Reporteando

As perguntas-padrão de uma eleição seriam mais reveladoras

Geórgia Santos
31 de julho de 2018

Na noite de ontem, o programa Roda Viva recebeu o deputado Jair Bolsonaro (PSL), candidato à presidência da República. Confesso, eu estava muito curiosa por esse momento. Especialmente porque o político é conhecido por evitar esse tipo de encontro com jornalistas, com os quais mantém uma relação de hostilidade. E no ensejo das confissões, admito que fiquei frustrada. Não com ele, sua ignorância sempre aparece, mas com a entrevista em si.

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Não foi propriamente uma entrevista ruim, mas foi mais do mesmo

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Já no início, quando o apresentador do programa, Ricardo Lessa, pergunta sobre a realização pela qual ele gostaria de ser lembrado, Bolsonaro despeja a ladainha que todos conhecemos. “Nós cansamos da esquerda”, “[queremos um Brasil] que respeite a família, bem como as crianças em sala de aula”; “que jogue pesado na questão da segurança pública”; “que jogue pesado contra o MST”. De novo, pra mim, apenas o “sonho” que o candidato tem de tornar a economia brasileira plenamente liberal, já que até pouco tempo era um estatista.

Mas a ladainha que conhecemos seguiu programa afora. O começo da entrevista foi marcado por perguntas sobre a Ditadura Militar, por exemplo. Acho que é um tema que deve ser abordado, afinal de contas faz parte do nosso passado recente e o candidato já exaltou e defendeu o período mais que algumas vezes. Mas insistir por quase meia hora nisso, é escada pra ele.

Ele relativizou a tortura com o discurso padrão de que eram terroristas, disse que a maioria inventou que foi torturada para receber indenização, votos e poder; disse que sem a “revolução teríamos virado Cuba”; questionou o assassinato de Vladimir Herzog; disse que não foi golpe; e ainda flertou com a ideia de reeditar o período quando perguntou se “o clima não está muito parecido com aquela época.”

Em outras frentes, o candidato do PSL disse que é contra políticas afirmativas. Segundo ele, entrar em uma universidade, por exemplo, é questão de mérito e competência. “Se eles podem ser tão bons no Ensino Superior, e acho que sejam (sic), por que não estudam no Ensino Básico aqui atrás, pra que tenham melhor base e sigam carreira numa situação de igualdade?” Ele afirma que não há dívida a ser quitada com a população negra porque ele nunca escravizou ninguém. Aliás, foi mais longe. “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisaram na África, os próprios negros que entregavam os escravos”, disse ele, em um momento de profunda infelicidade.

Ao ser confrontado com os rótulos de homofóbico, misógino e racista, negou todos. Obviamente.

“Se eu sou racista tinha que tá (sic) preso. São calúnias, nada mais.”

“Onde que que eu sou homofóbico? A minha briga é contra o material escolar. […] não pode o pai chegar em casa e encontrar o Joãozinho de seis anos de idade brincando de boneca por influencia da escola.”

Felizmente, o jornalista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo, corrigiu Bolsonaro ao lembrar que ele foi denunciado pelo crime de racismo. Ele relativizou (de novo), disse que apenas exagerou nas brincadeiras e que aquilo não é racismo. Quanto a não ser homofóbico, não foi corrigido, infelizmente, então nós fazemos isso aqui.

Bolsonaro tergiversou o tempo todo e reproduziu os discursos aos quais já estamos todos acostumados. Se defendeu sobre o receber auxílio-moradia dizendo que está na lei, ignorando a imoralidade de utilizar o benefício mesmo com imóvel próprio; disse que, no sétimo mandato, nunca integrou a Comissão de Orçamento, nem a de Saúde e que nunca integrou a maioria das comissões da Câmara dos Deputados porque “aquilo é um mundo”; disse que a última CPI que funcionou na Câmara foi há mais de 20 anos – aparentemente esqueceu de Eduardo Cunha; disse que evoluiu em suas contradições com relação à democracia; admitiu ter votado em Lula e elogiado Chávez, mas não admitiu ter mudado de opinião. Segundo ele, Chávez é que mudou e parou de elogiar os Estados Unidos (?). Em resumo, mais do mesmo.

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A falta de preparo do candidato à presidência apareceu no que chamo de perguntas-padrão do período pré-eleição. Ou seja, ao responder questões sobre pontos críticos que um eventual governo deverá enfrentar

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Inovação

O diretor de Inovação e Articulação do Instituto Ayrton Senna, Mozart Neves Ramos, perguntou qual seria o papel que o Ministério da Educação deveria desempenhar e se a Educação Superior pública deveria estar vinculada ao Ministério da Educação ou ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A resposta foi um festival de desconhecimento. Uma confusão. Primeiro, disse que não há pesquisa no Brasil,  que é uma raridade; depois que é preciso “inverter a pirâmide” e investir em Educação Básica; em seguida, que a comunidade científica está em segundo plano no país; completou dizendo que “não interessa aonde vá ficar, tem que ser uma pessoa isenta e com conhecimento de causa”; terminou afirmando que “temos que investir e dar meios para que o pesquisador possa exercitar o trabalho. Se você quiser entrar na área da biodiversidade, você tem uma dificuldade enorme. Agora, tá cheio de gente tentando roubar a nossa biodiversidade.”

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Mortalidade infantil

Esse momento, na minha opinião, foi o mais revelador no que tange à falta de preparo – e noção. A jornalista Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, questionou sobre as políticas que o candidato pretende propor para, entre outras coisas, a redução da mortalidade infantil, especialmente se houver redução de impostos.  Bolsonaro não apenas demonstrou pouca familiaridade com o assunto como foi leviano ao, basicamente, culpar as gestantes. Ignorando o fato de que altos índices de mortalidade infantil estão associados à falta de saneamento básico.

“Mortalidade infantil. Tem muito a ver com os prematuros. É muito mais fácil um prematuro morrer do que um que cumpriu a gestação normalmente. Medidas preventivas de Saúde.  [Jornalista: tem mais a ver com saneamento básico do que com prematuridade]. Não tem a ver. Olha só, tem um mar de problemas , tem que ver a questão, o passado daquela pessoa, signatário dela, alimentação da mãe, tem um montão de coisas, tô citando aqui um exemplo apenas. […] Muita gestante não dá bola pra saúde bucal, ou não faz exame de seu sistema unirnario com freqüência”, disse.

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Desemprego no campo

O candidato acredita que o desemprego no campo se dá em função da tecnologia e da fiscalização. Depois de dizer que “é difícil ser patrão no Brasil”, afirmou que o trabalhador deve ser treinado para fazer outra coisa, já que a mecanização deve substituir o trabalho braçal. Também defendeu que o governo não pode atrapalhar com legislação e fiscalização “absurdas”.

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Para mim, a candidatura de uma pessoa com um perfil tão belicoso é assustadora. Assusta que alguém se sinta tão à vontade para falar o que ele diz. Assusta que tantas pessoas apóiem alguém assim. Dito isso, acredito que esta seja uma campanha bastante emocional, o que explica parte desse apoio. Sua base é movida pelo “sentimento”, sentimento de medo, de cansaço, de necessidade de mudança – embora eu não entenda como alguém que é deputado há 27 anos possa ser mudança. Mas é justamente esse “sentimento” que torna inócua a insistência com alguns temas como o racismo, homofobia, misoginia, xenofobia e Ditadura Militar.

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O eleitor de Bolsonaro concorda com ele, não se importa com esses temas ou não acredita que ele seja assim – atribuindo tudo às Fake News

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Isso prova que, mais do que nunca, o jornalismo responsável precisa entrar em campo. O candidato do PSL precisa ser exposto como o candidato despreparado que é, não pela maneira como ele pensa ou em função do que defende. Até porque, ele tem todo o direito de defender o que bem entender – e o dever de arcar com as consequências disso também.

E é nesse ponto que o programa Roda Viva falhou. À parte esses três momento que destaquei, sobre inovação, mortalidade infantil e desemprego – e talvez algum outro que me tenha escapado, foi uma entrevista pouco reveladora.

Faltou perguntar sobre plano de governo, sobre projetos para educação e saúde. Não ouvi nada a respeito de cultura, não tenho a menor ideia do que ele pensa a respeito. De política internacional, só sei que quer fazer comércio com todos os países. E para a segurança? Além do óbvio e de armar o “cidadão de bem”, não ouvi nada que fosse produtivo.

Não teve coordenador de campanha adversário como entrevistador, ele não foi interrompido constantemente, mas, de certa forma, o programa foi desenhado de maneira similar ao que recebeu Manuela Dávila. Por motivos diferentes, é claro. Afinal de contas, o candidato do PSL é cheio de contradições e precisa ser confrontado. De todo modo, ficou claro que o objetivo era constrangê-lo, pegá-lo no “contrapé”. Estratégia que, na minha opinião, só fortalece uma candidatura que atribuiu notícias ruins à manipulação da grande mídia.

Durante o programa, ele disse que “a imprensa quase toda é de esquerda no mundo, Trump sofreu com isso, são os Fake News.”

Ele deixou a cama pronta. Não podemos deixar o jornalismo deitar.

Reporteando

A entrevista do Roda Viva é exemplo do que NÃO fazer

Geórgia Santos
26 de junho de 2018

Nos anos em que fui professora no curso de jornalismo da Famecos, adorava quando chegava o momento de abordar o tema “entrevista”. As cadeiras eram direcionadas para o radiojornalismo, mas uma boa entrevista é uma boa entrevista em qualquer meio e meus colegas professores e eu levávamos isso muito a sério. Afinal de contas, é a base de um jornalismo sólido e há métodos e técnicas a empregar para que ela seja bem conduzida.

À época, eu costumava recomendar que os alunos assistissem às entrevistas que David Frost realizou com o ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, em 1977. Após a renúncia de Nixon, o  jornalista britânico, até então famoso por programas de entretenimento, pagou para que o político concedesse entrevistas que seriam exibidas ao longo de quatro programas na televisão norte-americana. Aí já começa o problema. Afinal de contas, o pagamento indicaria o que se chama de jornalismo chapa-branca. Nenhum canal aceitou transmitir ou distribuir as entrevistas e Frost bancou do próprio bolso.

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A complexidade dessas entrevistas faz com que sejam exemplo do que NÃO FAZER  no jornalismo e, ao mesmo tempo, de JORNALISMO DE QUALIDADE

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O lance é que Frost estava mais preocupado com dinheiro do que com jornalismo e não se preparou para entrevistar Nixon, um político experiente e em domínio de sua retórica que pretendia usar as entrevistas para limpar o nome após o escândalo de Watergate. Lançando mão de tudo o que NÃO SE DEVE FAZER em uma entrevista, Frost foi engolido pelo republicano. Porém, como o próprio dinheiro estava em jogo, ele resolveu se preparar para a última entrevista. Sua equipe de produção descobriu fatos inéditos e Frost usou métodos eficazes. Como resultado, Nixon acabou admitindo a culpa e o jornalista entrou para a história. Além das imagens originais, o episódio foi imortalizado no filme Frost/Nixon, de Ron Howard.

Mas se a interação entre Frost e Nixon é um exemplo do ponto de vista técnico, a entrevista com Manuela D’Ávila no programa Roda Viva na noite de ontem (25) é um exemplo do que NÃO FAZER sob o ponto de vista ético e profissional.

Se Frost foi ineficaz, incialmente, porque não conseguia extrair informações de Nixon, alguns dos entrevistadores da pré-candidata do PCdoB à presidência da República foram levianos e irresponsáveis justamente porque não estavam interessados no que Manuela tinha a dizer.

Principalmente Frederico D’Ávila, um dos coordenadores da campanha de Jair Bolsonaro (PSL). A presença do diretor da Sociedade Rural Brasileira (SRB) foi absolutamente inadequada e suas perguntas absurdas e constantes interrupções deixaram isso bastante claro.

O aliado de Bolsonaro distorce fatos históricos já na primeira manifestação, ao alegar que o fascismo era um movimento de esquerda a partir de uma associação desconexa. Já na primeira manifestação, interrompe a entrevistada em seis momentos.

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O programa inteiro foi um festival de exemplos do que NÃO SE DEVE FAZER EM UMA ENTREVISTA

  • A pré-candidata foi constantemente interrompida, o que pode ser qualificado como o famigerado manterrupting – prática machista de interromper uma mulher quando ela está falando. Aliás, fica lançado um desafio a quem não acredita que isso exista: conte quantas vezes as mulheres são interrompidas e compare com os homens na mesma situação;
  • As repostas de Manuela D’Ávila eram ignoradas, especialmente pelo entrevistador já citado, que fazia “ganchos” e conexões livres, independente do que ela tinha a dizer;
  • As opiniões da entrevistada eram constantemente desqualificadas;
  • As propostas da pré-candidata foram ignoradas em diversos momentos em que se preferiu que focar a entrevista nas experiencias de Cuba e da União Soviética e em figuras como Lula, Maduro e até Stálin;

Infelizmente, a entrevista foi conduzida com um tom machista e foi inadequada do início ao fim. Uma cartilha para estudantes de jornalismo que, a partir deste exemplo, ficam sabendo o que não se deve fazer. E que não se exima a produção do programa, que ESCOLHEU convidar um aliado de Bolsonaro para entrevistar – ou sabatinar – uma pré.candidata. Já passaram pelo programa Alvaro Dias (Podemos), Marina Silva (Rede), Guilherme Boulos (Psol), João Amoêdo (Novo), Henrique Meirelles (MDB) e Ciro Gomes (PDT). Geraldo Alckmin (PSDB) será entrevistado em 30 de junho. Jair Bolsonaro (PSL) ainda não respondeu e, ao que tudo indica, não deve participar, já que anunciou que abre mão de participar dos debates eleitorais.

Confira aqui a íntegra da entrevista.

Foto: Reprodução / Facebook