Igor Natusch

Um governo de tarados

Igor Natusch
27 de abril de 2019

É tentador tratar os diferentes núcleos de interesse que constituem o governo de Jair Bolsonaro como uma coisa só. Uma inclinação que surge não só como atalho, mas também como reação: afinal, não é o que essas mesmas pessoas fazem o tempo todo, rotulando toda divergência como comunismo, todo conhecimento como libertinagem universitária, toda pauta identitária como ameaça à sociedade e à família?

Tentador, sim, mas equivocado e até mesmo contraproducente. O governo Bolsonaro está muito, muito longe de ser todo uma coisa só. E me parece que só é possível compreendê-lo minimamente (e, a partir disso, agir contra seus aspectos mais nefastos) reconhecendo as muitas distinções entre seus grupos, admitindo que estamos diante de uma geleia de motivações primárias e muitas vezes incoerentes entre si – mas que encontraram, na figura caricata de Jair Bolsonaro, um eficiente avatar coletivo.

O que não quer dizer, é claro, que nada aproxime esses núcleos. Estão, sim, unidos em vários aspectos.

O principal deles, penso eu, é a pressa.

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Talvez se possa dizer, em um resumo grosseiro, que se trata de um bando de recalcados. Não deixa de ser verdade, mas acho que outro termo define ainda melhor: penso que são, na verdade, uma legião de tarados.

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Não quero dizer, é claro, que são todos pervertidos sexuais. Alguns possivelmente sejam, e é evidente que questões de origem sexual estão no coração de boa parte das maluquices que temos testemunhado nos últimos tempos. Mas não quero brincar de psicanalista amador aqui. Me refiro à fixação doentia, que distorce o objeto da obsessão ao ponto de transformá-lo em monstruosidade intolerável – e que motiva o impulso incontrolável de reação, de confronto e, se possível, de destruição.

Como descrever, por exemplo, os discípulos de Olavo de Carvalho que querem “limpar” a educação brasileira? Pessoas forjadas no pleno desprezo às universidades supostamente apinhadas de comunistas, que defendem a necessidade de buscar o conhecimento fora do ambiente ideologizado da academia – e que, ao mesmo tempo, inventam títulos acadêmicos em um esforço de legitimação? Pessoas obcecadas em gravar cada ato de professoras e professores, resumindo os incontáveis problemas e carências das escolas brasileiras à atuação de doutrinadores desonestos contra crianças indefesas? Pessoas que não recebem o reconhecimento que consideram justo para sua suposta erudição e, como retaliação, atacam as faculdades que os rejeitam, querem extinguir os filósofos e sociólogos que se mancomunam para negar-lhes a glória? Não estamos nós diante de gente obsessiva, com recalques não resolvidos e que, agora, se apressa em eliminar o alvo ao mesmo tempo desejado e temido?

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Não são, por acaso, um bando de tarados?

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Não existe algo de tara em um ministro que, incapaz de disfarçar sua absoluta inaptidão para as relações internacionais, chega a convocar coletivas para enumerar suas ideias supostamente revolucionárias, ao mesmo tempo em que corre para deitar-se aos pés dos Estados Unidos como um cãozinho fiel? Não são, a seu modo, tarados os que loteiam o Ministério do Meio Ambiente para liberar a exploração irrestrita de recursos naturais, que aniquilam a Funai para lançar sobre os povos originários brasileiros a perspectiva de um genocídio ainda mais acelerado e brutal?

Não serão movidos por uma espécie de tara os que inserem na incontornável discussão sobre a Previdência maldades contra idosos em situação de miséria e trabalhadores rurais, para citar apenas dois casos? E não são tarados, mesmo que não sejam todos membros formais do atual governo, os que transformam a lei em salvação da alma nacional, os que fazem acusações a aplicam penas como se em missão divina, os que esperam que a lei se dobre à punição, e não o contrário?

Evidente que há muitas nuances e interesses atuando nesse cenário, e dizer que o Brasil está na mão de gente que só pensa na satisfação imediata de impulsos depravados seria cair no erro que coloquei lá no começo, de pegar uma etiqueta só e colocar em todos os produtos do estoque. Não existe uma só extrema-direita, e não existe só uma onda no mar reacionário, ainda que os efeitos terríveis sejam basicamente os mesmos. Mas não estariam juntos se algo não os unisse, e não é exatamente a família Bolsonaro que promove essa coesão, embora ela funcione bem como imagem pública e discurso catalisador.

Trata-se de um governo de tarados: cada um com um impulso diferente, mas todos consumidos pela mesma urgência, transformados em pelotão pela ânsia e pelo frenesi.

Foto: Divulgação / Governo Federal

Igor Natusch

Quando a chantagem vira “ação de governo”, é o Brasil que fica na pior

Igor Natusch
27 de dezembro de 2017
Brasília - O ministro da Secretaria de Governo da Presidência, Carlos Marun, fala à imprensa, após reunião com o presidente Michel Temer, no Palácio do Planalto (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Houve um tempo em que a negociação de recursos financeiros em troca de apoio político era uma operação discreta, até certo ponto constrangida – um procedimento padrão, é claro, mas que a decência recomendava que fosse feito longe dos holofotes e com o mínimo de estardalhaço. Mas, como bem sabemos, Brasília transformou-se em um deserto de posturas decentes, e Carlos Marun (PMDB-MS) é uma das figuras melhor adaptadas para a sobrevivência nesse terreno. Constranger-se não é com ele, como a dancinha da vitória na vergonhosa recusa da denúncia contra Michel Temer serve para demonstrar. Não surpreende, então, que seja agora ministro da Secretaria de Governo, adaptado que é a um terreno onde a chantagem e o fisiologismo são as bases da sobrevivência política.
Alguns governadores abriram o bico, revoltados com a exigência de que garimpassem votos a favor da reforma da Previdência entre deputados de seus Estados em troca de empréstimos da Caixa Econômica Federal. Um deles, o sergipano Jackson Barreto, foi explícito, nomeando Marun como responsável pelo recado: verba dos contratos, só depois da reforma passar no Congresso.
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Diante da grave acusação, Marun não titubeou. Achou um modo curioso de rebater a denúncia de chantagem: seguir chantageando, mas dizer que não é chantagem, e sim um procedimento absolutamente normal

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“O governo espera dos governadores que têm recursos a serem liberados uma reciprocidade no que tange a questão da Previdência”, disse ele, com a expressão plácida de quem diz que vai tomar um cafezinho no boteco da esquina. Rebatizou a chantagem como “ação de governo”, usando um pouco sofisticado jogo de palavras para dar continuidade à chantagem publicamente, em uma entrevista para grandes veículos de comunicação.
A liberação de verbas da Caixa é, de fato, uma ação de governo. Afinal, é parte das tarefas que se espera da União a elaboração de um plano nacional de desenvolvimento, que delimita as obras para as quais Estados e municípios terão recursos federais na mão.
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O que não é “ação de governo” é condicionar a liberação da bufunfa a ganhos políticos

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Por muitos motivos, mas especialmente porque essa grana não é do governante da vez: é um fundo de investimento que pertence ao conjunto da sociedade brasileira, que o alimenta com impostos e contas de FGTS. Embora a prerrogativa de gerenciar esse montante seja do governo federal, o procedimento deve levar em conta acima de tudo o benefício dos investidores, não a meta política da vez, seja ela qual for. Ou seja, definir para onde vai esse dinheiro é uma das tarefas mais importantes da União, algo que deve obedecer metas de longo prazo e ter como norte absoluto o desenvolvimento do País.
Nada disso, é claro, surge na fala de Marun. Nela, ouve-se apenas o escambo baixo e explícito, um toma-lá-dá-cá tão desprovido de disfarces que talvez ganhasse um tom quase romântico, não fosse tão descaradamente contrário aos interesses e necessidades da nação. A coisa pública é moeda de troca, em nome de uma reforma que não se discute minimamente com a esfera pública – mas que é tão importante para o governo que justifica a chantagem aos governos estaduais, com direito a recado direto diante das câmeras e microfones. E note-se que o nobre ministro não fala em “governos estaduais”, mas sim em “governadores” – ou seja, um diálogo de indivíduos políticos em meio a uma disputa política, não de representantes eleitos de amplas fatias da população.
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É bem mais do que sintomático que a interlocução política do governo Temer esteja nas mãos desse senhor

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Afinal, só quem passou os últimos meses em Júpiter deixou de ver a falta de finesse com que se negociou a derrubada das duas denúncias contra o homem sentado no trono do Planalto – um descompromisso com a decência que continuará a ser útil enquanto mais uma reforma que jamais se discutiu em lugar algum estiver pendente. E, na medida em que o discurso perde o caráter de convencimento e se torna apenas pro forma (ou alguém acha que Temer queria mesmo convencer a população em seu pronunciamento de Natal, quando falou que está “mais barato para viver” no País?), os ratos ficam à vontade para mostrar o focinho, o ataque ao butim passa a prescindir dos salamaleques. Com a Era do Grande Acordo Nacional (mais a respeito disso em um futuro artigo) mais consolidada do que nunca, não há mais preocupação nem necessidade de disfarçar a chinelagem. 
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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil