Houve um tempo em que a negociação de recursos financeiros em troca de apoio político era uma operação discreta, até certo ponto constrangida – um procedimento padrão, é claro, mas que a decência recomendava que fosse feito longe dos holofotes e com o mínimo de estardalhaço. Mas, como bem sabemos, Brasília transformou-se em um deserto de posturas decentes, e Carlos Marun (PMDB-MS) é uma das figuras melhor adaptadas para a sobrevivência nesse terreno. Constranger-se não é com ele, como a dancinha da vitória na vergonhosa recusa da denúncia contra Michel Temer serve para demonstrar. Não surpreende, então, que seja agora ministro da Secretaria de Governo, adaptado que é a um terreno onde a chantagem e o fisiologismo são as bases da sobrevivência política.
Alguns governadores abriram o bico, revoltados com a exigência de que garimpassem votos a favor da reforma da Previdência entre deputados de seus Estados em troca de empréstimos da Caixa Econômica Federal. Um deles, o sergipano Jackson Barreto, foi explícito, nomeando Marun como responsável pelo recado: verba dos contratos, só depois da reforma passar no Congresso.
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Diante da grave acusação, Marun não titubeou. Achou um modo curioso de rebater a denúncia de chantagem: seguir chantageando, mas dizer que não é chantagem, e sim um procedimento absolutamente normal
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“O governo espera dos governadores que têm recursos a serem liberados uma reciprocidade no que tange a questão da Previdência”, disse ele, com a expressão plácida de quem diz que vai tomar um cafezinho no boteco da esquina. Rebatizou a chantagem como “ação de governo”, usando um pouco sofisticado jogo de palavras para dar continuidade à chantagem publicamente, em uma entrevista para grandes veículos de comunicação.
A liberação de verbas da Caixa é, de fato, uma ação de governo. Afinal, é parte das tarefas que se espera da União a elaboração de um plano nacional de desenvolvimento, que delimita as obras para as quais Estados e municípios terão recursos federais na mão.
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O que não é “ação de governo” é condicionar a liberação da bufunfa a ganhos políticos
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Por muitos motivos, mas especialmente porque essa grana não é do governante da vez: é um fundo de investimento que pertence ao conjunto da sociedade brasileira, que o alimenta com impostos e contas de FGTS. Embora a prerrogativa de gerenciar esse montante seja do governo federal, o procedimento deve levar em conta acima de tudo o benefício dos investidores, não a meta política da vez, seja ela qual for. Ou seja, definir para onde vai esse dinheiro é uma das tarefas mais importantes da União, algo que deve obedecer metas de longo prazo e ter como norte absoluto o desenvolvimento do País.
Nada disso, é claro, surge na fala de Marun. Nela, ouve-se apenas o escambo baixo e explícito, um toma-lá-dá-cá tão desprovido de disfarces que talvez ganhasse um tom quase romântico, não fosse tão descaradamente contrário aos interesses e necessidades da nação. A coisa pública é moeda de troca, em nome de uma reforma que não se discute minimamente com a esfera pública – mas que é tão importante para o governo que justifica a chantagem aos governos estaduais, com direito a recado direto diante das câmeras e microfones. E note-se que o nobre ministro não fala em “governos estaduais”, mas sim em “governadores” – ou seja, um diálogo de indivíduos políticos em meio a uma disputa política, não de representantes eleitos de amplas fatias da população.
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É bem mais do que sintomático que a interlocução política do governo Temer esteja nas mãos desse senhor
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Afinal, só quem passou os últimos meses em Júpiter deixou de ver a falta de finesse com que se negociou a derrubada das duas denúncias contra o homem sentado no trono do Planalto – um descompromisso com a decência que continuará a ser útil enquanto mais uma reforma que jamais se discutiu em lugar algum estiver pendente. E, na medida em que o discurso perde o caráter de convencimento e se torna apenas pro forma (ou alguém acha que Temer queria mesmo convencer a população em seu pronunciamento de Natal, quando falou que está “mais barato para viver” no País?), os ratos ficam à vontade para mostrar o focinho, o ataque ao butim passa a prescindir dos salamaleques. Com a Era do Grande Acordo Nacional (mais a respeito disso em um futuro artigo) mais consolidada do que nunca, não há mais preocupação nem necessidade de disfarçar a chinelagem.
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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
