Reporteando

O feminismo na vanguarda contra o fascismo

Évelin Argenta
26 de setembro de 2018

A socióloga e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano, avalia que o ódio virou uma moeda de troca importante no campo político atual.  Segundo ela existe um uso eleitoral do ódio, já que o “ódio potencializado” é um caminho às urnas.  A pesquisadora espanhola é autora de estudos sobre o que pensam os eleitores do capitão reformado do Exército e deputado federal, Jair Bolsonaro.  Ao comentar seu novo livro “O ódio como política”, lançado pela editora Boitempo, Esther ainda falou sobre o “risco real” de fascismo no Brasil e na vanguarda da luta das mulheres contra esse sistema. Confira a entrevista. 

*Originalmente a conversa foi veiculada pela Rádio CBN.  A entrevista foi realizada em parceria com os jornalistas Roberto Nonato e Kennedy Alencar. 

 

Estamos em uma fase onde o ódio está cada vez mais presente na sociedade?

O que o livro quis fazer é justamente chamar atenção para essa presença de ódio como uma moeda de troca importante no campo eleitoral e no campo político. Vivemos no Brasil em uma sociedade que se constrói muito na ideia do ódio, do machismo, do racismo, da desigualdade. O que vemos hoje é uma politização do discurso de ódio, uma “eleitorização” do discurso de ódio e ódio polarizado, pois ele é um bom caminho para as urnas.

 

O candidato Jair Bolsonaro (PSL) é que mais recorre a esse tipo de discurso. O que explica o crescimento desse discurso de ódio e da extrema-direita no Brasil?

Eu sempre digo que a candidatura da extrema-direita brasileira, de forma geral, se constrói sobre três “antis”. A primeira delas é a politização da antipolítica, que é aquele sentimento de “são todos iguais, todos corruptos”. A segunda é a negação do petismo e da esquerda. Existe um discurso muito forte de combate á esquerda e ao campo progressista e intelectual. E, por fim, há uma reação muito forte aos movimentos identitários, onde ganhou força o discurso antifeminista, movimento negro, movimento LGBT, colocando esses movimentos como culpados pela diferenciação social tão grande que existe nas relações sociais no Brasil.

 

Antes de passar por governos alinhados socialmente à esquerda, o Brasil passou por governos alinhados social e economicamente à direita.  Por que esses discursos de ódio não surgiram antes? Existe um fator econômico no ódio?

Sem dúvida. Existe hoje um realinhamento de uma força neoconservadora e intolerante no campo dos valores e uma força econômica liberal ou ultraliberal. A candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) é altamente simbólica nisso. Ele é um personagem construído nessa ideia dos valores, da família cristã, do militarismo, mas atrás da candidatura dele está o Paulo Guedes, que é uma pessoa que simboliza esse liberalismo ,a privatização e esse capitalismo mais selvagem. Existe um casamento obviamente oportunista aí. Só que as pessoas não são conscientes disso. Quando você pergunta para eleitores da extrema-direita sobre economia, ele não é consciente desse discurso neoliberal que está por trás, já que ele é tratado de forma escondida, às escuras.

 

Essa percepção vai além do Brasil em uma espécie de onda global?

Se dúvida. Globalmente existe um ressurgimento dessa extrema direita e isso é uma coisa que, efetivamente, você vê em países da Europa, América Latina e Estados Unidos. A diferença no Brasil e o que me preocupa bastante é que normalmente nos países europeus a retórica dessa extrema-direita se constrói com base no inimigo externo, no imigrante ou no refugiado. No Brasil existe uma peculiaridade. Essa retórica na extrema-direita se constrói com base em um inimigo interno. Então aqui a luta é contra o jovem negro da periferia, contra a feminista, contra o professor, contra a pessoa da esquerda. Existe uma violência contra o próprio brasileiro que é considerado como um “não cidadão de bem”

 

Nos últimos tempos a palavra fascismo vem sendo dita com uma frequência muito grande. Em alguns momentos , até, corre-se o risco de esvaziar a palavra de significado. Existe um risco real de fascismo no Brasil?

Sem dúvida. E nesse caso é importante contextualizarmos o que significa fascismo. Muitas pessoas confundem fascismo com uma certa política adotada em determinado momento histórico, fundamentalmente na Europa. Mas o fascismo na sua concepção política e filosófica mais ampla é o silenciamento, aniquilamento do outro que é considerado diferente. É uma política que mobiliza o ódio, que utiliza o ódio como mobilizador para fazer política. Então quando você tem candidatos que são abertamente xenofóbicos, misóginos, que dizem que “bandido bom é bandido morto”, esse é um discurso claramente fascista. O que não quer dizer que todo mundo que vote nesse tipo de pessoa seja fascista. Há pessoas que votam por outros fatores, como a descrença na política. Mas essa tendência política pode, sim, ser nomeada dessa forma.

 

Se o candidato Jair Bolsonaro for eleito, esse movimento terá no presidente da república o seu líder. No entanto, se ele perder a eleição quem ficaria nesse grupo de direita?  A senhora vê uma retomada desse eleitorado pelo PSDB ou pelo João Amoêdo, do Partido Novo?

Por um lado existe um certo paradoxo, pois você tem uma “bolsonarização” da esfera pública. Se o Bolsonaro não foi eleito o que fica capilarizado na esfera pública é esse discurso de ódio, da intolerância, do antipetismo, da moralização do debate público. Agora, ele é um candidato que não tem um partido político com estrutura, é isolado politicamente. Eu não vejo nesse momento uma estrutura político-partidária, institucional que consiga capitalizar esse discurso de ódio a ponto de você ter, de fato, uma estrutura forte ou competitiva como você tem na França. Mas isso é secundário, pois quando você já tem essa bolsonarização do debate na sociedade é questão de tempo para eles encontrarem outros tipos de canalizações. Temos que atacar esse discurso no campo social para que ele não extrapole o campo político.

 

Nos últimos dias vimos o crescimento de um movimento muito forte de mulheres que se opõem ao candidato Jair Bolsonaro. É um movimento que surgiu na internet, mas que já vem sendo usado de forma partidária por outros candidatos. Já havíamos presenciado algo parecido na história recente? Qual a dimensão desse movimento fora das redes sociais?

Já tivemos movimentos parecidos encabeçados por mulheres quando elas encabeçaram a oposição ao Eduardo Cunha, na questão da descriminalização do aborto. Uma coisa muito importante é que a internet tem sido um ambiente muito colonizado ultimamente pelo pensamento feminista. Houve o movimento #meuprimeiroassedio, #agoraéquesãoelas, etc. Esse movimento Mulheres Contra Bolsonaro ele é extraordinário por vários fatores. Primeiro que o voto feminino vai ser determinante nessa eleição, também pelo fato de as mulheres serem claramente atacadas pelo discurso de ódio (estamos na linha de frente dessa luta) e também em função de outros grupos terem se juntado a isso. Temos agora os LGBT Contra Bolsonaro, Negros Contra Bolsonaro, Evangélicos Contra Bolsonaro. Você vê que no campo do social, do coletivo e das ruas o feminismo é muito forte. Ele tem potencial para criar uma frente contra o fascismo. Acho que a onda de feminismo brasileira é a vanguarda da luta contra o fascismo. Somos nós, mulheres, que temos mais dificuldades para entrar na política. Então acho simbólico que sejam as mulheres a tomar a frente desse movimento.

Ouça a entrevista na íntegra

 

Voos Literários

O poder feminino na decisão eleitoral #elenão

Flávia Cunha
25 de setembro de 2018

Se o direito de falar, de ter credibilidade, de ser ouvido é uma espécie de riqueza, essa riqueza agora vem sendo redistribuída. Por muito tempo houve uma elite com audibilidade e credibilidade e uma subclasse de destituídos de voz. Com a redistribuição da riqueza, a perplexidade e a incompreensão afloram incessantemente. […] Essas vozes, ouvidas, subvertem as relações de poder.”

O trecho acima, do ensaio Uma Breve História do Silêncio, um dos capítulos do livro A Mãe de Todas as Perguntas, da autora feminista Rebecca Solnit, pode ser usado como uma analogia à tentativa de hackear o grupo do Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro (que conta hoje com cerca de 3 milhões de participantes). A iniciativa de cunho apartidário incomodou  seguidores do candidato à presidência pelo PSL. Houve, então, a invasão hacker ao grupo, logo revertida pelas administradoras. Depois, tentou-se desqualificar a iniciativa, com afirmações inverídicas de que havia sido comprado um grupo já existente e simplesmente havia sido trocado seu nome.

A verdade é que a tentativa de silenciamento não deu certo e a campanha #elenao ganhou adesão de mulhereres famosas e começa a ter engajamento no Exterior, adaptada para #nothim. Mas o que significa mulheres de diferentes partidos e ideologias estarem unidas contra uma determinada candidatura? De acordo com os eleitores de Bolsonaro, essa seria uma reação de mulheres feias, peludas e mal-amadas. Tanto é que, às pressas, foram criados grupos femininos de apoio ao candidato, em que os atributos físicos das participantes são exaltados, como se isso tivesse alguma importância dentro de um debate complexo que envolve riscos à democracia.

O movimento #elenão sem dúvida é feito por feministas, mulheres a favor de direitos iguais entre homens e mulheres e é uma contraponto direto ao discurso misógino e propagador da violência feito por Bolsonaro e seu vice general Mourão. Mas, como bem lembra a autora Rebecca Solnit, os homens também são vítimas do machismo patriarcal, sendo silenciados no que diz respeito a poderem demonstrar fraquezas e expor sentimentos:

A masculinidade é uma grande renúncia. O cor-de-rosa é apenas uma miudeza, mas meninos e homens bem-sucedidos renunciam a emoções, à expansividade, à receptividade [….] e homens que ocupam áreas masculinizadas – esportes, Forças Armadas, trabalhos exclusivamente masculinos como construção ou extração de recursos minerais – muitas vezes precisam renunciar a outras coisas mais. […] No mainstream heterossexual, as mulheres ficam com a tarefa de portar e expressar emoções pelos outros.”

O discurso que flerta com o fascismo e o ódio a mulheres, gays, negros e indígenas não está sendo combatido apenas pelas feministas. Um manifesto assinado por empresários e artistas famosos como Caetano Veloso ganhou visibilidade nos últimos dias. Quem sabe com isso uma candidatura perigosa para os rumos da nossa frágil democracia possa ser esvaziada.

Entre meus motivos para dizer “Ele Não” estão relativizar a tortura e a perseguição política ocorridas durante o regime militar, propagar fake news e destilar aos quatro ventos falas repletas de misoginia, racismo e homofobia. Por isso,  me juntarei a milhares de mulheres em um protesto  marcado para esse sábado em diversas capitais brasileiras e também no Exterior. Não nos calarão!

 

 

Reportagens Especiais

Eleições 2018 . Manuela D’Ávila – Pela primeira vez, o feminismo em foco

Colaborador Vós
19 de junho de 2018

Não é segredo para ninguém o fato de que as mulheres são, em número, pouco representadas na política brasileira. Se tomarmos o Congresso Nacional por referência, a discrepância na participação fica bastante óbvia. Das 513 cadeiras na Câmara dos Deputados, apenas 54 são ocupadas por mulheres. O número corresponde a 10,5% do total. Isso em uma realidade em que nós, mulheres, somos maioria. Aliás, segundo o IBGE, há cerca de 7 milhões de mulheres A MAIS que homens no Brasil. A dificuldade de fazer política em uma sociedade machista, porém, não impede que mulheres corajosas participem do processo eleitoral e disputem a presidência. Mulheres concorreram nos dois últimos pleitos e Dilma Rousseff (PT) venceu nas duas ocasiões. Mesmo assim, somente agora, com Manuela D’Ávila, (PCdoB) o feminismo entra na pauta desde o início e sem eufemismo. É a primeira vez que uma candidata trata do tema como central e fundamental para todas as outras discussões. É importante lembrar queLuciana Genro (PSOL), em 2014, falou abertamente sobre temas como a descriminalização do aborto e outros pontos da pauta, tanto que se intitulava como a primeira candidata feminista e estava certa. Mas a aproximação com o movimento aconteceu de forma mais intensa na reta final da campanha e não era o foco das propostas.

A reportagem que segue foi escrita pelo jornalista Douglas Cauduro, direto de Florianópolis, e é a primeira de uma série sobre os candidatos à presidência nas Eleições de 2018. Uma série com o objetivo de compreender o que norteia as campanhas que serão apresentadas em breve aos eleitores.

Geórgia Santos, editora

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Por Douglas Cauduro, de Florianópolis

Uma noite fria em Florianópolis, o termômetro marcava 13 graus. Mantas, toucas e casacos eram parte da indumentária dos que ouviam atentamente a pré-candidata do PCdoB à presidência da República, Manuela D’Ávila. O debate foi promovido pela Fundação Maurício Grabois e intitulado Brasil, as mulheres, as saídas para crise. “A Manuela vai atrasar um pouco; então, quando ela chegar, deixem ela subir direto ao palco, depois a gente pede para tirar foto e ter um contato mais de perto com ela”, solicitou a organizadora. Algumas faixas e cartazes não apenas decoravam o auditório do Espaço Físico Integrado (EFI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) como davam o tom da conversa que viria a seguir.

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“Manu 2018”

“Lute como uma Marielle Franco”

“A saída para crise é o povo no poder”

” Lute como uma garota”

Mulheres na política, mulheres no poder”

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As mulheres seriam o foco da discussão. O espaço, destinado a receber cerca de 200 pessoas, lotou, fazendo com que dezenas tivessem de assistir em pé ou sentados no chão. Manuela entrou às 18h53, – 23 minutos depois do combinado em função do atraso em uma entrevista. Caminhou sorridente, apressada. Olhou um carrinho de bebê e parou para dar atenção à mãe e ao recém-nascido.

Pediu para falar sentada. A gripe, fruto do impiedoso inverno gaúcho, foi responsável pelas diversas pausas. Manuela falou por cerca de 40 minutos para um público majoritariamente feminino e jovem. Foi interrompida apenas pelo mal-estar da garganta.

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O PCdoB não apresentava um candidato à presidência desde 1945, quando apostou em Iedo Fiúza, o terceiro candidato mais votado na ocasião – ficou atrás, apenas, de Eduardo Gomes (UDN) e Eurico Gaspar Dutra (PSD), eleito presidente. Também por isso, Manuela, que foi a vereadora mais jovem já eleita em Porto Alegre, não tinha tempo a perder. Anunciando que trataria do tema principal, disparou costurando os assuntos.

“Não tem como falar do Brasil sem falar de gênero e raça. O desenvolvimento do Brasil passa pelo enfrentamento das desigualdades. Qual é o impacto econômico das mulheres ganhando 20% a menos do que os homens? Qual é o impacto no Brasil em remunerar as nossas mulheres dessa forma? Existe como desenvolver um país sem paz? Eu acho que não. A política de segurança pública no Brasil é feita para salvar vida de branco. A política é exitosa para o branco. O ponto de partida precisa ser a desigualdade”, explicou. “O desenvolvimento passa pela unidade do povo.”

A uma plateia catarinense, a deputada federal mais votada em 2006 e 2010 no Rio Grande trouxe os números do estado vizinho para ilustrar uma realidade global. “O crescimento da economia, baseado nos números de Santa Catarina, não é um indicativo de diminuição da desigualdade. A maior diferença salarial do Brasil, entre mulheres e homens, é aqui. O número de feminicídio em Santa Catarina é o segundo maior do Brasil. É por isso que o nosso debate, pensando em sair da crise, tem que passar por raça e gênero”.

Manuela pontua a questão de gênero especialmente porque acredita que é um dos três componentes do golpe institucional que ocorreu no Brasil em 2016. “Nós temos uma eleição atípica. Sou jornalista, gosto de colocar nome nas coisas. Foi Golpe. O golpe é antinacional. Nós vimos um impeachment sem crime de responsabilidade. Por quê? Para os responsáveis não serem punidos. Esse projeto é o projeto de venda da Petrobrás, da Eletrobrás, é a reforma trabalhista, onde se trabalha mais e se ganha menos. É antinacional por terminar com a previdência pública. Outra questão, ele é antidemocrático, porque não existiu crime de responsabilidade e estão retirando Lula da eleição. O golpe é um ato contínuo, vemos isso como ativismo judiciário, na criminalização dos movimentos sociais. A terceira característica está no discurso utilizado para legitimar o impeachment. O golpe foi misógino, o discurso foi machista. Uma revista semanal disse que se a Dilma tivesse um namorado, a economia do Brasil estaria melhor. Vincularam a sexualidade da Dilma com a economia. O ódio com as mulheres ficou muito evidente”.

A primeira mulher a concorrer à presidência da República foi Lívia Maria Pio, do Partido Nacional (PN), em 1989. Houve mulheres nas duas eleições seguintes até que, em 2010, Dilma Rousseff, do Partidos dos Trabalhadores (PT), foi eleita para o cargo político mais importante do país. Dilma foi reeleita em 2014. Duas eleições em que não era a única mulher a disputar a vaga. Mesmo assim, é a primeira vez em que a mulher é pauta.

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É a primeira vez em que o feminismo está, sem eufemismos, no foco de atenção de uma candidata. 

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E abraçar a bandeira do feminismo é um dos motivos pelos quais Manuela vem ganhando espaço. “As mulheres são as mais afetadas com a crise do capitalismo, com a reforma trabalhista. A Emenda Constitucional 95, do Temer, afeta mais a mulher que o homem. A ausência do Estado faz com que as mulheres sofram mais. Nós vemos as mulheres cuidando da casa, dos filhos e ganhando menos”.

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A pré-candidata não só acusa, ela também propõe. “A resposta para o golpe deve ser nacional e de desenvolvimento”. Eleita deputada estadual no RS em 2014, novamente a candidata mais votada, ela alfineta os discursos liberais. “Qual o papel do estado? Até quando os liberais vão mentir que existem países desenvolvidos em que o estado não interfere? Qualquer país que se desenvolva tem estado atuando.”

Manuela D´Ávila não vê outra saída a não ser a de revogar a PEC do congelamento dos gastos públicos, da reforma trabalhista e na criação de uma reforma tributária, onde o pobre pague menos e o rico pague mais do que vem pagando. A pré-candidata não enxerga só a desigualdade como causadora da violência, mas o contrário também, com a violência sendo responsável pela desigualdade. “A pessoas que moram em comunidade não conseguem emprego por morarem em comunidade. As crianças que moram na região do tráfico, vão perder aula quando a escola estiver fechada por causa de tiro. O posto de saúde vai estar fechado pelo mesmo motivo”.

Defensora ferrenha dos Direitos Humanos, Manuela coloca o pobre como a grande vítima da guerra do tráfico. “Não existe policial rico. Vocês conhecem policial rico? O policial também é pobre. O nosso país é o que mais mata policial e é também o que a polícia mais mata”. Manuela já falava por 30 minutos. A garganta incomodava. Ela pediu desculpas e pegou uma bala de gengibre.

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“O Estado brasileiro precisa ser invertido: o Estado controla o nosso corpo e não cuida das coisas essenciais. E isso, a gente precisa cortar nesta eleição”

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O debate não aconteceu. Foi mais um manifesto do programa político e dos pensamentos da pré-candidata. Mas houve perguntas, nove perguntas sobre feminismo e crise.

“O povo na rua é o caminho para transformações profundas”, disse, elogiando as mulheres argentinas que estão abrindo caminho para legalização do aborto. “Todo debate para saída da crise precisa ser estruturado pelo nosso povo. Uma reposta precisa ser radicalmente democrática, nós precisamos ocupar o poder. Se eles querem menos democracia com o golpe, nós queremos mais democracia. Nossa resposta precisa ser feminista, porque nós, mulheres, somos a que mais sofremos com esse projeto. Eu ganhei uma camiseta, hoje, dizendo “ou a revolução será feminista ou não será”. O povo brasileiro é a minha razão de ser pré-candidata à presidência da República”.

Manuela encerrou o discurso e respostas às 21h01, aplaudida de pé, por 40 segundos. A pré-candidata feminista era cercada pelo calor público enquanto o vento gelado soprava lá fora. Manuela D’Ávila ganhou mimos, tirou fotos, distribuiu autógrafos e conversou de perto com eleitores e, principalmente, eleitoras.

Geórgia Santos

Guardem as flores, meninos – estejam ao nosso lado

Geórgia Santos
8 de março de 2018

Dia 8 de março é um dia poderoso e um tanto curioso. Mulheres são mimadas, paparicadas. Recebemos flores, um carinho aqui e acolá, um chocolatinho no restaurante, um abraço dos colegas de trabalho, mensagenzinhas pré-fabricadas e poeminhas medíocres espalham-se pelo Facebook. Obrigada. É gentil. Mas parem, não tem mais graça.

Não, não estou mal-humorada, apenas cansada. Exausta, eu diria. O Dia Internacional da Mulher não é uma data para celebrar nossa sensibilidade, nosso cuidado, nosso amor inato; não é uma data para celebrar nossa beleza, nossa vaidade, nossa feminilidade; não é uma data para agradecer a quem cuida da casa, dos filhos, da louça, da roupa, das plantas.

A ideia de um Dia da Mulher surgiu entre o final do século 19 e início do século 20, entre movimentos socialistas e operários, justamente no contexto das lutas femininas por melhores condições de vida e trabalho e pelo direito ao voto. Em 1975, o 8 de março foi adotado como Dia Internacional da Mulher pelas Nações Unidos com o objetivo de celebrar conquistas sociais, políticas e econômicas. Mas principalmente para lembrar o quanto ainda precisamos lutar. E aqui estamos nós, em 2018 e dadas as devidas proporções, lutando por melhores condições de vida e trabalho.

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Por isso, meninos, guardem as flores por hoje e estejam ao nosso lado

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Homens e mulheres são diferentes, sim, mas possuem as mesmas capacidades e habilidades. Homens não são superiores. Mulheres não são superiores. Homens e mulheres são equivalentes e precisam ser tratados como tal. O feminismo busca isso e tem espaço para todos os gêneros nesse movimento que, mesmo múltiplo e com muitas vertentes, luta por justiça e igualdade. E unidade é particularmente importante em um mundo em que as pessoas acreditam que ser feminista é sinônimo de recalque.

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“Feminismo é discurso de mulher macho recalcada, que fica se fazendo de vítima. Mulher tem as mesmas oportunidades que os homens e essas feministas ficam querendo botar as mulheres contra os homens”, dizia um comentário infame na nossa rede social favorita

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Vamos aos fatos

Dados do Fórum Econômico Mundial indicam que, no ritmo atual, precisará de um século para acabar com a disparidade entre homens e mulheres. Levará cem anos para que alcançar a igualdade de gênero tanto nas tarefas domésticas quanto no trabalho ou política. Precisa de mais motivos?

No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as mulheres tem nível de escolaridade mais alto, mesmo assim, recebem salários menores. Em média, 76,5% do salário dos homens. Ainda não se convenceu?

A cada dez minutos uma mulher é assassinada pelo parceiro (ou ex) no mundo. No Brasil, uma mulher é assassinada a cada duas horas apenas por ser mulher.

Então não, não estou mal-humorada, apenas cansada. Exausta, eu diria. O Dia Internacional da Mulher não é uma data para celebrar futilidades, é um dia para lembrar de todas as mulheres que sobreviveram à invisibilidade e foram rebeldes e desobedientes o suficiente para mostrar ao mundo que nós podemos fazer qualquer coisa. Porque nós podemos.

 

Foto: Pixabay

Voos Literários

O Dia da Mulher e as heroínas da vida real

Flávia Cunha
6 de março de 2018

O Dia Internacional da Mulher acaba favorecendo o protagonismo feminino na mídia. Tanto pela pauta de lutas por direitos das mulheres quanto por marcas e lojas tentando fazer “homenagens” – por vezes equivocadas. No meio literário, seguem as tentativas de reconhecimento das mulheres, como já escrevi aqui.

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O texto de hoje é mais um diagnóstico do apagamento de algumas mulheres em detrimento dos homens na literatura brasileira (e fora dela)

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Nessas investigações, cheguei ao ainda pouco conhecido Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis e publicado em 1859. É considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro. Foi escrito por uma mulher negra, em uma época em que poucas escritoras tinham vez na literatura nacional. Como deve ter sido a vida dessa escritora maranhense, falecida em 1917?

Dá para saber um pouco da trajetória dela através do livro Extraordinárias, Mulheres que revolucionaram o Brasil, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza. Resultado de uma pesquisa extensa, traz a história de cerca de 40 mulheres de diferentes épocas, do século 16 até a atualidade. Entre elas, a estilista Zuzu Angel, que lutou contra a ditadura militar; a guerreira negra Dandara; a atriz Leila Diniz, que subverteu a moral e os costumes da sua época; e Maria da Penha, que batizou uma das leis fundamentais dos direitos femininos atuais.

Na apresentação, as autoras comentam sobre a condição da mulher e o feminismo nos dias atuais:

“Cada mulher tem sua parte heroína. Enfrentar os preconceitos que mesmo no século xxi são tão presentes em nossa sociedade, dando conta também de tantos papéis e exigências, é, sem dúvida, prova de força. Prova. Essa palavra que nasce conosco e nunca nos abandona. Parece que temos de provar tudo a todos a todo momento, embora a gente saiba muito bem que ninguém nunca deveria ter de provar nada para garantir direitos iguais e respeito. Mas quem seria sua heroína? Não vale falar da Mulher-Maravilha, Jean Grey, Mulan, Katniss Everdeen, Beatrix Kiddo ou Trinity.

Queremos saber quem é sua heroína de verdade, de carne e osso, aquela que você admira, cuja história conhece, com quem se identifica. Joana d’Arc? Frida Kahlo? Marie Curie? Cleópatra? É fácil citar estrangeiras, mas onde ficam as brasileiras nessa lista? Sua inspiração é uma de nós? Na terceira onda do feminismo — ou quarta ou pós-feminismo, porque só o tempo dirá como ficarão conhecidos os dias atuais —, ainda parece difícil citar nossas guerreiras de ontem e de hoje, aquelas que, como nós, nasceram no Brasil ou decidiram viver aqui. E é por isso que escrevemos este livro.”

Dá para ler mais um trecho do livro aqui.

Outra publicação que vai destacar perfis de mulheres que revolucionaram o mundo deve ser lançada em breve pelo projeto As Minas na História. O livro será publicado em uma parceria com a Gibim Editora.

A foto desse texto são de ilustrações feitas especialmente para o livro Extraordinárias, Mulheres que revolucionaram o Brasil.

Geórgia Santos

A conversão do homem feminista

Geórgia Santos
29 de janeiro de 2018

Existe algo que se chama lugar de fala, um conceito que acaba com a mediação condescendente. As pessoas passam a ser representantes legítimas da própria luta, como deve ser. No caso do feminismo, o lugar de fala é da mulher. Em um mundo oprimido e espremido pelo machismo, no entanto, é um alento o encontro com um homem feminista. É um alento escutar um homem defendendo o direito de uma mulher a existir com liberdade e dignidade sem associá-la à histeria. 

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O problema é tratar o homem feminista como herói e não como parceiro

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No mês passado, viralizou o vídeo em que o apresentador e humorista John Oliver confronta Dustin Hoffman. O ator foi acusado de ter assediado sexualmente uma estagiária de 17 anos durante as filmagens de A Morte do Caixeiro Viajante, de 1985, e respondeu dizendo que aquele comportamento não reflete “quem ele realmente é”. Ao que Oliver disse: “É um reflexo de quem você era.”

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HOFFMAN: Você acredita nessas coisas que você leu?

OLIVER: Eu acredito no que ela escreveu, sim.

HOFFMAN: Por que?

OLIVER: Porque ela não tem motivo para mentir.

HOFFMAN: Bom, há um motivo para ela não ter falado sobre isso por 40 anos.

OLIVER: Ohhhh, Dustin!

Nesse momento, Oliver esconde o rosto com as mãos

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O Washington Post publicou o vídeo e, em questão de horas, a internet quebrou. Pipocavam incansáveis as mensagens parabenizando Oliver pela coragem de não ignorar algo tão grave. Muitas pessoas passaram a tratar o humorista como um herói feminista. Mas tão rápido quanto sua elevação de status dentro do movimento foi a queda do mito. Quase que instantaneamente alguém lembrou que o britânico tem uma equipe de redatores predominantemente branca e masculina. Mais do que isso, há o caso de 2010, em que Irin Carmon escreveu uma crítica feminista ao The Daily Showdizendo que as mulheres que trabalhavam no programa consideravam o ambiente hostil. Na época, Oliver diminuiu a crítica reduzindo a reclamação das mulheres a boatos, o famoso “é a minha palavra contra a delas.”

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A situação de Oliver mostra, em um episódio, dois problemas fundamentais de quando tratamos de homens e feminismo na mesma sentença

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De um lado, há o impulso de tratar como heróis os homens que se posicionam ao lado das mulheres; de outro, há a necessidade de isolar homens que deslizaram no passado. Quando falo em deslizes, falo de posicionamentos impregnados pela cultura do macho, não de atos criminosos.

O tratamento do herói é equivocado porque homens feministas são nossos aliados, nossos parceiros. Se a luta é por direitos iguais, tudo o que não queremos é a figura do príncipe encantado ao resgate. Isso não significa que o comportamento não mereça atenção ou cumprimentos. Merece. Mas homens em pedestal já temos o suficiente. Por outro lado, diminuir a importância da atitude de Oliver porque ele foi tosco há sete anos é tiro no pé. Porque partimos do princípio que os homens não são capazes de evoluir e, se o fizerem, nós não vamos aceitar.

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Ora, se a ideia é que a sociedade se torne menos machista, como é possível que isso aconteça sem “homens convertidos”?

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Além do mais, nós precisamos de todas as vozes que pudermos ter. Voltando ao exemplo de John Oliver, se uma mulher tivesse tentado confrontar Dustin Hoffman sobre o mesmo assunto, teria sido chamada de esquerdopata, feminazi, grosseira, difícil, histérica. Seria falta de profissionalismo, seria vitimismo, seria deselegante, seria mimimi. É claro que ele foi moldado dentro de um sistema machista em que homens são privilegiados. Ele compartilha das falhas desse sistema e reproduz padrões desse sistema, como o fez em 2010. Mas esse sistema não vai ser vencido sem que alguns dos homens desse mesmo sistema se revoltem e se deixem transformar.

Dizer o óbvio não deveria ser um ato de coragem, e sim a norma Mas enquanto não acontece, fico feliz de termos alguém como John Oliver ao nosso lado. Nós precisamos de homens que estejam dispostos a romper a zona de conforto dos espaços masculinos, que ajam publicamente para acabar com o assédio e o machismo normalizados em nossa cultura.

Geórgia Santos

Oprah e a luz no fim do túnel

Geórgia Santos
8 de janeiro de 2018
75th ANNUAL GOLDEN GLOBE AWARDS -- Pictured: Oprah Winfrey, Winner, Cecil B. Demille Award at the 75th Annual Golden Globe Awards held at the Beverly Hilton Hotel on January 7, 2018 -- (Photo by: Paul Drinkwater/NBC)

Ontem, o Globo de Ouro foi mais do que entretenimento. Muito mais. E especialmente ontem. No tradicionalmente glamoroso tapete vermelho, todos usavam preto e ninguém se atrevia a perguntar a procedência da roupa, apenas o motivo. No tradicionalmente fútil tapete vermelho, todos usavam preto como forma de protesto contra os casos de assédio e abuso sexual da indústria cinematográfica. No tradicionalmente colorido tapete vermelho, todos usavam preto para declarar que acabou o tempo (#TIMESUP) em que as mulheres se calavam diante da injustiça.

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E Oprah Winfrey personificou, imaculada, cada gesto dessa luta

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Agraciada com o prêmio Cecil B. DeMille, a apresentadora (e mil coisas mais) e primeira mulher negra a receber a homenagem usou o palco para falar de injustiça, desigualdade e do movimento #MeToo. Ela usou o microfone para amplificar a reivindicação de dignidade em um dos discursos mais impactantes dos últimos tempos. Falou sobre protagonismo negro, empoderamento feminino e liberdade de imprensa.

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Se há homens poderosos que tentam objetificar a mulher em cada gesto e fala, há Oprahs para lembrar que somos humanas e fortes

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Leia o discurso de Oprah Winfrey na íntegra:

 

“Em 1964, eu era uma menina sentada no chão de linóleo da casa da minha mãe, em Milwaukee, assistindo Anne Brancoft apresentar o Oscar de melhor ator, na 36ª edição do prêmio. Ela abriu o envelope e disse cinco palavras que, literalmente, fizeram história: “O vencedor é Sidney Poitier”. O homem mais elegante que eu já havia visto subiu ao palco. Eu lembro que sua gravata era branca e sua pele era negra, e eu jamais havia visto um homem negro ser celebrado daquela forma. Eu tentei explicar, muitas e muitas vezes, o que um momento daqueles representa para uma menina, uma criança que assiste à mãe passar pela porta morta de cansaço de tanto limpar as casas de outras pessoas.

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Mas tudo o que eu posso fazer é citar as palavras de Sidney em Uma Voz nas Sombras (Lilies of the Field), “Amem, amem. Amem, amem.”

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Em 1982, Sidney recebeu, aqui no Globo de Ouro, o prêmio Cecil B. De Mille. E eu não esqueci que neste momento há muitas garotinhas assistindo enquanto eu me torno a primeira mulher negra a receber esse mesmo prêmio. É uma honra. É uma honra e é um privilégio compartilhar essa noite com todas elas e também com os homens e mulheres incríveis que me inspiraram, desafiaram, apoiaram e tornaram minha jornada até este palco possível. Dennis Swanson, que apostou em mim para o talk-show “A.M. Chicago”. Quincy Jones, que me viu no programa e disse a Steven Spielberg, “ela é Sophia em A Cor Púrpura”. Gayle, que tem sido a definição do que é uma amiga, e Stedman, que tem sido minha rocha. Apenas alguns para nomear.

Eu quero agradecer à Imprensa Internacional de Hollywood, porque nós todos sabemos que a imprensa está sob cerco fechado ultimamente. Mas nós também sabemos que é a insaciável dedicação para descobrir a verdade que nos impede de fazer vista grossa para a corrupção e a injustiça. A tiranos e vítimas, e segredos e mentiras. Eu quero dizer que eu valorizo a imprensa mais que nunca ao passo em que tentamos navegar por esses tempos complicados. O que me traz à isso.

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O que eu sei, com certeza, é que falar a nossa verdade é a ferramenta mais poderosa que todos nós temos

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Eu estou especialmente orgulhosa e inspirada por todas as mulheres que se sentiram fortes o suficiente e empoderadas o suficiente para falar e compartilhar suas histórias. Cada um de nós nesta sala é celebrado por causa das histórias que contamos, e neste ano nós nos tornamos a história.

Mas não é apenas a história que afeta a indústria do entretenimento. É uma que transcende qualquer cultura, geografia, raça, religião, política ou ambiente de trabalho. Por isso eu quero, nesta noite, expressar minha gratidão a todas as mulheres que suportaram anos de abuso e assédio porque elas, assim como minha mãe, tem filhos para alimentar e contas para pagar e sonhos para perseguir. Elas são as mulheres cujos nomes nós jamais saberemos. Elas são as trabalhadoras domésticas e agricultoras. Elas estão trabalhando em fábricas e restaurantes e elas estão na academia, na engenharia, medicina e ciência. Elas são parte do mundo da tecnologia e da política e dos negócios. Elas são nossas atletas na Olimpíadas e são nossas militares. E há mais alguém. Recy Taylor, um nome que eu sei e acho que você deveria saber também.

Em 1944, Recy Taylor era uma jovem esposa e mãe. Ela estava voltando para casa após celebração na igreja que frequentava em Abbeville, Alabama, quando foi sequestrada por seis homens brancos armados, estuprada e deixada no acostamento de uma estrada com uma venda nos olhos. Indo para casa, depois da igreja. Eles ameaçaram matá-la caso contasse a alguém, mas a história foi reportada a NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), onde uma jovem trabalhadora que respondia pelo nome de Rosa Parks se tornou a investigadora principal do seu caso e, juntas, elas buscaram justiça.

Os homens que tentaram destruí-la jamais foram processados. Recy Taylor morreu dez dias atrás, a poucos dias do seu aniversário de 98 anos. Ela viveu como todos nós temos vivido, anos demais em uma cultura destruída por homens poderosos e brutais.

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Por tempo demais, mulheres não tem sido ouvidas ou acreditadas quando ousam falar a verdade ao poder desses homens. Mas o tempo deles acabou. O tempo deles acabou

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E eu apenas espero, eu apenas espero que Recy Taylor tenha morrido sabendo que a sua verdade, assim com a verdade de tantas outras mulheres atormentadas naqueles anos, e que ainda são atormentadas, segue marchando.

Estava em algum lugar no coração de Rosa Parks, quase onze anos depois, quando ela tomou a decisão de permanecer sentada naquele ônibus em Montgomery, e está aqui com cada mulher que escolhe dizer “Eu também” (Metoo). E com cada homem, cada homem que escolhe escutar.

Na minha carreira, o que eu sempre tentei fazer de melhor , seja na televisão ou em filmes, é falar algo sobre a maneira como homens e mulheres realmente se comportam. Falar sobre como nós experienciamos a vergonha, como nós amamos e como nos enfurecemos, como nós falhamos, como nos retiramos, perseveramos e como superamos.

Eu entrevistei e retratei pessoas que resistiram a algumas das coisas mais terríveis que a vida pode oferecer, mas a qualidade que todos parecem compartilhar é a habilidade de manter a esperança de uma manhã mais clara, mesmo durante as noites mais sombrias.

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Por isso eu quero que todas as meninas que estão assistindo aqui, agora, saibam que um novo dia está no horizonte!

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E quando esse novo dia finalmente amanhecer, será por causa de muitas mulheres magníficas, muitas das quais estão aqui nesta sala esta noite, e alguns homens fenomenais, que estão lutando muito para garantir que se tornem os líderes que vão nos levar a um tempo em que ninguém mais precise dizer “Eu Também”.”

 

Foto: Divulgação. Paul Drinkwater / NBCPAUL DRINKWATER/NBC

Voos Literários

Leituras para 2018 e uma retrospectiva de 2017

Flávia Cunha
26 de dezembro de 2017

2017 foi um ano “daqueles” para todos, eu imagino. Mas em vez de reclamar do que passou, vamos recorrer à literatura como uma forma de reagir ao momento sociopolítico conservador e tenso.

Para se inspirar com uma leitura, comece o novo ano com o novo romance da Carol Bensimon. Ela é uma das minhas escritoras favoritas pelo simples motivo de ser dona de uma escrita que me faz não querer desgrudar do livro até chegar em sua última página. Em O Clube dos Jardineiros da Fumaça , o protagonista é um professor de Porto Alegre que vai morar em uma região da Califórnia que concentra a maior produção de cannabis sativa dos Estados Unidos. Em pauta, a descriminalização da maconha, em um enredo que mistura realidade e ficção.

*Bônus Para quem não conhece o estilo da escritora, recomendo seu livro de estreia Pó de Parede.

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E agora, vamos a uma retrospectiva de textos, que podem ajudar a fazer o ano de 2018 mais literário e engajado

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Fevereiro – Dizem que o ano não começa antes do Carnaval. Nesse texto comentei sobre livros que tem a ver com a festa de Momo. Para quem não curte a folia, a leitura é sempre um  bom refúgio.

Março – O terceiro mês do ano é marcado pelo Dia Internacional da Mulher. Tem quem se contente com uma flor, mas o legal mesmo é apoiar a mobilização da mulherada nessa época do ano.  E respeitar as minas, sempre.

Abril – Primeiro de abril será a Páscoa em 2018, quando os adultos darão de presentes para a criançada muito chocolate. Mas e se ao invés disso, a opção for dar livros de presente? Aqui tem algumas sugestões de obras literatura infantil.

Maio – 2018 será um ano eleitoral, não podemos esquecer. E em maio acaba o prazo para regularizar o título de eleitor. Mas do que adianta ter esse documento em dia, se não houver uma consciência sobre os perrengues que estamos vivendo no Brasil? Esse texto pode ajudar em um reflexão sobre o assunto.

Junho – Esse também será um ano de Copa do Mundo. Se alguém por aí não é de futebol, não precisa se sentir mal. Eu, por exemplo, sou adepta do slogan da antiga MTV: desliga a TV e vai ler um livro.

Julho – Esse é um mês de férias de inverno para a criançada. E desculpem se posso parecer repetitiva, mas vale muito a pena incentivar a leitura dos pequenos.

Agosto – É o mês em que começará a propaganda eleitoral nas ruas e nos meio de comunicação. Como aguentar essa barra? Vamos de Caio Fernando Abreu que sempre dá certo.

Setembro – Eis que o nono mês chega, com aquele ufanismo do dia 7. Para quem anda meio sem vontade de compartilhar desse sentimento, recomendo esse texto sobre política e poder em um clássico literário.

Outubro – E chega o momento das eleições, em um cenário em que muita gente anda por aí defendendo a volta da ditadura. Nesse texto tem uma reflexão sobre porque devemos prezar a democracia, mesmo com seus percalços.

Novembro – Então, chegamos ao resultado das eleições. Desculpem parecer pessimista, mas o independente do resultado, o que deve rolar é o costumeiro “toma lá, dá cá”.

Dezembro – Mas não vamos desanimar. Para o último mês do ano, que tal um pouco de esperança, relembrando essa linda história da menina que salvou livros ao ter sua casa invadida pelas águas?

E em 2018 também terá novidades nessa singela coluna. Aguardem. Nos vemos no ano que vem!!

 

Tão série

The Handmaid´s Tale – Quando a ficção está muito perto da realidade

Geórgia Santos
2 de dezembro de 2017

Recomendar a série The Handmaids Tale ( O conto da Serva, em tradução livre) é um tanto desconfortável diante do contexto político no qual estamos inseridos. A obra da Hulu é uma adaptação do livro homônimo de Margaret Atwood, que apresenta um cenário distópico em que mulheres férteis são escravizadas por homens poderosos que as estupram com fins de reprodução.

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É quase cruel falar disso em um momento em que 18 homens tiram o direito de uma mulher abortar o fruto de um estupro

Mas é necessário

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The Handmaid´s Tale se passa em um futuro próximo no que é conhecido como a República de Gileade, uma teonomia cristã e militar que ocupa o que antes se conhecia por Estados Unidos da América. A nação é controlada por um grupo fundamentalista evangélico autointitulado “Filhos de Jacó”, que suspende a Constituição dos EUA com o pretexto de restaurar a ordem. O que vale, então, é a lei de Deus – o Deus no qual eles acreditam, no caso.

O novo regime se baseia na restauração, com o objetivo de reorganizar a sociedade americana em torno de um novo modelo totalitário e militarizado inspirado no Antigo Testamento. A sociedade é dividida em castas e os direitos das mulheres são retirados imediatamente – são, inclusive, proibidas de ler.

A produtora executiva da série, Elisabeth Moss, interpreta a narradora da história, a serva Offred, cujo nome significa literalmente Of-Fred. Ou seja, “De (propriedade de) Fred”. Ela faz parte de uma classe de mulheres que é mantida única e exclusivamente para fins reprodutivos, passando de senhor em senhor para procriar. Elas são crucias para a perpetuação da humanidade em um mundo em que a maioria das pessoas é estéril devido à poluição e doenças sexualmente transmissíveis.

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Trata-se de uma história em que as complexas camadas revelam as inúmeras formas que a opressão às mulheres pode assumir. Inclusive por mulheres

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Conforme a intimidade da protagonista é revelada, testemunhamos a viagem de Offred à lembrança de uma vida feliz em que podia ter uma conta bancária, em que podia usar a roupa que quisesse, conversar com quem bem entendesse. Ler. Mas também testemunhamos o egoísmo de Serena Joy (Yvonne Strahowski), a mulher que arquitetou a opressão – ela sempre acreditou que as mulheres deveriam servir.

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Eu só espero que qualquer semelhança seja mera coincidência

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O problema é que são coincidências demais. Basta acompanhar a TV Câmara para ver que a decisão sobre a saúde reprodutiva das mulheres já está nas mãos de homens. Neste mesmo canal, assistimos estes mesmos homens tomarem essas mesmas decisões com base em uma interpretação particular da Bíblia. Em qualquer comentário do Facebook há traços de repressão sobre o que uma mulher deve vestir ou como se comportar.

Aproveitemos, então, enquanto ainda podemos ler. É uma ótima oportunidade para compreender a importância do feminismo e da luta por direitos iguais. Da luta por uma vida decente.

Enquanto produto de entretenimento, apesar da bela fotografia e do suspense, é uma obra de linguagem arrastada por vezes, que atrasa o engajamento inicial. Mas é uma observação absolutamente pessoal, que resistiu à vontade de acompanhar aquela realidade tão distante e tão próxima. É uma produção importante e que deve ser vista. E que bom que eu insisti.

Toda mulher – e todo homem – precisa assistir ao que pode ser o nosso não tão impraticável futuro.

 

Imagens: Divulgação

Voos Literários

Não é fácil ser mulher. Mas a gente segue na luta.

Flávia Cunha
5 de setembro de 2017

Nos últimos dias, um nó na garganta me invade com o debate a respeito da decisão judicial sobre o caso da ejaculação em cima de uma passageira de um ônibus em São Paulo. Não foi constrangimento. Não foi? Nem entro no mérito do direito criminalista, que não domino, mas na sensação de revolta provocada pelo teor da sentença, escrita por um homem.

Évelin Argenta, uma das colaboradoras do blog Reporteando, comentou nesse baita texto sobre como é difícil tratar o assunto como pauta ao conversar com colegas do sexo masculino. Parece que existe uma barreira interna em grande parte dos homens, que faz com que esse tipo de assunto seja considerado apenas uma vitimização da condição de ser mulher, quando o papo é bem mais complexo do que esse.

No caso da literatura brasileira, o machismo não é de hoje. Lá em 1897, uma mulher ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras. Era a carioca Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida, uma ilustre desconhecida nos dias atuais. Apesar de ser uma escritora talentosa, foi barrada por ser mulher. Essa matéria aqui explica bem a situação, que está longe de ser mimimi. (Aliás, odeio esse termo, usado para tornar pejorativo causas essenciais nos dias atuais. Entre elas, o feminismo).

A aclamada escritora Lygia Fagundes Telles comentou, durante entrevista ao programa Roda Viva, que teve dificuldades de se impor no mundo da literatura por ser jovem e mulher. No início da sua carreira, ela relata que os comentários a seu respeito eram dirigidos à sua aparência e não à sua produção literária:

“Eu queria que me respeitassem e não respeitavam porque vinham com um negócio de beleza, eu ficava uma fúria, tá entendendo? Porque eu dizia: eu estou escrevendo tão bem e vocês não estão falando do meu texto, estão falando da minha cara. Isto me deixava muito infeliz e eu me sentia perseguida.”

Outra que sempre enfrentou barreiras na literatura foi Hilda Hilst. Nascida no interior de São Paulo, filha de pais separados, era extremamente anticonvencional para a época em que viveu. Na sua literatura, fez poesias “sérias” e literatura erótica, tachada por muitos de pura pornografia. Falecida em 2004, aos 74 anos, ela comentou muitas vezes sobre o assunto:

“Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam.”

O trecho acima de entrevista de Hilda à revista A-Z.

Mas como diz a bela canção interpretada por Maria Bethânia, “Não mexe comigo que eu não ando só”. A mulherada segue na luta, ainda precisando se fazer respeitar em suas áreas de atuação. Entre elas, a literatura, essa forma de arte tão menosprezada no Brasil.