Meter tiros em ônibus no meio da estrada não é uma questão de debate político: é um caso de polícia. É coisa de jagunços, de coronéis do interior, de bandidos. Atirar contra um dos ônibus da comitiva de Lula na Região Sul constitui um atentado, e os envolvidos precisam ir, todos, para a cadeia. Nenhuma diferença faz se Lula está condenado em segunda instância: dar tiros em veículo transportando um condenado é crime do mesmo jeito. Já íamos mal com apedrejamentos, bloqueios para evitar que a comitiva entrasse em municípios, ameaças a jornalistas, agressões e tudo mais. Com os balaços, descemos ao nível da imundície e da infâmia. Relativizar isso – ou as graves ameaças contra o ministro Edson Fachin, para citar outro exemplo – é ser tosco e estúpido, é perder completamente a civilidade. É colocar-se, intelectualmente falando, abaixo dos animais de fazenda.
Mas esse crime, embora crime seja antes de tudo, tem um elemento político indiscutível. Demonstra, de forma escancarada, como nosso ambiente democrático degradou-se ao ponto da intolerância xucra e bestial. E deixa claro, em diferentes ângulos, que o fair play político já era no Brasil, com consequências nefastas que recém estamos começando a vivenciar
Para que a política institucional funcione, é preciso que certas regras sejam levadas a sério. Nunca será um jogo limpo, e interesses poderosos sempre estarão influenciando todos os movimentos: isso é notório, e não é a esse aspecto que me refiro. Mas é preciso, no mínimo, acreditar que o jogo vai ser limpo. Alguns freios comuns precisam existir, senão não existe jogo, nem tabuleiro, nem nada.
Esse acordo de cavalheiros não existe mais. Já vinha deteriorando desde bem antes do impeachment de Dilma Rousseff, mas desde que ele se tornou realidade – e não pelo impedimento em si, mas pelo modo como foi conduzido – o processo acelerou de forma desoladora
Quando o lado que perde a eleição não reconhece que deve ser oposição, um equilíbrio fundamental se desfaz. Basta lembrar dos pedidos de recontagem de votos, feitos pela candidatura de Aécio Neves logo após o segundo turno da eleição (e sem nenhum fiapo de suspeita concreta, vale lembrar) para perceber que o resultado da urna nunca foi aceito e que nasce ali, e em nenhum outro ponto, a ideia de tirar Dilma da presidência. Ou alguém dirá que a denúncia veio antes da vontade de encontrá-la, alguém terá esquecido como se tateou, de acusação em acusação, até encontrar uma que tivesse o mínimo de solidez? Some-se essa recusa em aceitar a derrota a um temor coletivo da classe política acossada pela Lava-Jato e surge um cenário onde cavalheiros atraiçoam uns aos outros e o tabuleiro é chutado para longe, sem cerimônia.
Aponto essas coisas não para lamentar a saída da ex-presidente em si, mas para frisar a gravidade do abalo que o processo atabalhoado de sua derrubada acabou gerando. Do ponto de vista estritamente institucional, foi um desastre.
Em um cenário que já era de acirramento, o impeachment liberou o dedo no olho, a cusparada na cara. Uma situação explosiva, ainda mais grave na medida em que o ódio foi transformado, de forma doentia e irresponsável, em arma política.
Quando a senadora Ana Amélia Lemos, de modo chocante e irresponsável, parabenizou atos de pura violência contra a caravana de Lula (que depois, frisemos, ela tratou de minimizar como “força de expressão”), ela reproduziu, em termos próprios, essa sensação de que o dedo no olho está liberado. Quando, anteriormente, a senadora Gleisi Hoffmann disse que haveria “muitas mortes” caso prendessem Lula, também amplificava esse sentimento. Se o golpe de relho for nas paletas dos opositores políticos, tudo bem; se prenderem um dos meus, não se surpreendam se tiver sangue. Isso para não mencionar o governador paulista e presidenciável Geraldo Alckmin, que achou por bem dizer que o PT e Lula “colhem o que plantaram” quando levam tiros na estrada. Uma fala desastrosa, pois nenhum posicionamento civilizado sobre uma tentativa de homicídio pode começar por qualquer outro ponto que não seja a condenação imediata, enfática e sem ressalvas de semelhante absurdo.
São falas e ações que, vindas do ambiente político, são profundamente preocupantes, simplesmente porque legitimam o ódio e a deslealdade contra o opositor político. Quando todas as instituições fraquejam e os líderes políticos não se constrangem com a infâmia, o que se pode esperar de quem pouco ou nada entende de política, pouca ou nenhuma base intelectual tem para interpretar e enfrentar semelhante caos? Quando até os nossos maiores representantes dizem que o jogo institucional não vale nada, como se pode esperar que os mais xucros entre nós respeitem suas regras? Resta a nós um mergulho nessa piscina de pesadelo, onde uma vereadora é metralhada e hordas se dedicam a caluniar seu cadáver, onde metem tiros em um ônibus que carrega ex-presidente e se diz que é bem feito, onde a família de um ministro do STF é ameaçada de morte e há quem dê risada.
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Do relho, já chegamos no tiro – e agora,
quão mais baixo podemos afundar?
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Há muitos, muitos outros aspectos que se poderia analisar no gravíssimo momento que vivemos. Por enquanto, fico nesse. Quem poderia dizer para baixarmos a bola está encorajando o carrinho desleal. Não há perspectiva positiva, menos ainda com a decisão sobre a prisão de Lula batendo à porta. A violência virou argumento, tanto nas redes sociais quanto nos palanques, e nos resta esperar que os incitadores da pancadaria respondam, em algum momento, por sua irresponsabilidade.
Foto: MST Brasil / Divulgação
