Um jornalismo sem capacidade de obter informações sensíveis é frágil e submisso – e é exatamente isso que políticos mal intencionados querem
A condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães, responsável pelo Blog da Cidadania, foi mais um dos gestos questionáveis oriundos da força-tarefa da Lava-Jato – uma investigação (e digo desde já para tirar essa pedra do caminho) muito importante, plenamente justificada e que deve, sim, ser conduzida até o limite, sem piedades ou simpatias eletivas. O pior dela, porém, não é o procedimento jurídico questionável em si, mas seu objetivo confesso: forçar o blogueiro a revelar quem havia vazado a informação, depois confirmada, de que Lula seria alvo direto de ações da operação. Ou seja, Sergio Moro e seus colegas queriam que Guimarães abrisse mão do sigilo da fonte, um dos pilares que sustenta toda a atividade jornalística. Para justificar a ação, a Justiça Federal do Paraná lançou uma nota onde, entre outras coisas, se lê o seguinte:
“Não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo. A proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma.”
Isso não é novo. Há tempos jornalistas brasileiros têm sido assediados, de diferentes formas, para que revelem fontes de interesse para suas investigações. Eu mesmo, quando editor do Sul21, passei por algo parecido, ao acompanhar um colega chamado a depor pelo singelo motivo de ter entrevistado um representante de um movimento social – que não quis se identificar na matéria, e que a polícia desejava identificar a qualquer custo. Na ocasião, invocar o direito sagrado de sigilo da fonte foi suficiente – mas não são poucos as movimentações que querem relativizar ou mesmo acabar com essa barreira.
O motivo pelo qual esse direito constitucional não pode cair está no próprio texto da Justiça Federal paranaense. Quem definirá a linha de corte? Sua Majestade, o excelso Juiz Federal? Um Homem ungido para dividir bons e maus com um golpe de sua justa espada, eternamente iluminado e infalível? Caberá a ele, o Juiz Federal, determinar quem faz comentário jornalístico e quem não faz, quem dá notícia e quem não pode dar – e a nós todos não caberá senão dobrar os joelhos de forma obediente, aceitando a decisão do excelso Juiz como pia, boa, justa e severa na medida certa? Ou talvez caiba ao Deputado ou ao Senador, eleitos pelo voto popular, iluminados pelo aval do povo para dizer quando a fonte pode ficar em segredo e quando não pode? Talvez possa ser o Presidente, o mais poderoso entre todos, a figura a delimitar essa fronteira – afinal, ele será justo, será desinteressado, pensará exclusivamente no bem de nossa combalida coletividade?
Ninguém em sã consciência acredita nisso. Justamente porque o sigilo permite que essas mesmas pessoas – o deputado, o presidente, o juiz federal até – sejam denunciados e investigados por seus supostos malfeitos, como tantas vezes já se viu. Se fiscalizar os poderes é uma das funções do jornalismo (e inegavelmente o é), enfraquecer sua capacidade de obter informações sigilosas é decepá-lo, tanto faz se com boas ou más intenções. Que o jornalismo hoje é, na média, submisso ao interesse de fontes, infelizmente é algo notório – e algo que se revela tanto nos vazamentos seletivos quanto em situações como as “entrevistas informais” de promotores da Lava-Jato com jornalistas selecionados, situações igualmente subservientes e questionáveis. O fim da obrigatoriedade do diploma (e não estou fazendo juízo de valor a esse respeito, deixando claro) também contribui para esse quadro de incerteza. Mas são problemas que a atividade precisa resolver consigo mesma, pelos próprios mecanismos, sem a necessidade de uma voz iluminada surgida do firmamento para trazer uma resposta. Mesmo porque, como diz de forma cristalina o texto constitucional:
XIV – e assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional
Sim, eu sei que você percebeu: o trecho não fala em “ser jornalista”, o que hoje está menos definido do que nunca, mas em “exercício profissional”. Tire daí as suas conclusões.
Eduardo Guimarães é um blogueiro pelo qual não tenho absolutamente nenhuma admiração. Seu trabalho me parece, em vários aspectos, lamentável. Seu blog parece mais uma ferramenta de guerra política, financiada por setores políticos – não raro, e de forma profundamente condenável, com dinheiro público. É um fenômeno para mim repulsivo, e que fará muito bem em desaparecer para sempre. Mas quem dá informação (e, mesmo por linhas tortas e não raro mal cheirosas, é o que o blogueiro fez) exerce, em princípio, uma atividade jornalística – e, mesmo que tenham retirado a régua legal para delimitar as fronteiras da atividade, não é nada seguro confiar essa decisão à subjetividade da autoridade de ocasião.
Políticos, integrantes do Judiciário, empresários de vulto, grandes proprietários rurais – todos, na medida em que eventualmente tenham maus interesses, vão se sentir bem mais à vontade na medida em que jornalistas tenham (ainda mais) dificuldade para atuar. E, na medida em que eu diminuo o direito de Eduardo Guimarães de preservar sua fonte sem ser coagido a revelá-la, estou encorajando um monstro muito feio que, na primeira oportunidade, baterá à minha porta. E à sua também. Discutir se Eduardo Guimarães é ou não jornalista é uma forma engenhosa de desviar a atenção do principal: o que querem remover dele, e a partir daí pode ser removido de todos e todas, é um direito constitucional fundamental para o jornalismo. Se a definição de quem é jornalista ou não tornar-se algo subjetivo, algo que a autoridade da vez decide no poder de um canetaço, estamos todos sob risco – não só os profissionais, mas a sociedade inteira e sua capacidade de fiscalizar poderosos, em todas as esferas.
Foto: Igor Natusch
