Quando a chantagem vira “ação de governo”, é o Brasil que fica na pior
Igor Natusch
27 de dezembro de 2017
Brasília - O ministro da Secretaria de Governo da Presidência, Carlos Marun, fala à imprensa, após reunião com o presidente Michel Temer, no Palácio do Planalto (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Houve um tempo em que a negociação de recursos financeiros em troca de apoio político era uma operação discreta, até certo ponto constrangida – um procedimento padrão, é claro, mas que a decência recomendava que fosse feito longe dos holofotes e com o mínimo de estardalhaço. Mas, como bem sabemos, Brasília transformou-se em um deserto de posturas decentes, e Carlos Marun (PMDB-MS) é uma das figuras melhor adaptadas para a sobrevivência nesse terreno. Constranger-se não é com ele, como a dancinha da vitória na vergonhosa recusa da denúncia contra Michel Temer serve para demonstrar. Não surpreende, então, que seja agora ministro da Secretaria de Governo, adaptado que é a um terreno onde a chantagem e o fisiologismo são as bases da sobrevivência política.
Alguns governadores abriram o bico, revoltados com a exigência de que garimpassem votos a favor da reforma da Previdência entre deputados de seus Estados em troca de empréstimos da Caixa Econômica Federal. Um deles, o sergipano Jackson Barreto, foi explícito, nomeando Marun como responsável pelo recado: verba dos contratos, só depois da reforma passar no Congresso.
.
Diante da grave acusação, Marun não titubeou. Achou um modo curioso de rebater a denúncia de chantagem: seguir chantageando, mas dizer que não é chantagem, e sim um procedimento absolutamente normal
.
“O governo espera dos governadores que têm recursos a serem liberados uma reciprocidade no que tange a questão da Previdência”, disse ele, com a expressão plácida de quem diz que vai tomar um cafezinho no boteco da esquina. Rebatizou a chantagem como “ação de governo”, usando um pouco sofisticado jogo de palavras para dar continuidade à chantagem publicamente, em uma entrevista para grandes veículos de comunicação.
A liberação de verbas da Caixa é, de fato, uma ação de governo. Afinal, é parte das tarefas que se espera da União a elaboração de um plano nacional de desenvolvimento, que delimita as obras para as quais Estados e municípios terão recursos federais na mão.
.
O que não é “ação de governo” é condicionar a liberação da bufunfa a ganhos políticos
.
Por muitos motivos, mas especialmente porque essa grana não é do governante da vez: é um fundo de investimento que pertence ao conjunto da sociedade brasileira, que o alimenta com impostos e contas de FGTS. Embora a prerrogativa de gerenciar esse montante seja do governo federal, o procedimento deve levar em conta acima de tudo o benefício dos investidores, não a meta política da vez, seja ela qual for. Ou seja, definir para onde vai esse dinheiro é uma das tarefas mais importantes da União, algo que deve obedecer metas de longo prazo e ter como norte absoluto o desenvolvimento do País.
Nada disso, é claro, surge na fala de Marun. Nela, ouve-se apenas o escambo baixo e explícito, um toma-lá-dá-cá tão desprovido de disfarces que talvez ganhasse um tom quase romântico, não fosse tão descaradamente contrário aos interesses e necessidades da nação. A coisa pública é moeda de troca, em nome de uma reforma que não se discute minimamente com a esfera pública – mas que é tão importante para o governo que justifica a chantagem aos governos estaduais, com direito a recado direto diante das câmeras e microfones. E note-se que o nobre ministro não fala em “governos estaduais”, mas sim em “governadores” – ou seja, um diálogo de indivíduos políticos em meio a uma disputa política, não de representantes eleitos de amplas fatias da população.
.
É bem mais do que sintomático que a interlocução política do governo Temer esteja nas mãos desse senhor
.
Afinal, só quem passou os últimos meses em Júpiter deixou de ver a falta de finesse com que se negociou a derrubada das duas denúncias contra o homem sentado no trono do Planalto – um descompromisso com a decência que continuará a ser útil enquanto mais uma reforma que jamais se discutiu em lugar algum estiver pendente. E, na medida em que o discurso perde o caráter de convencimento e se torna apenas pro forma (ou alguém acha que Temer queria mesmo convencer a população em seu pronunciamento de Natal, quando falou que está “mais barato para viver” no País?), os ratos ficam à vontade para mostrar o focinho, o ataque ao butim passa a prescindir dos salamaleques. Com a Era do Grande Acordo Nacional (mais a respeito disso em um futuro artigo) mais consolidada do que nunca, não há mais preocupação nem necessidade de disfarçar a chinelagem.
A batalha contra a corrupção acabou. E foi o sistema quem venceu
Igor Natusch
18 de outubro de 2017
Brasília - Senador Aécio Neves retoma as atividades parlamentares no Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A decisão do Senado de devolver mandato a Aécio Neves, mesmo com as volumosas e graves denúncias que o atingem, é desoladora para a política brasileira em diferentes níveis. A partir dela, consolida-se de vez uma leitura que já era possível antes, mas que agora torna-se inescapável: o lado corrompido do sistema político saiu do córner, a suposta luta contra a corrupção subiu no telhado e a lei, aquela mesma que o título do filme ufanista e delirante diz que é para todos, segue sendo uma gripe que pega em alguns, mas contra a qual outros estão permanentemente vacinados.
Muito se falou – e com plena justificativa – no esdrúxulo voto final da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, dando aos parlamentares a prerrogativa de derrubar as medidas cautelares que afastavam Aécio do Congresso. Foi um voto gaguejante, tropeçando na própria falta de convicção, e nem poderia ter sido diferente: ficou claro que nisso votou porque assim precisava votar, e nada mais. O Supremo contradisse sua própria leitura nos casos de Delcídio do Amaral e Eduardo Cunha – e, como bem apontado por Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha, a diferença entre antes e agora é que o PT não é mais governo, a maré virou e a direita fisiológica retomou as rédeas das instituições, controlando-as novamente a seu bel prazer.
.
Falta respaldo ao STF para peitar o grupo que hoje detém o poder político: na mídia, nos supostos movimentos contra a corrupção, nas multidões que hoje não se preocupam mais em ir às ruas
Respaldo que sobrava quando o PT tinha o governo em mãos
.
Tergiversações possíveis são muitas, mas os fatos estão na mesa, e não irão embora tão facilmente. Cármen Lúcia, que não é tola, percebeu isso, e preferiu ajudar a concretizar a profecia de Romero Jucá a declarar uma guerra que tinha pouca esperança de vencer.
.
A corrupção nunca foi o problema; de fato, muitos desejam que continue sendo a solução
.
Para esses núcleos, a eleição de Dilma era inaceitável desde o início, e a constatação nada tem a ver com simpatia pelo (muito ruim) governo da presidente deposta: é simples questão de desejar o poder de volta, depois de um empréstimo que havia sido vantajoso para todos, mas passava a ser cada vez mais difícil de sustentar. Ter o poder era importante, para fugir da cadeia e para garantir a benevolência dos detentores do poder econômico. Lançado o governo petista aos leões, e imolados os nomes com os quais a estabilidade seria mais difícil, a briga da nova aliança passou a ser jogar panos quentes na dita moralização do país. Assim foi feito. E o cafuné na cabeça de Aécio é só uma das manifestações mais visíveis desse grande e, até o momento, muito bem-sucedido acordo.
.
Ler figuras importantes da Lava-Jato dizendo que a operação está sendo mutilada é um tanto tragicômico: estavam mesmo tão fascinados com as manchetes, tão absorvidos pela aura messiânica em torno de si próprios que foram incapazes de perceber que era justamente essa a ideia o tempo todo?
.
Alertas não faltaram. Ainda falta a condenação em segunda instância de Lula, o grande prêmio dessa cruzada pela justiça seletiva e o ato final que amarra várias pontas da trama: impede a única candidatura petista viável, satisfaz de vez as massas que associam todas as mazelas do Brasil ao PT, oferece um apoteótico ponto final a uma operação que fez muito, mas que o novo-velho poder fisiológico não deseja mais que avance um palmo sequer. Lula ser ou não culpado é o que menos importa nessa trama: estaremos todos purificados, reconciliados com a ideia de que a lei é mesmo para todos, prontos para recomeçar exatamente de onde se parou.
A narrativa dos que encontraram no impeachment de Dilma Rousseff uma chance de salvação estará encerrada, provavelmente com sucesso. E aos integrantes da força-tarefa restará o papel com o qual concordaram e do qual, hoje, reclamam sem grande convicção. Ou então adotar de vez novos papéis, como novos atores no espetáculo renovado do toma-lá-dá-cá.
.
Enquanto isso, os movimentos que nos queriam livres da corrupção seguirão gritando contra homens nus em museus, os patos gigantes seguirão desinflados, as panelas seguirão descansando nos armários das cozinhas, os editoriais seguirão tentando nos convencer que as coisas estão melhorando aos poucos
.
Sem ter motivos para temer a opinião pública, o fisiologismo viceja, como uma erva daninha que se favorece do sol depois da tempestade. Tudo mudou, e tudo segue igual – pelo menos até as eleições do ano que vem. E já estão trabalhando nisso, é claro. É assim que deve ser. Agora vai.
É sempre uma boa ideia votar em uma mulher – agora, mais do que nunca
Igor Natusch
9 de março de 2017
Se alguém eventualmente tem dúvidas de que as mulheres ainda precisam lutar, e muito, pela igualdade plena no Brasil, uma simples observação de nossas casas legislativas traz elementos incontestáveis nessa direção. No Congresso, apenas 55 dos 513 deputados federais são mulheres, o que dá pouco mais de 10% do total. No Senado, a situação é ligeiramente menos ruim, com 12 senadoras em uma casa de 81 representantes, quase 15%. Ainda assim, um desequilíbrio brutal, já que as mulheres são 51,4% da população brasileira. De acordo com o TSE, menos mulheres foram eleitas prefeitas em 2016, no comparativo com 2012 – mais um dado que demonstra, com clareza, como as mulheres estão sub-representadas em nosso sistema político. Votamos muito, muito pouco em mulheres no Brasil.
Muito disso, é claro, vem da permanência de algumas ideias no subconsciente do brasileiro. A mais forte delas, uma suposta incapacidade feminina em tomar as rédeas de empreendimentos coletivos e da própria vida – o que, na mente preconceituosa de muitos, deveria forçar a mulher a um papel de submissão aos homens. A resposta, caso assim não haja, será violenta. Ou alguém tem notícias de um homem defensor de Direitos Humanos no Congresso que seja tão brutalmente perseguido quanto Maria do Rosário – alvo de ataques misóginos por parte até de colegas parlamentares? Alguém imagina Michel Temer, mesmo com a popularidade cada vez mais baixa, sendo vítima de montagens ultrajantes e gritos de guerra sexistas como os que Dilma Rousseff teve que vivenciar até o impeachment, e que possivelmente enfrente ainda hoje por aí? Os ataques a essas e várias outras mulheres em posições de poder político trazem em si um elemento extra, também visível no baixo número de eleitas: o de que a mulher não deve estar lá, de que o lugar dela não é ali. Uma situação, diga-se, que ainda surge em outras esferas de poder, como o Judiciário. Como esperar que os direitos delas sejam devidamente apreciados em um panorama como esse?
As unidades da Casa da Mulher Brasileira, planejadas para serem espaços de acolhimento nas principais cidades do País, sofrem para sair do papel. A aplicação efetiva da lei do feminicídio vai se tornando uma possibilidade cada vez menos concreta. A mudança nas proibições ao aborto, então, nem se fala. Há uma cruzada conservadora em curso no país, e boa parte das ideias que alimentam essa chama são contrárias a qualquer esforço emancipatório feminino: desejam a mulher silenciada, submissa, aceita nos espaços de decisão apenas para dar amém aos homens, jamais para contestá-los. É um cenário grave. E muito embora o voto não seja quase nada sem as mobilizações crescentes da sociedade civil em nome dos direitos das mulheres, ele também cumpre o seu papel.
Vivemos tempos de absurdo na política brasileira, onde um auto-intitulado Partido da Mulher tem dois representantes em Brasília, entre titulares e suplentes (ambos homens) e a presidente nacional afirma categoricamente que a sigla não se identifica com as lutas feministas. Ainda assim (e justamente por isso), reforçar o potencial eleitoral das mulheres é uma necessidade urgente, caso nossa busca seja a de uma sociedade onde homens e mulheres ganhem o mesmo salário, trabalhem durante o mesmo período, tenham o mesmo acesso a direitos e esferas de atuação social e política. Você vota em mulheres, leitor(a)? Se não vota, ou nunca votou, recomendo pensar a respeito. Porque os números que você digita na urna, mesmo cobertos das melhores intenções, podem estar enchendo as assembleias e prefeituras de homens, brancos, heterossexuais e de bom poder aquisitivo – pessoas que não viram criminosos por nenhum desses motivos, mas que são provavelmente bem menos sensíveis aos seus problemas (ou os da sua mãe, irmã, avó, prima, namorada, esposa, amante, vizinha ou amiga) do que você gostaria.