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Ativismo e Arte #3 Entrevista com Silvia Abreu

Flávia Cunha
7 de outubro de 2021

A Arte é libertadora, é o único espaço onde não há fronteiras. Isso é revolucionário”. 

A reflexão foi feita por Silvia Abreu, ao longo da entrevista para o projeto Ativismo e Arte. Mas a conversa partiu do início da trajetória desta jornalista e produtora cultural, que começou cedo na área de Comunicação. De acordo com Silvia, aos 16 anos, já trabalhava no O Infomativo do Vale, jornal de Lajeado (RS), município localizado a 113 quilômetros de Porto Alegre. Quando chegou na capital gaúcha, começou a cursar Jornalismo na Universidade do Vale do Sinos (Unisinos) e ingressou na Zero Hora, um dos veículos mais tradicionais do Estado. Em paralelo ao jornalismo, as artes cênicas eram uma paixão.

Aliás, foi na Unisinos que ela ingressou em um grupo de teatro, dirigido pela professora Tania Wolf. “Tentei me inserir no universo cultural como atriz. Mas encontrei barreiras devido ao meu tipo físico. Não conseguia papéis que seriam para mulheres brancas – porque eu não era branca – e também não era preta o suficiente para fazer papéis de estereótipos negros, como de escravizadas. Fiquei num limbo”, lamenta, pontuando que a situação era ainda pior nesse sentido há 30 anos, quando passou por esse episódio de racismo estrutural.  

Produção cultural

Por isso, a produção cultural foi uma forma encontrada para trabalhar com Arte. Quando surgiu uma vaga como produtora no grupo Carta Aberta, dos Correios, decidiu se candidatar, apesar de ter pouca experiência na função. Na época, a vaga era ocupada por Sirmar Antunes, conhecido do público por sucessos no cinema como O dia em que Dorival encarou a guarda e A cabeça de Gumercindo Saraiva. Antunes resolveu dedicar-se exclusivamente à carreira de ator. Então, Silvia ficou em seu lugar. “Quem me indicou foi o Beto Hermann [músico e compositor]. Eu nunca tinha atuado com produção profissionalmente, só na Unisinos. Mas tive coragem suficiente para arriscar e acho que nunca ninguém percebeu”, diverte-se.

Cartografia dos palcos  

Produtora cultural inquieta, sempre atuou com projetos diversos, em teatro, música e literatura, entre outras áreas. Portanto, não ficaria parada durante a pandemia. Com o propósito de ajudar os colegas de profissão, resolveu fazer um mapeamento das condições de espaços de espetáculos em municípios gaúchos, já pensando em eventos futuros. “A ideia surgiu da minha prática profissional, já que toda vez que ia montar uma turnê, tinha dificuldade de saber informações técnicas sobre os espaços culturais”, destacou, durante a conversa para o projeto Ativismo e Arte. O Cartografia dos Palcos – Mapeamento dos Equipamentos Culturais do RS é uma parceria de Silvia com a jornalista Michele Rolim. “Começamos juntas a desenvolver o projeto. Foram muitas conversas e pesquisas até chegarmos ao resultado final, com os dados organizados em um site.” O projeto foi financiado pelo Procultura, da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. 

Frente Negra Gaúcha

Outro aspecto relevante da trajetória de Silvia é a atuação em coletivos antirracistas, entre eles a Frente Negra Gaúcha, lançada em 2019. Nessa entidade, é diretora de Comunicação. “As conversas para a criação da entidade começaram ainda em 2018, quando percebemos que a violação dos direitos das pessoas negras estava cada vez mais evidente”, recorda a jornalista. Ela enfatiza que a associação é sem fins lucrativos e suprapartidária. Explica que a frente é composta por pessoas negras e não negras, sem distinção de gênero, classe social, religião ou escolaridade. “A frente busca a coalizão de todas as forças para o enfrentamento do racismo sistêmico que estrutura a sociedade brasileira.” Conforme Silvia, a associação tem como objetivo a conscientização e a promoção do negro e do seu potencial por meio da formação e da representação política nos diferentes espaços de poder”, salienta. No site da entidade, é possível saber mais informações.

Para que serve a Arte?

Provocada durante a entrevista a responder aos detratores da Arte que argumentam que o fazer artístico “não serve para nada”, Silvia fez reflexões sensíveis e relevantes. “A Arte é libertadora, é o único espaço onde não há fronteiras. Isso é revolucionário. Por isso, eu amo a Arte, amo os artistas e defendo a Arte.” Além disso, reforça aspectos práticos que não são levados em consideração por quem critica os artistas. “A Arte é um vetor importantíssimo para a Economia da Cultura”, finaliza, referindo-se não apenas ao ramo da Economia que analisa os impactos econômicos do setor cultural, mas também à disseminação da diversidade e de identidades, entre outros aspectos. 

 

Silvia Abreu

Jornalista e produtora cultural, Integrante da MOVE – Rede de Artistas de Teatro de Porto Alegre, do Coletivo Nimba de Mulheres Negras e Diretora de Comunicação da Frente Negra Gaúcha. Para acompanhar os projetos culturais desenvolvidas pela produtora, acessem seu perfil no Instagram.

Ouça o podcast

 

 

Outros episódios

O projeto multimídia Ativismo e Arte está em seu terceiro episódio. No primeiro, a entrevista foi com Raquel Grabauska, atriz, produtora e diretora teatral, que durante a pandemia voltou seu foco de atuação para projetos sociais. A segunda entrevistada é Atena Beauvoir Roveda, escritora, poeta, professora e filósofa.

Ativismo e Arte – Quem Faz

Uma produção Vós e F Cunha Produtora

Apresentação e produção: Flávia Cunha

Edição de imagem e concepção gráfica: Flávio Siqueira

Edição de áudio: Geórgia Santos

 

PodCasts

Ativismo e Arte #2 Entrevista com Atena Beauvoir Roveda

Flávia Cunha
10 de setembro de 2021

“Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha fórmula: ‘não é preciso ter esperança para empreender’. Isso não quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder.”

Jean-Paul Sartre

A inspiração sartreana foi um dos motivos que fizeram a filósofa, escritora e professora Atena Beauvoir Roveda ingressar na vida política. A reflexão foi feita durante a entrevista para o projeto Ativismo e Arte. “Me inspirei em Sartre, que propôs a literatura engajada à alguma luta social, política ou popular. Afinal, a literatura quer mudar o mundo de dentro para fora. Na política, é o oposto”, analisa. Além disso, a inspiração da filosofia existencialista de Jean Paul Sartre também já virou livro: Libertê: poesia, filosofia e transantropologia, lançado em 2018.

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Engajamento e luta

No ano passado, ao refletir a respeito deste engajamento à uma luta, a escritora decidiu ir à prática política, concorrendo à vereadora, em Porto Alegre. Atualmente, ocupa o cargo de presidente municipal do PDT Diversidade. Apesar da inegável importância do tema diversidade, ela pondera que ser uma mulher transsexual não a define em todos os seus interesses e causas “As pessoas às vezes acham que por eu ser LGBT essa deva ser a minha única posição epistemológica, existencial, de produção de conhecimento”, observa, referindo-se ao ramo da filosofia que se ocupa do conhecimento científico. “Mas se tem algo que me diferencia por ser uma mulher trans é ter a couraça mais dura”, destaca. 

Essa “couraça” fez ela não recuar quando teve um livro negado por uma editora. Ao contrário, a fez querer lutar. Após a recusa do original, decidiu criar a editora Nêmesis, em 2019, para dar visibilidade a obras escritas por pessoas trans e travestis. Aliás, Nemêsis é uma escolha, no mínimo, instigante. Já que este é o nome da deusa grega da justiça redistributiva e da vingança. Mas Atena atribui um outro sentido à essa palavra, ao afirmar, em suas redes sociais, que “sua literatura é um ato de vingança: vingar a vida fazendo gerar vida”, em uma menção ao livro Contos Transantropológicos. 

E, em breve, o tema política será abordado em livro. A obra A Semente Brasileira será lançada ainda em 2021. “Quero apresentar este assunto de uma forma que não nos distancie da prática. Demonstrar que a política não se prende às estruturas partidárias, já que ela se encontra também em outros espaços.” Atena considera que seu novo livro também é um convite à lucidez. “Se a gente quer uma democracia justa, plural e lúcida, precisamos agir dessa forma no nosso dia a dia”, enfatiza. 

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Atena Beauvoir Roveda 

Nascida em Porto Alegre-RS, é escritora, poeta, professora e filósofa. Ou como ela mesmo se define, uma livre pensadora em Educação, Cultura e Política. Idealizadora da Nêmesis Editora. Para mais informações sobre os livros e projetos da autora, acessem seu perfil no Instagram

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Ouça o podcast com a entrevista completa

 

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Ativismo e Arte – Quem Faz

Uma produção Vós e F Cunha Produtora

Apresentação e produção: Flávia Cunha

Edição de imagem e concepção gráfica: Flávio Siqueira

Edição de áudio: Geórgia Santos



 

Voos Literários

Voos Literários Entrevista: Clara Corleone

Flávia Cunha
1 de outubro de 2019

A coluna Voos Literários inaugura um espaço para entrevistas com a atriz e escritora Clara Corleone, que lança no dia 3 de outubro seu livro de estreia: O Homem Infelizmente Tem que Acabar – crônicas, deboches e poéticas. O bate-papo aconteceu na semana passada e durou cerca de 1 hora, em um café no Bom Fim, um dos bairros de Porto Alegre reconhecidos pela resistência cultural e centro da vida e obra de Clara Corleone, de 33 anos. 

Clara começou a escrever nas redes sociais e ganhou visibilidade (e seguidores) de forma despretensiosa. Seus textos abordam empoderamento feminino, relações amorosas e sua atribulada rotina de trabalho dividida entre a ONG Minha Porto Alegre, o estúdio Otto Desenhos Animados e a atuação como hostess no Bar Ocidente durante os finais de semana.

A seguir, um resumo da conversa, em que a Literatura e o amor pela escrita foi se mesclando a assuntos complexos e necessários como a violência contra a mulher, aceitação corporal e feminismo.

 

Ser escritora

“O que mais amo fazer é escrever. Mas não sabia como transformar meus textos postados no Facebook em um livro, de forma que fizesse sentido. Até que surgiu o convite, por parte da Editora Zouk, para que isso acontecesse. Foi um processo rápido, ao longo de alguns meses em 2019. O livro só aconteceu graças ao trabalho de edição feito pela Zouk e pela Joanna Burigo [fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura].

Título polêmico

 “O título do livro – O Homem Infelizmente Tem que Acabar – foi uma ideia minha e o defendi apesar do receio de que pudesse afastar da leitura o público masculino. Mas acho que esse nome tem o deboche e a ironia que costumo colocar nos meus textos. Mulheres heterossexuais solteiras e casadas entendem perfeitamente ao que me refiro.” 

Inspiração

“Eu gosto de imaginar que meu livro possa ser uma porta de entrada para o feminismo. Penso naquela adolescente que foi rejeitada por um babaca e pode, a partir da leitura dos meus textos, entender que ela tem valor em si e não ficar dependendo da opinião do cara por quem ela se apaixonou e está sofrendo. Se servir para isso, eu vou ficar muito feliz.” 

Influências

Patrícia Melo, com sua linguagem verborrágica sem dúvida me influenciou. Nos diálogos e no jeito de fazer graça das pequenas coisas do cotidiano penso que tem a ver com as minhas leituras de Luis Fernando Verissimo. E Caio Fernando Abreu me inspirou e me inspira muito na escrita.”

Exposição da vida privada

“Muita gente imagina que me conhece só por ler meus textos, mas a verdade é que penso bastante antes de escrever. Tudo que escrevo aconteceu mesmo, não é ficção. Mas tenho o cuidado de não expor sem necessidade as pessoas envolvidas nas situações relatadas e também a minha vida pessoal.”

Política

“Percebo o quanto o cenário político tem afetado meus amigos. E é por isso que resolvi expor minhas angústias sobre o governo Bolsonaro nas redes sociais e nos meus textos. É uma forma de quem me lê perceber que não está sozinho.”

Feminismo

“O feminismo é uma temática presente nas minhas crônicas por estar presente na minha vida. E claro que é importante a gente falar sobre aceitação corporal e de problemas como anorexia e bulimia. Mas precisamos refletir que lutar para acabar com a violência contra a mulher é a bandeira mais importante do feminismo. E essa consciência atingí ao trabalhar na ONG Minha Porto Alegre, em que vi dados assustadores sobre violência contra a mulher, que acabaram mudando a minha percepção  sobre o que é mais relevante dentro do feminismo. [confira dados sobre feminicídio e violência contra a mulher aqui]. A proibição do aborto também é uma questão que prejudica muito mais as mulheres pobres e por isso precisamos lutar pela sua descriminalização.

Privilégios

“Sou branca, hétero e cis e é desse lugar que ocupo na sociedade que escrevo. Mas não podemos deixar de pensar no quanto a vida de outras mulheres é mais difícil. Mulheres negras e periféricas, por exemplo. Ou mulheres com deficiência física, que sofrem mais violência física do que as outras.”

Sexo

“Ainda causar espanto que mulheres escrevam sobre sexo é uma mostra do quanto o machismo ainda está presente na nossa sociedade. Homens não precisam justificar-se para abordar esse tema. Bukowski é um bom exemplo disso. Mas como diz a Clara Averbuck [escritora gaúcha radicada em São Paulo, feminista e libertária em seus livros], não faço escrita confessional porque não estou confessando algo que me arrependo. Essa ideia de escrita ‘confessional’ é um termo usado pela crítica apenas para escritoras.” 

Novos projetos literários

Meu sonho é escrever um romance que mostrasse a verdadeira história da mulher solteira, sem os estereótipos das séries de televisão e das comédias românticas de Hollywood. Mas talvez isso demore para acontecer, porque sinto que para escrever uma narrativa longa preciso estudar mais e estar preparada para esse projeto. Mas o sonho existe e espero que um dia aconteça. De repente, antes eu lance mais crônicas antes de publicar um romance.”

Confira um trecho do livro O Homem Infelizmente Tem Que Acabar, de Clara Corleone.

Reporteando

O feminismo na vanguarda contra o fascismo

Évelin Argenta
26 de setembro de 2018

A socióloga e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo, Esther Solano, avalia que o ódio virou uma moeda de troca importante no campo político atual.  Segundo ela existe um uso eleitoral do ódio, já que o “ódio potencializado” é um caminho às urnas.  A pesquisadora espanhola é autora de estudos sobre o que pensam os eleitores do capitão reformado do Exército e deputado federal, Jair Bolsonaro.  Ao comentar seu novo livro “O ódio como política”, lançado pela editora Boitempo, Esther ainda falou sobre o “risco real” de fascismo no Brasil e na vanguarda da luta das mulheres contra esse sistema. Confira a entrevista. 

*Originalmente a conversa foi veiculada pela Rádio CBN.  A entrevista foi realizada em parceria com os jornalistas Roberto Nonato e Kennedy Alencar. 

 

Estamos em uma fase onde o ódio está cada vez mais presente na sociedade?

O que o livro quis fazer é justamente chamar atenção para essa presença de ódio como uma moeda de troca importante no campo eleitoral e no campo político. Vivemos no Brasil em uma sociedade que se constrói muito na ideia do ódio, do machismo, do racismo, da desigualdade. O que vemos hoje é uma politização do discurso de ódio, uma “eleitorização” do discurso de ódio e ódio polarizado, pois ele é um bom caminho para as urnas.

 

O candidato Jair Bolsonaro (PSL) é que mais recorre a esse tipo de discurso. O que explica o crescimento desse discurso de ódio e da extrema-direita no Brasil?

Eu sempre digo que a candidatura da extrema-direita brasileira, de forma geral, se constrói sobre três “antis”. A primeira delas é a politização da antipolítica, que é aquele sentimento de “são todos iguais, todos corruptos”. A segunda é a negação do petismo e da esquerda. Existe um discurso muito forte de combate á esquerda e ao campo progressista e intelectual. E, por fim, há uma reação muito forte aos movimentos identitários, onde ganhou força o discurso antifeminista, movimento negro, movimento LGBT, colocando esses movimentos como culpados pela diferenciação social tão grande que existe nas relações sociais no Brasil.

 

Antes de passar por governos alinhados socialmente à esquerda, o Brasil passou por governos alinhados social e economicamente à direita.  Por que esses discursos de ódio não surgiram antes? Existe um fator econômico no ódio?

Sem dúvida. Existe hoje um realinhamento de uma força neoconservadora e intolerante no campo dos valores e uma força econômica liberal ou ultraliberal. A candidatura de Jair Bolsonaro (PSL) é altamente simbólica nisso. Ele é um personagem construído nessa ideia dos valores, da família cristã, do militarismo, mas atrás da candidatura dele está o Paulo Guedes, que é uma pessoa que simboliza esse liberalismo ,a privatização e esse capitalismo mais selvagem. Existe um casamento obviamente oportunista aí. Só que as pessoas não são conscientes disso. Quando você pergunta para eleitores da extrema-direita sobre economia, ele não é consciente desse discurso neoliberal que está por trás, já que ele é tratado de forma escondida, às escuras.

 

Essa percepção vai além do Brasil em uma espécie de onda global?

Se dúvida. Globalmente existe um ressurgimento dessa extrema direita e isso é uma coisa que, efetivamente, você vê em países da Europa, América Latina e Estados Unidos. A diferença no Brasil e o que me preocupa bastante é que normalmente nos países europeus a retórica dessa extrema-direita se constrói com base no inimigo externo, no imigrante ou no refugiado. No Brasil existe uma peculiaridade. Essa retórica na extrema-direita se constrói com base em um inimigo interno. Então aqui a luta é contra o jovem negro da periferia, contra a feminista, contra o professor, contra a pessoa da esquerda. Existe uma violência contra o próprio brasileiro que é considerado como um “não cidadão de bem”

 

Nos últimos tempos a palavra fascismo vem sendo dita com uma frequência muito grande. Em alguns momentos , até, corre-se o risco de esvaziar a palavra de significado. Existe um risco real de fascismo no Brasil?

Sem dúvida. E nesse caso é importante contextualizarmos o que significa fascismo. Muitas pessoas confundem fascismo com uma certa política adotada em determinado momento histórico, fundamentalmente na Europa. Mas o fascismo na sua concepção política e filosófica mais ampla é o silenciamento, aniquilamento do outro que é considerado diferente. É uma política que mobiliza o ódio, que utiliza o ódio como mobilizador para fazer política. Então quando você tem candidatos que são abertamente xenofóbicos, misóginos, que dizem que “bandido bom é bandido morto”, esse é um discurso claramente fascista. O que não quer dizer que todo mundo que vote nesse tipo de pessoa seja fascista. Há pessoas que votam por outros fatores, como a descrença na política. Mas essa tendência política pode, sim, ser nomeada dessa forma.

 

Se o candidato Jair Bolsonaro for eleito, esse movimento terá no presidente da república o seu líder. No entanto, se ele perder a eleição quem ficaria nesse grupo de direita?  A senhora vê uma retomada desse eleitorado pelo PSDB ou pelo João Amoêdo, do Partido Novo?

Por um lado existe um certo paradoxo, pois você tem uma “bolsonarização” da esfera pública. Se o Bolsonaro não foi eleito o que fica capilarizado na esfera pública é esse discurso de ódio, da intolerância, do antipetismo, da moralização do debate público. Agora, ele é um candidato que não tem um partido político com estrutura, é isolado politicamente. Eu não vejo nesse momento uma estrutura político-partidária, institucional que consiga capitalizar esse discurso de ódio a ponto de você ter, de fato, uma estrutura forte ou competitiva como você tem na França. Mas isso é secundário, pois quando você já tem essa bolsonarização do debate na sociedade é questão de tempo para eles encontrarem outros tipos de canalizações. Temos que atacar esse discurso no campo social para que ele não extrapole o campo político.

 

Nos últimos dias vimos o crescimento de um movimento muito forte de mulheres que se opõem ao candidato Jair Bolsonaro. É um movimento que surgiu na internet, mas que já vem sendo usado de forma partidária por outros candidatos. Já havíamos presenciado algo parecido na história recente? Qual a dimensão desse movimento fora das redes sociais?

Já tivemos movimentos parecidos encabeçados por mulheres quando elas encabeçaram a oposição ao Eduardo Cunha, na questão da descriminalização do aborto. Uma coisa muito importante é que a internet tem sido um ambiente muito colonizado ultimamente pelo pensamento feminista. Houve o movimento #meuprimeiroassedio, #agoraéquesãoelas, etc. Esse movimento Mulheres Contra Bolsonaro ele é extraordinário por vários fatores. Primeiro que o voto feminino vai ser determinante nessa eleição, também pelo fato de as mulheres serem claramente atacadas pelo discurso de ódio (estamos na linha de frente dessa luta) e também em função de outros grupos terem se juntado a isso. Temos agora os LGBT Contra Bolsonaro, Negros Contra Bolsonaro, Evangélicos Contra Bolsonaro. Você vê que no campo do social, do coletivo e das ruas o feminismo é muito forte. Ele tem potencial para criar uma frente contra o fascismo. Acho que a onda de feminismo brasileira é a vanguarda da luta contra o fascismo. Somos nós, mulheres, que temos mais dificuldades para entrar na política. Então acho simbólico que sejam as mulheres a tomar a frente desse movimento.

Ouça a entrevista na íntegra

 

Reporteando

As perguntas-padrão de uma eleição seriam mais reveladoras

Geórgia Santos
31 de julho de 2018

Na noite de ontem, o programa Roda Viva recebeu o deputado Jair Bolsonaro (PSL), candidato à presidência da República. Confesso, eu estava muito curiosa por esse momento. Especialmente porque o político é conhecido por evitar esse tipo de encontro com jornalistas, com os quais mantém uma relação de hostilidade. E no ensejo das confissões, admito que fiquei frustrada. Não com ele, sua ignorância sempre aparece, mas com a entrevista em si.

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Não foi propriamente uma entrevista ruim, mas foi mais do mesmo

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Já no início, quando o apresentador do programa, Ricardo Lessa, pergunta sobre a realização pela qual ele gostaria de ser lembrado, Bolsonaro despeja a ladainha que todos conhecemos. “Nós cansamos da esquerda”, “[queremos um Brasil] que respeite a família, bem como as crianças em sala de aula”; “que jogue pesado na questão da segurança pública”; “que jogue pesado contra o MST”. De novo, pra mim, apenas o “sonho” que o candidato tem de tornar a economia brasileira plenamente liberal, já que até pouco tempo era um estatista.

Mas a ladainha que conhecemos seguiu programa afora. O começo da entrevista foi marcado por perguntas sobre a Ditadura Militar, por exemplo. Acho que é um tema que deve ser abordado, afinal de contas faz parte do nosso passado recente e o candidato já exaltou e defendeu o período mais que algumas vezes. Mas insistir por quase meia hora nisso, é escada pra ele.

Ele relativizou a tortura com o discurso padrão de que eram terroristas, disse que a maioria inventou que foi torturada para receber indenização, votos e poder; disse que sem a “revolução teríamos virado Cuba”; questionou o assassinato de Vladimir Herzog; disse que não foi golpe; e ainda flertou com a ideia de reeditar o período quando perguntou se “o clima não está muito parecido com aquela época.”

Em outras frentes, o candidato do PSL disse que é contra políticas afirmativas. Segundo ele, entrar em uma universidade, por exemplo, é questão de mérito e competência. “Se eles podem ser tão bons no Ensino Superior, e acho que sejam (sic), por que não estudam no Ensino Básico aqui atrás, pra que tenham melhor base e sigam carreira numa situação de igualdade?” Ele afirma que não há dívida a ser quitada com a população negra porque ele nunca escravizou ninguém. Aliás, foi mais longe. “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisaram na África, os próprios negros que entregavam os escravos”, disse ele, em um momento de profunda infelicidade.

Ao ser confrontado com os rótulos de homofóbico, misógino e racista, negou todos. Obviamente.

“Se eu sou racista tinha que tá (sic) preso. São calúnias, nada mais.”

“Onde que que eu sou homofóbico? A minha briga é contra o material escolar. […] não pode o pai chegar em casa e encontrar o Joãozinho de seis anos de idade brincando de boneca por influencia da escola.”

Felizmente, o jornalista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo, corrigiu Bolsonaro ao lembrar que ele foi denunciado pelo crime de racismo. Ele relativizou (de novo), disse que apenas exagerou nas brincadeiras e que aquilo não é racismo. Quanto a não ser homofóbico, não foi corrigido, infelizmente, então nós fazemos isso aqui.

Bolsonaro tergiversou o tempo todo e reproduziu os discursos aos quais já estamos todos acostumados. Se defendeu sobre o receber auxílio-moradia dizendo que está na lei, ignorando a imoralidade de utilizar o benefício mesmo com imóvel próprio; disse que, no sétimo mandato, nunca integrou a Comissão de Orçamento, nem a de Saúde e que nunca integrou a maioria das comissões da Câmara dos Deputados porque “aquilo é um mundo”; disse que a última CPI que funcionou na Câmara foi há mais de 20 anos – aparentemente esqueceu de Eduardo Cunha; disse que evoluiu em suas contradições com relação à democracia; admitiu ter votado em Lula e elogiado Chávez, mas não admitiu ter mudado de opinião. Segundo ele, Chávez é que mudou e parou de elogiar os Estados Unidos (?). Em resumo, mais do mesmo.

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A falta de preparo do candidato à presidência apareceu no que chamo de perguntas-padrão do período pré-eleição. Ou seja, ao responder questões sobre pontos críticos que um eventual governo deverá enfrentar

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Inovação

O diretor de Inovação e Articulação do Instituto Ayrton Senna, Mozart Neves Ramos, perguntou qual seria o papel que o Ministério da Educação deveria desempenhar e se a Educação Superior pública deveria estar vinculada ao Ministério da Educação ou ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A resposta foi um festival de desconhecimento. Uma confusão. Primeiro, disse que não há pesquisa no Brasil,  que é uma raridade; depois que é preciso “inverter a pirâmide” e investir em Educação Básica; em seguida, que a comunidade científica está em segundo plano no país; completou dizendo que “não interessa aonde vá ficar, tem que ser uma pessoa isenta e com conhecimento de causa”; terminou afirmando que “temos que investir e dar meios para que o pesquisador possa exercitar o trabalho. Se você quiser entrar na área da biodiversidade, você tem uma dificuldade enorme. Agora, tá cheio de gente tentando roubar a nossa biodiversidade.”

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Mortalidade infantil

Esse momento, na minha opinião, foi o mais revelador no que tange à falta de preparo – e noção. A jornalista Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, questionou sobre as políticas que o candidato pretende propor para, entre outras coisas, a redução da mortalidade infantil, especialmente se houver redução de impostos.  Bolsonaro não apenas demonstrou pouca familiaridade com o assunto como foi leviano ao, basicamente, culpar as gestantes. Ignorando o fato de que altos índices de mortalidade infantil estão associados à falta de saneamento básico.

“Mortalidade infantil. Tem muito a ver com os prematuros. É muito mais fácil um prematuro morrer do que um que cumpriu a gestação normalmente. Medidas preventivas de Saúde.  [Jornalista: tem mais a ver com saneamento básico do que com prematuridade]. Não tem a ver. Olha só, tem um mar de problemas , tem que ver a questão, o passado daquela pessoa, signatário dela, alimentação da mãe, tem um montão de coisas, tô citando aqui um exemplo apenas. […] Muita gestante não dá bola pra saúde bucal, ou não faz exame de seu sistema unirnario com freqüência”, disse.

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Desemprego no campo

O candidato acredita que o desemprego no campo se dá em função da tecnologia e da fiscalização. Depois de dizer que “é difícil ser patrão no Brasil”, afirmou que o trabalhador deve ser treinado para fazer outra coisa, já que a mecanização deve substituir o trabalho braçal. Também defendeu que o governo não pode atrapalhar com legislação e fiscalização “absurdas”.

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Para mim, a candidatura de uma pessoa com um perfil tão belicoso é assustadora. Assusta que alguém se sinta tão à vontade para falar o que ele diz. Assusta que tantas pessoas apóiem alguém assim. Dito isso, acredito que esta seja uma campanha bastante emocional, o que explica parte desse apoio. Sua base é movida pelo “sentimento”, sentimento de medo, de cansaço, de necessidade de mudança – embora eu não entenda como alguém que é deputado há 27 anos possa ser mudança. Mas é justamente esse “sentimento” que torna inócua a insistência com alguns temas como o racismo, homofobia, misoginia, xenofobia e Ditadura Militar.

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O eleitor de Bolsonaro concorda com ele, não se importa com esses temas ou não acredita que ele seja assim – atribuindo tudo às Fake News

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Isso prova que, mais do que nunca, o jornalismo responsável precisa entrar em campo. O candidato do PSL precisa ser exposto como o candidato despreparado que é, não pela maneira como ele pensa ou em função do que defende. Até porque, ele tem todo o direito de defender o que bem entender – e o dever de arcar com as consequências disso também.

E é nesse ponto que o programa Roda Viva falhou. À parte esses três momento que destaquei, sobre inovação, mortalidade infantil e desemprego – e talvez algum outro que me tenha escapado, foi uma entrevista pouco reveladora.

Faltou perguntar sobre plano de governo, sobre projetos para educação e saúde. Não ouvi nada a respeito de cultura, não tenho a menor ideia do que ele pensa a respeito. De política internacional, só sei que quer fazer comércio com todos os países. E para a segurança? Além do óbvio e de armar o “cidadão de bem”, não ouvi nada que fosse produtivo.

Não teve coordenador de campanha adversário como entrevistador, ele não foi interrompido constantemente, mas, de certa forma, o programa foi desenhado de maneira similar ao que recebeu Manuela Dávila. Por motivos diferentes, é claro. Afinal de contas, o candidato do PSL é cheio de contradições e precisa ser confrontado. De todo modo, ficou claro que o objetivo era constrangê-lo, pegá-lo no “contrapé”. Estratégia que, na minha opinião, só fortalece uma candidatura que atribuiu notícias ruins à manipulação da grande mídia.

Durante o programa, ele disse que “a imprensa quase toda é de esquerda no mundo, Trump sofreu com isso, são os Fake News.”

Ele deixou a cama pronta. Não podemos deixar o jornalismo deitar.

Reporteando

A entrevista do Roda Viva é exemplo do que NÃO fazer

Geórgia Santos
26 de junho de 2018

Nos anos em que fui professora no curso de jornalismo da Famecos, adorava quando chegava o momento de abordar o tema “entrevista”. As cadeiras eram direcionadas para o radiojornalismo, mas uma boa entrevista é uma boa entrevista em qualquer meio e meus colegas professores e eu levávamos isso muito a sério. Afinal de contas, é a base de um jornalismo sólido e há métodos e técnicas a empregar para que ela seja bem conduzida.

À época, eu costumava recomendar que os alunos assistissem às entrevistas que David Frost realizou com o ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, em 1977. Após a renúncia de Nixon, o  jornalista britânico, até então famoso por programas de entretenimento, pagou para que o político concedesse entrevistas que seriam exibidas ao longo de quatro programas na televisão norte-americana. Aí já começa o problema. Afinal de contas, o pagamento indicaria o que se chama de jornalismo chapa-branca. Nenhum canal aceitou transmitir ou distribuir as entrevistas e Frost bancou do próprio bolso.

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A complexidade dessas entrevistas faz com que sejam exemplo do que NÃO FAZER  no jornalismo e, ao mesmo tempo, de JORNALISMO DE QUALIDADE

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O lance é que Frost estava mais preocupado com dinheiro do que com jornalismo e não se preparou para entrevistar Nixon, um político experiente e em domínio de sua retórica que pretendia usar as entrevistas para limpar o nome após o escândalo de Watergate. Lançando mão de tudo o que NÃO SE DEVE FAZER em uma entrevista, Frost foi engolido pelo republicano. Porém, como o próprio dinheiro estava em jogo, ele resolveu se preparar para a última entrevista. Sua equipe de produção descobriu fatos inéditos e Frost usou métodos eficazes. Como resultado, Nixon acabou admitindo a culpa e o jornalista entrou para a história. Além das imagens originais, o episódio foi imortalizado no filme Frost/Nixon, de Ron Howard.

Mas se a interação entre Frost e Nixon é um exemplo do ponto de vista técnico, a entrevista com Manuela D’Ávila no programa Roda Viva na noite de ontem (25) é um exemplo do que NÃO FAZER sob o ponto de vista ético e profissional.

Se Frost foi ineficaz, incialmente, porque não conseguia extrair informações de Nixon, alguns dos entrevistadores da pré-candidata do PCdoB à presidência da República foram levianos e irresponsáveis justamente porque não estavam interessados no que Manuela tinha a dizer.

Principalmente Frederico D’Ávila, um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro (PSL). A presença do diretor da Sociedade Rural Brasileira (SRB) foi absolutamente inadequada e suas perguntas absurdas e constantes interrupções deixaram isso bastante claro.

O aliado de Bolsonaro distorce fatos históricos já na primeira manifestação, ao alegar que o fascismo era um movimento de esquerda a partir de uma associação desconexa. Já na primeira manifestação, interrompe a entrevistada em seis momentos.

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O programa inteiro foi um festival de exemplos do que NÃO SE DEVE FAZER EM UMA ENTREVISTA

  • A pré-candidata foi constantemente interrompida, o que pode ser qualificado como o famigerado manterrupting – prática machista de interromper uma mulher quando ela está falando. Aliás, fica lançado um desafio a quem não acredita que isso exista: conte quantas vezes as mulheres são interrompidas e compare com os homens na mesma situação;
  • As repostas de Manuela D’Ávila eram ignoradas, especialmente pelo entrevistador já citado, que fazia “ganchos” e conexões livres, independente do que ela tinha a dizer;
  • As opiniões da entrevistada eram constantemente desqualificadas;
  • As propostas da pré-candidata foram ignoradas em diversos momentos em que se preferiu que focar a entrevista nas experiencias de Cuba e da União Soviética e em figuras como Lula, Maduro e até Stálin;

Infelizmente, a entrevista foi conduzida com um tom machista e foi inadequada do início ao fim. Uma cartilha para estudantes de jornalismo que, a partir deste exemplo, ficam sabendo o que não se deve fazer. E que não se exima a produção do programa, que ESCOLHEU convidar um aliado de Bolsonaro para entrevistar – ou sabatinar – uma pré.candidata. Já passaram pelo programa Alvaro Dias (Podemos), Marina Silva (Rede), Guilherme Boulos (Psol), João Amoêdo (Novo), Henrique Meirelles (MDB) e Ciro Gomes (PDT). Geraldo Alckmin (PSDB) será entrevistado em 30 de junho. Jair Bolsonaro (PSL) ainda não respondeu e, ao que tudo indica, não deve participar, já que anunciou que abre mão de participar dos debates eleitorais.

Confira aqui a íntegra da entrevista.

Foto: Reprodução / Facebook