Reporteando

A entrevista do Roda Viva é exemplo do que NÃO fazer

Geórgia Santos
26 de junho de 2018

Nos anos em que fui professora no curso de jornalismo da Famecos, adorava quando chegava o momento de abordar o tema “entrevista”. As cadeiras eram direcionadas para o radiojornalismo, mas uma boa entrevista é uma boa entrevista em qualquer meio e meus colegas professores e eu levávamos isso muito a sério. Afinal de contas, é a base de um jornalismo sólido e há métodos e técnicas a empregar para que ela seja bem conduzida.

À época, eu costumava recomendar que os alunos assistissem às entrevistas que David Frost realizou com o ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, em 1977. Após a renúncia de Nixon, o  jornalista britânico, até então famoso por programas de entretenimento, pagou para que o político concedesse entrevistas que seriam exibidas ao longo de quatro programas na televisão norte-americana. Aí já começa o problema. Afinal de contas, o pagamento indicaria o que se chama de jornalismo chapa-branca. Nenhum canal aceitou transmitir ou distribuir as entrevistas e Frost bancou do próprio bolso.

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A complexidade dessas entrevistas faz com que sejam exemplo do que NÃO FAZER  no jornalismo e, ao mesmo tempo, de JORNALISMO DE QUALIDADE

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O lance é que Frost estava mais preocupado com dinheiro do que com jornalismo e não se preparou para entrevistar Nixon, um político experiente e em domínio de sua retórica que pretendia usar as entrevistas para limpar o nome após o escândalo de Watergate. Lançando mão de tudo o que NÃO SE DEVE FAZER em uma entrevista, Frost foi engolido pelo republicano. Porém, como o próprio dinheiro estava em jogo, ele resolveu se preparar para a última entrevista. Sua equipe de produção descobriu fatos inéditos e Frost usou métodos eficazes. Como resultado, Nixon acabou admitindo a culpa e o jornalista entrou para a história. Além das imagens originais, o episódio foi imortalizado no filme Frost/Nixon, de Ron Howard.

Mas se a interação entre Frost e Nixon é um exemplo do ponto de vista técnico, a entrevista com Manuela D’Ávila no programa Roda Viva na noite de ontem (25) é um exemplo do que NÃO FAZER sob o ponto de vista ético e profissional.

Se Frost foi ineficaz, incialmente, porque não conseguia extrair informações de Nixon, alguns dos entrevistadores da pré-candidata do PCdoB à presidência da República foram levianos e irresponsáveis justamente porque não estavam interessados no que Manuela tinha a dizer.

Principalmente Frederico D’Ávila, um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro (PSL). A presença do diretor da Sociedade Rural Brasileira (SRB) foi absolutamente inadequada e suas perguntas absurdas e constantes interrupções deixaram isso bastante claro.

O aliado de Bolsonaro distorce fatos históricos já na primeira manifestação, ao alegar que o fascismo era um movimento de esquerda a partir de uma associação desconexa. Já na primeira manifestação, interrompe a entrevistada em seis momentos.

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O programa inteiro foi um festival de exemplos do que NÃO SE DEVE FAZER EM UMA ENTREVISTA

  • A pré-candidata foi constantemente interrompida, o que pode ser qualificado como o famigerado manterrupting – prática machista de interromper uma mulher quando ela está falando. Aliás, fica lançado um desafio a quem não acredita que isso exista: conte quantas vezes as mulheres são interrompidas e compare com os homens na mesma situação;
  • As repostas de Manuela D’Ávila eram ignoradas, especialmente pelo entrevistador já citado, que fazia “ganchos” e conexões livres, independente do que ela tinha a dizer;
  • As opiniões da entrevistada eram constantemente desqualificadas;
  • As propostas da pré-candidata foram ignoradas em diversos momentos em que se preferiu que focar a entrevista nas experiencias de Cuba e da União Soviética e em figuras como Lula, Maduro e até Stálin;

Infelizmente, a entrevista foi conduzida com um tom machista e foi inadequada do início ao fim. Uma cartilha para estudantes de jornalismo que, a partir deste exemplo, ficam sabendo o que não se deve fazer. E que não se exima a produção do programa, que ESCOLHEU convidar um aliado de Bolsonaro para entrevistar – ou sabatinar – uma pré.candidata. Já passaram pelo programa Alvaro Dias (Podemos), Marina Silva (Rede), Guilherme Boulos (Psol), João Amoêdo (Novo), Henrique Meirelles (MDB) e Ciro Gomes (PDT). Geraldo Alckmin (PSDB) será entrevistado em 30 de junho. Jair Bolsonaro (PSL) ainda não respondeu e, ao que tudo indica, não deve participar, já que anunciou que abre mão de participar dos debates eleitorais.

Confira aqui a íntegra da entrevista.

Foto: Reprodução / Facebook

Reportagens Especiais

Eleições 2018 . Manuela D’Ávila – Pela primeira vez, o feminismo em foco

Colaborador Vós
19 de junho de 2018

Não é segredo para ninguém o fato de que as mulheres são, em número, pouco representadas na política brasileira. Se tomarmos o Congresso Nacional por referência, a discrepância na participação fica bastante óbvia. Das 513 cadeiras na Câmara dos Deputados, apenas 54 são ocupadas por mulheres. O número corresponde a 10,5% do total. Isso em uma realidade em que nós, mulheres, somos maioria. Aliás, segundo o IBGE, há cerca de 7 milhões de mulheres A MAIS que homens no Brasil. A dificuldade de fazer política em uma sociedade machista, porém, não impede que mulheres corajosas participem do processo eleitoral e disputem a presidência. Mulheres concorreram nos dois últimos pleitos e Dilma Rousseff (PT) venceu nas duas ocasiões. Mesmo assim, somente agora, com Manuela D’Ávila, (PCdoB) o feminismo entra na pauta desde o início e sem eufemismo. É a primeira vez que uma candidata trata do tema como central e fundamental para todas as outras discussões. É importante lembrar queLuciana Genro (PSOL), em 2014, falou abertamente sobre temas como a descriminalização do aborto e outros pontos da pauta, tanto que se intitulava como a primeira candidata feminista e estava certa. Mas a aproximação com o movimento aconteceu de forma mais intensa na reta final da campanha e não era o foco das propostas.

A reportagem que segue foi escrita pelo jornalista Douglas Cauduro, direto de Florianópolis, e é a primeira de uma série sobre os candidatos à presidência nas Eleições de 2018. Uma série com o objetivo de compreender o que norteia as campanhas que serão apresentadas em breve aos eleitores.

Geórgia Santos, editora

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Por Douglas Cauduro, de Florianópolis

Uma noite fria em Florianópolis, o termômetro marcava 13 graus. Mantas, toucas e casacos eram parte da indumentária dos que ouviam atentamente a pré-candidata do PCdoB à presidência da República, Manuela D’Ávila. O debate foi promovido pela Fundação Maurício Grabois e intitulado Brasil, as mulheres, as saídas para crise. “A Manuela vai atrasar um pouco; então, quando ela chegar, deixem ela subir direto ao palco, depois a gente pede para tirar foto e ter um contato mais de perto com ela”, solicitou a organizadora. Algumas faixas e cartazes não apenas decoravam o auditório do Espaço Físico Integrado (EFI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) como davam o tom da conversa que viria a seguir.

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“Manu 2018”

“Lute como uma Marielle Franco”

“A saída para crise é o povo no poder”

” Lute como uma garota”

Mulheres na política, mulheres no poder”

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As mulheres seriam o foco da discussão. O espaço, destinado a receber cerca de 200 pessoas, lotou, fazendo com que dezenas tivessem de assistir em pé ou sentados no chão. Manuela entrou às 18h53, – 23 minutos depois do combinado em função do atraso em uma entrevista. Caminhou sorridente, apressada. Olhou um carrinho de bebê e parou para dar atenção à mãe e ao recém-nascido.

Pediu para falar sentada. A gripe, fruto do impiedoso inverno gaúcho, foi responsável pelas diversas pausas. Manuela falou por cerca de 40 minutos para um público majoritariamente feminino e jovem. Foi interrompida apenas pelo mal-estar da garganta.

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O PCdoB não apresentava um candidato à presidência desde 1945, quando apostou em Iedo Fiúza, o terceiro candidato mais votado na ocasião – ficou atrás, apenas, de Eduardo Gomes (UDN) e Eurico Gaspar Dutra (PSD), eleito presidente. Também por isso, Manuela, que foi a vereadora mais jovem já eleita em Porto Alegre, não tinha tempo a perder. Anunciando que trataria do tema principal, disparou costurando os assuntos.

“Não tem como falar do Brasil sem falar de gênero e raça. O desenvolvimento do Brasil passa pelo enfrentamento das desigualdades. Qual é o impacto econômico das mulheres ganhando 20% a menos do que os homens? Qual é o impacto no Brasil em remunerar as nossas mulheres dessa forma? Existe como desenvolver um país sem paz? Eu acho que não. A política de segurança pública no Brasil é feita para salvar vida de branco. A política é exitosa para o branco. O ponto de partida precisa ser a desigualdade”, explicou. “O desenvolvimento passa pela unidade do povo.”

A uma plateia catarinense, a deputada federal mais votada em 2006 e 2010 no Rio Grande trouxe os números do estado vizinho para ilustrar uma realidade global. “O crescimento da economia, baseado nos números de Santa Catarina, não é um indicativo de diminuição da desigualdade. A maior diferença salarial do Brasil, entre mulheres e homens, é aqui. O número de feminicídio em Santa Catarina é o segundo maior do Brasil. É por isso que o nosso debate, pensando em sair da crise, tem que passar por raça e gênero”.

Manuela pontua a questão de gênero especialmente porque acredita que é um dos três componentes do golpe institucional que ocorreu no Brasil em 2016. “Nós temos uma eleição atípica. Sou jornalista, gosto de colocar nome nas coisas. Foi Golpe. O golpe é antinacional. Nós vimos um impeachment sem crime de responsabilidade. Por quê? Para os responsáveis não serem punidos. Esse projeto é o projeto de venda da Petrobrás, da Eletrobrás, é a reforma trabalhista, onde se trabalha mais e se ganha menos. É antinacional por terminar com a previdência pública. Outra questão, ele é antidemocrático, porque não existiu crime de responsabilidade e estão retirando Lula da eleição. O golpe é um ato contínuo, vemos isso como ativismo judiciário, na criminalização dos movimentos sociais. A terceira característica está no discurso utilizado para legitimar o impeachment. O golpe foi misógino, o discurso foi machista. Uma revista semanal disse que se a Dilma tivesse um namorado, a economia do Brasil estaria melhor. Vincularam a sexualidade da Dilma com a economia. O ódio com as mulheres ficou muito evidente”.

A primeira mulher a concorrer à presidência da República foi Lívia Maria Pio, do Partido Nacional (PN), em 1989. Houve mulheres nas duas eleições seguintes até que, em 2010, Dilma Rousseff, do Partidos dos Trabalhadores (PT), foi eleita para o cargo político mais importante do país. Dilma foi reeleita em 2014. Duas eleições em que não era a única mulher a disputar a vaga. Mesmo assim, é a primeira vez em que a mulher é pauta.

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É a primeira vez em que o feminismo está, sem eufemismos, no foco de atenção de uma candidata. 

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E abraçar a bandeira do feminismo é um dos motivos pelos quais Manuela vem ganhando espaço. “As mulheres são as mais afetadas com a crise do capitalismo, com a reforma trabalhista. A Emenda Constitucional 95, do Temer, afeta mais a mulher que o homem. A ausência do Estado faz com que as mulheres sofram mais. Nós vemos as mulheres cuidando da casa, dos filhos e ganhando menos”.

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A pré-candidata não só acusa, ela também propõe. “A resposta para o golpe deve ser nacional e de desenvolvimento”. Eleita deputada estadual no RS em 2014, novamente a candidata mais votada, ela alfineta os discursos liberais. “Qual o papel do estado? Até quando os liberais vão mentir que existem países desenvolvidos em que o estado não interfere? Qualquer país que se desenvolva tem estado atuando.”

Manuela D´Ávila não vê outra saída a não ser a de revogar a PEC do congelamento dos gastos públicos, da reforma trabalhista e na criação de uma reforma tributária, onde o pobre pague menos e o rico pague mais do que vem pagando. A pré-candidata não enxerga só a desigualdade como causadora da violência, mas o contrário também, com a violência sendo responsável pela desigualdade. “A pessoas que moram em comunidade não conseguem emprego por morarem em comunidade. As crianças que moram na região do tráfico, vão perder aula quando a escola estiver fechada por causa de tiro. O posto de saúde vai estar fechado pelo mesmo motivo”.

Defensora ferrenha dos Direitos Humanos, Manuela coloca o pobre como a grande vítima da guerra do tráfico. “Não existe policial rico. Vocês conhecem policial rico? O policial também é pobre. O nosso país é o que mais mata policial e é também o que a polícia mais mata”. Manuela já falava por 30 minutos. A garganta incomodava. Ela pediu desculpas e pegou uma bala de gengibre.

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“O Estado brasileiro precisa ser invertido: o Estado controla o nosso corpo e não cuida das coisas essenciais. E isso, a gente precisa cortar nesta eleição”

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O debate não aconteceu. Foi mais um manifesto do programa político e dos pensamentos da pré-candidata. Mas houve perguntas, nove perguntas sobre feminismo e crise.

“O povo na rua é o caminho para transformações profundas”, disse, elogiando as mulheres argentinas que estão abrindo caminho para legalização do aborto. “Todo debate para saída da crise precisa ser estruturado pelo nosso povo. Uma reposta precisa ser radicalmente democrática, nós precisamos ocupar o poder. Se eles querem menos democracia com o golpe, nós queremos mais democracia. Nossa resposta precisa ser feminista, porque nós, mulheres, somos a que mais sofremos com esse projeto. Eu ganhei uma camiseta, hoje, dizendo “ou a revolução será feminista ou não será”. O povo brasileiro é a minha razão de ser pré-candidata à presidência da República”.

Manuela encerrou o discurso e respostas às 21h01, aplaudida de pé, por 40 segundos. A pré-candidata feminista era cercada pelo calor público enquanto o vento gelado soprava lá fora. Manuela D’Ávila ganhou mimos, tirou fotos, distribuiu autógrafos e conversou de perto com eleitores e, principalmente, eleitoras.