possiblidade de passar numa sorveteria, mesmo que esteja fazendo -5 graus.
Igor Natusch

Povo unido protesta, com ou sem partido

Igor Natusch
5 de abril de 2017
Diretas Já em Porto Alegre. Foto: Alfonso Abraham

A imagem que ilustra a matéria foi registrada em 13 de abril de 1984, durante o movimento de Diretas Já em Porto Alegre – uma manifestação que, imagino eu, a maioria dos leitores e leitoras considerará, no mínimo, legítima. É possível enxergar com certa facilidade bandeiras do PDT, PCB e PMDB na foto – siglas que, à época, eram identificadas com o campo progressista e de oposição à ditadura. Ao ver essa imagem nas recordações de Facebook, durante a semana passada, voltei a fazer uma reflexão sobre os gritos de “povo unido protesta sem partido”, tão comuns em mobilizações de rua nos últimos anos, vindos tanto de gente mais à esquerda quanto de conservadores e direitistas.

É óbvio que estamos diante de cenários muito diferentes, mas ainda assim acho válido o questionamento. Faria algum sentido dizer que trabalhistas e comunistas teriam “cooptado” a manifestação de Diretas Já a seu favor, ou que sua presença abalou a legitimidade do protesto? Faria sentido, para os que protestaram na época, dizer que “povo protesta sem partido”? E por que isso faz todo o sentido agora, para tanta gente, sendo que os partidos políticos seguem sendo (ao menos em teoria) basicamente o que eram naqueles tempos: catalisadores da vontade de determinados grupos sociais, traduzindo em projetos e bandeiras os anseios de fatias significativas da população nacional?

Há, como bem se sabe, uma onda forte de descrédito quanto à política institucional. Quando alguém grita exigindo que as bandeiras sejam baixadas durante um protesto, está basicamente manifestando essa descrença, essa sensação de que os partidos preocupam-se apenas com as próprias conveniências e nada mais. No entanto, essa revolta traz entre suas características uma ausência de resposta implícita, já que dela não surge (ou ainda não surgiu) um caminho que melhore essas estruturas, que traga uma democracia institucional mais sólida e menos corrompida. Não é necessariamente um erro, diga-se: é mais um sintoma da ausência de reflexão por trás da maior parte das vozes que participam desses gritos. As alternativas, quando surgem, ou são articuladas de forma ingênua (voto em pessoas, não em partidos) ou propondo o abandono completo da esperança democrática, como nos cada vez menos constrangidos gritos por intervenção militar. Não são as únicas, mas são as vozes que ganham força em um cenário onde a indignação surge sem base, como água que brota do chão e não se sabe para qual lado irá correr.

Não tenho e nunca tive partido político. Sou crítico do atual modelo político brasileiro e um moderado descrente das possibilidades da política partidária como um todo, especialmente no sentido de promover verdadeiras mudanças de modelo e de sociedade. Não me sinto plenamente representado por nenhuma das bandeiras de partidos políticos que estiveram (ou estão) presentes em manifestações pelo País, e penso que precisamos de uma reformulação profunda no cenário partidário, no mínimo. Ainda assim, acho que esse tipo de grito traz em si a semente de um equívoco, acho errado querer impedir que partidos políticos se digam presentes nas ruas, em meio à massa humana que reclama de alguma coisa.

Essa demanda de “povo sem partido” pode ser espontânea, mas sua formulação em grito de guerra não é ingênua e desinteressada. É filhote de setores que acreditam existir na política partidária (em especial a de esquerda) uma tendência ao crime, à desonestidade e à criação de tensão social, entre outras coisas. Quem tradicionalmente pede que partidos fiquem de fora das manifestações populares é quem é contrário à ação política como um todo – e isso favorece quem se beneficia da despolitização coletiva para manter o poder de fato em suas mãos. Ao gritar que o “povo protesta sem partido”, está se reforçando a ideia de que um protesto “puro” só existe na completa ausência de mobilização partidária. Ou então está sendo defendida, mesmo que de forma inconsciente, uma noção de que o povo está intrinsecamente distante da articulação política, como algo que é “deles” e que nos contamina caso tenhamos contato com isso. Em última análise, são argumentos que jogam a favor do status quo e contra qualquer tentativa, institucional ou não, de mudança. Gostem ou não da política partidária, ela ainda é e possivelmente seguirá sendo um meio importante de atuação, e não me parece interessante (mesmo eu sendo, como apontei, um crítico do modelo) que ela seja deslegitimada desse modo.

A verdade, gostem ou não, é que povo simplesmente protesta, com ou sem partido. Evitem a proximidade com grupos político-partidários, se discordam deles; não aceitem suas sugestões, ignorem, mantenham distância. Mas não sejam ingênuos, atuando a favor de forças que, se tiverem chance, não hesitarão em calar as próprias vozes que as conclamam.

Foto: Alfonso Abraham

Geórgia Santos

Nosso muro particular – O fim do Ciência Sem Fronteiras

Geórgia Santos
4 de abril de 2017

Passamos horas debatendo o absurdo do muro que Donald Trump pretende construir para separar os Estados Unidos do México. É um tema quase querido, digamos assim, como se de estimação. Mas esquecemos do nosso pequeno muro particular. Não, Michel Temer não pretende empilhar tijolos para isolar o Brasil de qualquer vizinho que seja, mas ele está, sim, se empenhando em construir uma parede invisível que nos afasta do resto do mundo com o fim do Ciência Sem Fronteiras.

“A justificativa é falta de dinheiro, claro, como se fosse explicação para tudo”

No último final de semana foi confirmada a extinção do programa que financiava o intercâmbio de estudantes de graduação brasileiros em outros países. A justificativa é falta de dinheiro, claro, como se fosse explicação para tudo. O governo alega que o programa deixou dívidas (?) e que os alunos beneficiados não deixaram resultados expressivos em suas universidade – e aqui a vontade é de colocar um milhão de pontos de interrogação.

Há tantas perguntas que me faço ao ouvir essas pseudojustificativas. Que dívidas? Com quem? O que são resultados expressivos? Qual seria a resposta adequada dos alunos? Em quanto tempo esses resultados deveriam aparecer? Quais são esses resultados? Dinheiro? Pesquisa? Enfim. Eu passaria o dia todo fazendo perguntas. A questão é que o governo deixa claro que trata a educação como negocio e não como uma ferramenta transformadora de – preste atenção nisso – longo prazo.

Eu tenho relativa experiência com estudo no exterior. Fiz um mestrado em Portugal e agora estou como pesquisadora visitante nos Estados Unidos. Essa jornada começou em 2013, há quatro anos, quando fui uma das escolhidas pelo Instituto Ling para participar do programa Jornalista de Visão, que oferta bolsas de mestrado no exterior. Somente agora começo a devolver um pouco, muito pouco, do que me foi ofertado. Seja por meio da minha pesquisa sobre mídia, protestos e democracia no Brasil ou por meio deste que Vós fala.

O governo quer resultados imediatos? Quer retorno financeiro? Quer pesquisas que comecem e terminem em meses? Bom, isso não existe.

O muro invisível de Temer isola jovens ansiosos e brilhantes. Evita o crescimento que só o diferente pode nos ofertar. Impede que alunos curiosos evoluam fora de sua bolha a menos que tenham condições financeiras para tal – e sabemos que a maioria dos brasileiros não tem.

Digo isso, no entanto: tenha certeza, senhor Doutor Michel Temer, que os “resultados expressivos” aparecerão em alguns anos. O conhecimento daqueles que foram o senhor não pode extinguir.

 

 

 

Raquel Grabauska

Viajar com crianças

Raquel Grabauska
31 de março de 2017

Sabe aquela história de quando a criança não quer dormir tu embala no carrinho ou sai pra dar uma volta de carro? Aqui nunca funcionou. Quer despertar um filho meu é só colocar no carro. Já fizemos uma viagem que devia durar três horas. Com nossos dois filhos, levou 6.

Meu trabalho no teatro exige muitas viagens. Viajei até as semanas finais da gravidez. Quando o bebê tinha três meses, fizemos nossa primeira viagem curta de carro. Pra ele foi tranquilo. Eu fiquei numa tensão… Uma viagem de 2h30min me pareceu durar uns 14 dias.

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“A cara das pessoas ao ver uma família chegando com uma criança é algo memorável”

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Quando ele tinha 9 meses fizemos a primeira de avião. Tuuudo bem. Ele mamou na subida e dormiu quase o vôo todo. Daí fomos nos adaptando e voltamos às muitas viagens de sempre. Quando ele tinha quase dois anos, fizemos a primeira viagem internacional. 12 horas dentro de um avião. A entrada no avião já é algo para os fortes. A cara das pessoas ao ver uma família chegando com uma criança é algo memorável. O pânico que se instala com a possibilidade de ter uma crianças perturbando a viagem é hilário. E compreensível. E um risco real.

Uma vez fizemos uma viagem de carro de nove horas. Meu filho queria que eu cantasse. O caminho todo. TODO. Colocava uma música no rádio: não,a mamãe canta. O pai cantava: não a mamãe canta. Contava uma história: não, a mamãe… A mamãe já cantava que a borboletinha entrou na roda e fiz miau. Não sabia mais o que tava falando.

Agora temos dois filhos. Eles Têm o poder de às vezes virarem 18. Nossos quatro braços às vezes parecem insuficientes.

Dias desses viajamos de trem. Meu marido, eu, nossos dois filhos (3 e 5 anos). Na cabine tinha mais uma criança de 2 anos e outra de 4. Os dois não se conheciam e eram alemães. Pequeno detalhe: ainda não falamos mais que cinco ou seis palavras em alemão. Mas isso não importou. Quando vi, estávamos todos brincando de o limão entrou na roda. Isso rendeu duas horas de viagem. O alemão de 4 anos cantarolava a melodia. As mães deles conversavam animadamente entre elas.

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Desde então desenvolvemos alguns suportes para que as viagens sejam possíveis para eles, para nós e pra quem está por perto:

  • sempre que entramos num avião, imediatamente eu falo pra pessoa que está na nossa frente que estamos viajando com crianças, que se estivermos incomodando, pode falar. Até hoje tivemos sorte. Acho que isso já humaniza um pouco, as pessoas nos veem como pessoas e não como dois portadores de capetas ambulantes;
  • Fazer amizade com quem está atrás. Aquelas espiadinhas, brincar de olhar e esconder, rendem hooooras de brincadeira;
  • Lápis de cor, revistas, livros. Sim, isso funciona sempre!

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Inventamos também alguns jogos nossos (em viagens terrestres):

  1. Quem acha aquele carro daquela cor daquele daquele carro – essa é auto explicativa. Rende muito tempo. Principalmente se eu peço pra achar um carro roxo com bolinhas verdes. Rá;
  2. Acha tudo acha tudo acha– escolhe um objeto e os outro têm qua achar na rua;
  3. Árvore crescente – acha uma placa na rua. Tem que achar várias iguais. Vai montando uma árvore imaginária com as placas. Se parecer uma placa com X, a árvore desmonta;

Os nomes das brincadeiras  e a ilustração são do Benjamin

 

 

Raquel Grabauska

Mordendo a língua

Raquel Grabauska
24 de março de 2017

Tem coisas que acho inconcebíveis acontecer com quem tem filhos. Coisas que julguei muito os pais quando vi os filhos fazendo. Coisas que jurei que nunca iam acontecer comigo e acabei mordendo a língua. Tipo isso:

  • Fazer refeição olhando TV;
  • Comer porcaria antes do almoço;
  • A porcaria ser o almoço;
  • Negociar um presente pra parar uma birra no meio da rua;
  • Dar aquela xingada nada básica em público;

Já fiz todas essas e mais algumas que devo ter (consciente ou inconscientemente) deletado. E por aí? Mordendo a língua também?

Igor Natusch

O sigilo da fonte não é para Eduardo Guimarães: é para todos nós

Igor Natusch
22 de março de 2017
Jornalismo. Foto: Igor Natusch

Um jornalismo sem capacidade de obter informações sensíveis é frágil e submisso – e é exatamente isso que políticos mal intencionados querem

A condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães, responsável pelo Blog da Cidadania, foi mais um dos gestos questionáveis oriundos da força-tarefa da Lava-Jato – uma investigação (e digo desde já para tirar essa pedra do caminho) muito importante, plenamente justificada e que deve, sim, ser conduzida até o limite, sem piedades ou simpatias eletivas. O pior dela, porém, não é o procedimento jurídico questionável em si, mas seu objetivo confesso: forçar o blogueiro a revelar quem havia vazado a informação, depois confirmada, de que Lula seria alvo direto de ações da operação. Ou seja, Sergio Moro e seus colegas queriam que Guimarães abrisse mão do sigilo da fonte, um dos pilares que sustenta toda a atividade jornalística. Para justificar a ação, a Justiça Federal do Paraná lançou uma nota onde, entre outras coisas, se lê o seguinte:

“Não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo. A proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma.”

Isso não é novo. Há tempos jornalistas brasileiros têm sido assediados, de diferentes formas, para que revelem fontes de interesse para suas investigações. Eu mesmo, quando editor do Sul21, passei por algo parecido, ao acompanhar um colega chamado a depor pelo singelo motivo de ter entrevistado um representante de um movimento social – que não quis se identificar na matéria, e que a polícia desejava identificar a qualquer custo. Na ocasião, invocar o direito sagrado de sigilo da fonte foi suficiente – mas não são poucos as movimentações que querem relativizar ou mesmo acabar com essa barreira.

O motivo pelo qual esse direito constitucional não pode cair está no próprio texto da Justiça Federal paranaense. Quem definirá a linha de corte? Sua Majestade, o excelso Juiz Federal? Um Homem ungido para dividir bons e maus com um golpe de sua justa espada, eternamente iluminado e infalível? Caberá a ele, o Juiz Federal, determinar quem faz comentário jornalístico e quem não faz, quem dá notícia e quem não pode dar – e a nós todos não caberá senão dobrar os joelhos de forma obediente, aceitando a decisão do excelso Juiz como pia, boa, justa e severa na medida certa? Ou talvez caiba ao Deputado ou ao Senador, eleitos pelo voto popular, iluminados pelo aval do povo para dizer quando a fonte pode ficar em segredo e quando não pode? Talvez possa ser o Presidente, o mais poderoso entre todos, a figura a delimitar essa fronteira – afinal, ele será justo, será desinteressado, pensará exclusivamente no bem de nossa combalida coletividade?

Ninguém em sã consciência acredita nisso. Justamente porque o sigilo permite que essas mesmas pessoas – o deputado, o presidente, o juiz federal até – sejam denunciados e investigados por seus supostos malfeitos, como tantas vezes já se viu. Se fiscalizar os poderes é uma das funções do jornalismo (e inegavelmente o é), enfraquecer sua capacidade de obter informações sigilosas é decepá-lo, tanto faz se com boas ou más intenções. Que o jornalismo hoje é, na média, submisso ao interesse de fontes, infelizmente é algo notório – e algo que se revela tanto nos vazamentos seletivos quanto em situações como as “entrevistas informais” de promotores da Lava-Jato com jornalistas selecionados, situações igualmente subservientes e questionáveis. O fim da obrigatoriedade do diploma (e não estou fazendo juízo de valor a esse respeito, deixando claro) também contribui para esse quadro de incerteza. Mas são problemas que a atividade precisa resolver consigo mesma, pelos próprios mecanismos, sem a necessidade de uma voz iluminada surgida do firmamento para trazer uma resposta. Mesmo porque, como diz de forma cristalina o texto constitucional:

XIV – e assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional

Sim, eu sei que você percebeu: o trecho não fala em “ser jornalista”, o que hoje está menos definido do que nunca, mas em “exercício profissional”. Tire daí as suas conclusões.

Eduardo Guimarães é um blogueiro pelo qual não tenho absolutamente nenhuma admiração. Seu trabalho me parece, em vários aspectos, lamentável. Seu blog parece mais uma ferramenta de guerra política, financiada por setores políticos – não raro, e de forma profundamente condenável, com dinheiro público. É um fenômeno para mim repulsivo, e que fará muito bem em desaparecer para sempre. Mas quem dá informação (e, mesmo por linhas tortas e não raro mal cheirosas, é o que o blogueiro fez) exerce, em princípio, uma atividade jornalística – e, mesmo que tenham retirado a régua legal para delimitar as fronteiras da atividade, não é nada seguro confiar essa decisão à subjetividade da autoridade de ocasião.

Políticos, integrantes do Judiciário, empresários de vulto, grandes proprietários rurais – todos, na medida em que eventualmente tenham maus interesses, vão se sentir bem mais à vontade na medida em que jornalistas tenham (ainda mais) dificuldade para atuar. E, na medida em que eu diminuo o direito de Eduardo Guimarães de preservar sua fonte sem ser coagido a revelá-la, estou encorajando um monstro muito feio que, na primeira oportunidade, baterá à minha porta. E à sua também. Discutir se Eduardo Guimarães é ou não jornalista é uma forma engenhosa de desviar a atenção do principal: o que querem remover dele, e a partir daí pode ser removido de todos e todas, é um direito constitucional fundamental para o jornalismo. Se a definição de quem é jornalista ou não tornar-se algo subjetivo, algo que a autoridade da vez decide no poder de um canetaço, estamos todos sob risco – não só os profissionais, mas a sociedade inteira e sua capacidade de fiscalizar poderosos, em todas as esferas.

Foto: Igor Natusch

Raquel Grabauska

O Professor Robert Kelly, a mamãe e as crianças

Raquel Grabauska
17 de março de 2017

Toda semana tem um vídeo polêmico que viraliza na internet. O da semana que passou me deu um nó na cabeça: o vídeo do Professor Robert, ao vivo na TV com suas duas crianças e mais a  esposa.

Assisti e me diverti bastante. Então, comecei a ver as opiniões das pessoas e fiquei um pouco assustada com a pressa em julgar o que assistiam. Entre outras coisas,  li que:

  • ele machucou a criança;
  • ele foi estúpido;
  • a mulher era a babá;
  • a mulher era babá e ia tomar um esporro;
  • e mais outras coisas que felizmente já apaguei da memória;

Fiquei pensando nessa condição humana de sermos, constantemente, os donos da verdade. Do julgamento que fazemos em dois segundos ou menos tempo que isso

Revi o vídeo e o que vi ali foi um homem que estava trabalhando em casa ser interrompido por duas crianças. Eu sou uma pessoa que brinca muito, falo muita bobagem, talvez até demais. Mas na hora do trabalho, sou muito, mas muito séria. Não sei o que faria se um filho meu invadisse o palco durante uma apresentação minha. Eu amo meus filhos de um jeito descomunal, mas não sei se não tentaria esconder um deles embaixo de um tapete, pendurar o outro num lustre ou se não inventaria alguma outra fórmula mágica pra que sumissem naquele momento.

Se alguém que não me conhece me visse em uma situação dessas, poderia me julgar uma péssima mãe, ter pena dos meus filhos, querer me denunciar ao conselho tutelar ou sabe-se lá o quê. Calma! É só uma mãe trabalhando! E ali no vídeo, era só um pai trabalhando. E às vezes (na maioria delas!) os pais não sabem o que fazer.  E isso não nos faz nem melhores nem piores, afinal, não tem test-drive. Depois que nasceu, não tem volta.

Então, às vezes (muitas), a gente se atrapalha. E acerta e erra e acerta e erra. E é bem bom assim. Todo mundo diz que os filhos crescem rápido. E que depois morremos de saudades eles pequenos.

Vou lá assistir o vídeo novamente. Que bom poder rir um pouco! E saber que continuo sendo uma mãe que ama os filhos!

PS.: O professor Robert Kelly voltou à BBC com a família toda – dessa vez de propósito – pra falar sobre o turbilhão. Dá uma olhada aí embaixo.

Raquel Grabauska

Meu marido não me ajuda

Raquel Grabauska
10 de março de 2017

Tenho dois filhos e, sem querer me exibir, creio que tenho o melhor marido do mundo. Do meu mundo. Meu marido não me ajuda, ele faz a parte dele. Meus filhos são metade dele. E ele cuida da metade, do todo, do dobro.

“Ele tem que poder fazer do jeito dele, afinal, não precisamos concordar em tudo, precisamos concordar no principal”

Não foi fácil criar isso. Dá vontade de que ele faça as coisas do jeito que quero. Dá sim. Daí respiro e me seguro. Ele tem que poder fazer do jeito dele, afinal, não precisamos concordar em tudo, precisamos concordar no principal. Às vezes, os guris saem com uma calça listrada e camiseta de bolinhas. Tudo bem. Eles são tão bonitos que isso até pode virar tendência.

Às vezes chego em casa e meu marido está mais interessado no desenho que passa na TV que os dois, que já estão correndo pela casa e brincando de outra coisa. E eu fico com vontade de reclamar, mas fico quieta, pois eu estava na rua porque tinha ele ali pra cuidar dos nossos filhos.

Tenho tentado não ter razão. Não preciso ter razão. Preciso ter paz. E acho que estamos num bom caminho.

Igor Natusch

É sempre uma boa ideia votar em uma mulher – agora, mais do que nunca

Igor Natusch
9 de março de 2017

Se alguém eventualmente tem dúvidas de que as mulheres ainda precisam lutar, e muito, pela igualdade plena no Brasil, uma simples observação de nossas casas legislativas traz elementos incontestáveis nessa direção. No Congresso, apenas 55 dos 513 deputados federais são mulheres, o que dá pouco mais de 10% do total. No Senado, a situação é ligeiramente menos ruim, com 12 senadoras em uma casa de 81 representantes, quase 15%. Ainda assim, um desequilíbrio brutal, já que as mulheres são 51,4% da população brasileira. De acordo com o TSE, menos mulheres foram eleitas prefeitas em 2016, no comparativo com 2012 – mais um dado que demonstra, com clareza, como as mulheres estão sub-representadas em nosso sistema político. Votamos muito, muito pouco em mulheres no Brasil.

Muito disso, é claro, vem da permanência de algumas ideias no subconsciente do brasileiro. A mais forte delas, uma suposta incapacidade feminina em tomar as rédeas de empreendimentos coletivos e da própria vida – o que, na mente preconceituosa de muitos, deveria forçar a mulher a um papel de submissão aos homens. A resposta, caso assim não haja, será violenta. Ou alguém tem notícias de um homem defensor de Direitos Humanos no Congresso que seja tão brutalmente perseguido quanto Maria do Rosário – alvo de ataques misóginos por parte até de colegas parlamentares? Alguém imagina Michel Temer, mesmo com a popularidade cada vez mais baixa, sendo vítima de montagens ultrajantes e gritos de guerra sexistas como os que Dilma Rousseff teve que vivenciar até o impeachment, e que possivelmente enfrente ainda hoje por aí? Os ataques a essas e várias outras mulheres em posições de poder político trazem em si um elemento extra, também visível no baixo número de eleitas: o de que a mulher não deve estar lá, de que o lugar dela não é ali. Uma situação, diga-se, que ainda surge em outras esferas de poder, como o Judiciário. Como esperar que os direitos delas sejam devidamente apreciados em um panorama como esse?

As unidades da Casa da Mulher Brasileira, planejadas para serem espaços de acolhimento nas principais cidades do País, sofrem para sair do papel. A aplicação efetiva da lei do feminicídio vai se tornando uma possibilidade cada vez menos concreta. A mudança nas proibições ao aborto, então, nem se fala. Há uma cruzada conservadora em curso no país, e boa parte das ideias que alimentam essa chama são contrárias a qualquer esforço emancipatório feminino: desejam a mulher silenciada, submissa, aceita nos espaços de decisão apenas para dar amém aos homens, jamais para contestá-los. É um cenário grave. E muito embora o voto não seja quase nada sem as mobilizações crescentes da sociedade civil em nome dos direitos das mulheres, ele também cumpre o seu papel.

Vivemos tempos de absurdo na política brasileira, onde um auto-intitulado Partido da Mulher tem dois representantes em Brasília, entre titulares e suplentes (ambos homens) e a presidente nacional afirma categoricamente que a sigla não se identifica com as lutas feministas. Ainda assim (e justamente por isso), reforçar o potencial eleitoral das mulheres é uma necessidade urgente, caso nossa busca seja a de uma sociedade onde homens e mulheres ganhem o mesmo salário, trabalhem durante o mesmo período, tenham o mesmo acesso a direitos e esferas de atuação social e política. Você vota em mulheres, leitor(a)? Se não vota, ou nunca votou, recomendo pensar a respeito. Porque os números que você digita na urna, mesmo cobertos das melhores intenções, podem estar enchendo as assembleias e prefeituras de homens, brancos, heterossexuais e de bom poder aquisitivo – pessoas que não viram criminosos por nenhum desses motivos, mas que são provavelmente bem menos sensíveis aos seus problemas (ou os da sua mãe, irmã, avó, prima, namorada, esposa, amante, vizinha ou amiga) do que você gostaria.

Foto: Cintia Barenho